A soltura do tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, Mauro Cid, surpreendeu o meio jurídico nos últimos dias, visto que as condições que o mantinham preso não se desfizeram após o acordo de delação premiada, homologada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, em 9 de setembro .
“A liberdade logo após a delação ela causa muito estranheza porque obviamente todos nós que temos uma visão garantia sobre o processo penal democrático, não vemos a prisão como um dos requisitos para delação. Ou melhor, não vemos a delação como um dos requisitos para prisão. Então se estavam presentes os requisitos para manter o cidadão preso, esses requisitos não desapareceram assim que aconteceu a delação. Esse é um ponto que preocupou bastante”, diz o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay.
Delação premiada
O acordo prevê a colaboração com as investigações sobre a falsificação de cartões de vacinação e venda de joias recebidas por Bolsonaro . Em troca, o delator terá benefícios, como um abatimento ou redução de pena caso seja condenado.
Segundo a legislação, a delação pode ser rescindida em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração e nos casos em que o colaborador retomar a conduta ilícita relacionada ao objeto da colaboração. Ou seja, se Cid não contar tudo o que sabe a respeito dos fatos pelos quais está sendo investigado, pode perder os benefícios.
Por que Mauro Cid foi preso?
Mauro Cid foi preso em 3 de maio deste ano após uma operação da Polícia Federal. Ele é suspeito de fraudar dados de vacinação contra a Covid-19 no Ministério da Saúde entre novembro de 2021 e dezembro de 2022.
O tenente-coronel é alvo de oito inquéritos no Poder Judiciário, principalmente no Supremo Tribunal Federal (STF). Dentre eles, está um possível plano golpista, o caso das joias sauditas e envolvimento na invasão na sede dos Três Poderes em Brasília. Todas as investigações correm em sigilo.
Kakay explica que os motivos que mantinham Cid preso são restritos e questiona se eles eram necessários para que fosse acordado uma delação.
“Os motivos da prisão são muito restritos, felizmente são muito restritos. Então falar “nós vamos manter o preso para averiguar se a delação é verdadeira”, também não é motivo para manter preso. O que causa preocupação é: o fato dele delatar fez com que caíssem os motivos que o levaram a prisão? Essa é uma crítica séria”, questiona o advogado.
Vazamento da delação
Além dos inquéritos anteriores, todo o processo de delação passou a ocorrer em sigilo desde que o acordo foi firmado. Ademais, Mauro Cid passa a ser proibido de utilizar o direito ao silêncio em todos os depoimentos que prestar. Com as informações do tenente-coronel, novas investigações serão realizadas.
A especialista em direito penal, Luciana Padilla Guardia, integrante do escritório Martins Cardozo, ressalta que o vazamento da delação é um crime e que pode atrapalhar as investigações.
“Eu acho que pode atrapalhar no sentido de antecipar a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro pra já vir com um contra-argumento em relação a tal afirmação, mas não vejo muito como atrapalhar além disso, porque qualquer afirmação que ele (Mauro Cid) faça, precisa ser comprovada. Além disso, é um crime, não poderia vazar nada neste momento”, explica a advogada.
A defesa de Jair Bolsonaro solicitou ter acesso ao depoimento de Mauro Cid prestado à PF antes da homologação da delação, no dia 31 de agosto, o que foi negado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes .
Guardia explica que se a defesa do ex-presidente também solicitar acesso aos termos da colaboração premiada, será negada. Ela só poderá ter informações sobre a colaboração após o requerimento de uma denúncia contra Bolsonaro, para que aí, sim, os advogados sejam requeridos.
“A defesa de Bolsonaro só pode ter acesso ao que efetivamente diz respeito a ele, então nesse momento, mesmo após a homologação, Mauro Cid ainda pode fazer alguns ajustes nos termos dele, podem existir algumas conversas com o Ministério Público, então o processo ainda segue sigiloso e só depois da denúncia ela poderá ter esse acesso”.
Impacto da delação para Bolsonaro
Após tomar conhecimento do acordo de delação premiada de Mauro Cid, Jair Bolsonaro afirmou estar “tranquilo” sobre os depoimentos do ex-ajudante de ordens.
“Não tenho [medo]. Ele não participava de nada. Eu estive com o [Vladimir] Putin, por exemplo. Estive com o [Donald] Trump. Éramos eu e o intérprete. Cid nunca estava. Ele agendava, ali, os horários de encontros com chefes de Estado, com ministros, com autoridades, com comandantes de força. Mas nunca participou dessas reuniões”, disse Bolsonaro à Folha de São Paulo na semana passada.
E continuou: “O Cid é uma pessoa decente. É bom caráter. Ele não vai inventar nada, até porque o que ele falar, vai ter que comprovar. Há uma intenção de nos ligar ao 8 de Janeiro de qualquer forma. E o Cid não tem o que falar no tocante a isso porque não existe ligação nossa com o 8 de Janeiro. Eu me retraí [depois da derrota para Lula], fiquei no Palácio da Alvorada 2 meses, fui poucas vezes na Presidência. Recebi poucas pessoas”, declarou Bolsonaro.
Para Leandro Consentino, cientista político e professor no Insper, apesar da fala de Bolsonaro, a delação preocupa o ex-presidente e aliados.
“A delação preocupa o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados no sentido de que ela pode entregar muitas coisas dele, dado a importância e a posição estratégica que Mauro Cid ocupava no entorno do Palácio do Planalto e do próprio presidente”.
“A questão é saber o quanto foi revelado nessa delação. Se foi pouca coisa, eles vão tentar apagar o incêndio e tratar ele (Mauro Cid) bem para evitar que mais coisa venha. Agora se de fato a delação trouxer muita coisa complicada para o ex-presidente, não duvido que o tratamento mude para que ele esteja sendo tomado a partir de então como alguém que traiu o presidente, traiu o movimento bolsonarista e seja tratado agora como alguém que não é mais bem quisto nesse meio”, explica Consentino.