Um relatório da organização não-governamental Artigo 19, com escritório em noves países, inclusive o Brasil, mostra que o presidente Jair Bolsonaro emitiu 1.682 declarações falsas ou enganosas em 2020, ou seja, mais de quatro por dia. O documento também aponta ataques de Bolsonaro à imprensa e mostra uma queda no nível de liberdade de expressão no mundo em geral e no Brasil: o país obteve apenas 52 pontos numa escala que vai de 0 a 100. O índice é o mais baixo registrado pelo Brasil desde 2010, quando começou a ser calculado pela ONG. As informações fazem parte do "Relatório Global de Expressão 2021", com dados de 161 países.
De acordo com o documento da ONG, que atua na defesa da liberdade de expressão e acesso a informação, as declarações falsas ou enganosas de Bolsonaro contribuíram para a aumentar o número de casos de Covid-19. A Artigo 19 também fez críticas à falta de transparência nos números da pandemia em alguns países, entre eles o Brasil.
"Em outros casos, a desinformação vem de indivíduos que ocupam posições relevantes — até mesmo chefes de governo, como Jair Bolsonaro — geralmente por meio de contas pessoais, em vez de oficiais, nas redes sociais. Esses indivíduos isolados podem ter um grande impacto na disseminação da desinformação. O presidente dos Estados Unidos [Donald Trump, que estava no cargo em 2020] foi provavelmente o maior impulsionador da 'infodemia' de informações errôneas sobre a COVID-19 em língua inglesa", diz trecho do relatório.
O documento destacou algumas falas de Bolsonaro, como chamar a Covid-19 de "gripezinha", enquanto "promove discursos antivacinas e anti-isolamento, piorando as taxas de infecção e causando uma crise de informação com discursos altamente polarizados". Desde janeiro de 2019, quando assumiu o cargo e ainda não havia pandemia, Bolsonaro fez 2.187 declarações falsas ou distorcidas.
O problema da desinformação não se limitou ao Brasil, tendo se espalhado rapidamente nas redes sociais e aplicativos de mensagens de vários cantos do planeta. O tipo mais perigoso, diz o relatório, "tem sido as teorias de conspiração sobre minorias étnicas que espalham a doença e o discurso de ódio, traduzidas em discriminação e violência no mundo real, remédios caseiros espúrios para a prevenção ou cura do vírus e propaganda — tanto por autoridades políticas nacionais quanto estrangeiras".
Ataques à imprensa
O levantamento aponta ainda 464 declarações públicas de Bolsonaro, seus ministros ou assessores próximos atacando ou deslegitimando jornalistas. "Essas atitudes influenciam as autoridades locais e se manifestam em atitudes, assédio e ações judiciais contra jornalistas. Esse nível de agressão pública não era visto desde o fim da ditadura militar. A crescente hostilidade social contra jornalistas e seus efeitos desencorajadores não devem ser subestimados", diz o relatório.
Além disso, houve 254 violações no Brasil contra jornalistas e comunicadores em 2020, das quais 123 perpetradas por agentes públicos e 20 constituindo casos graves, como homicídios, tentativas de homicídio e ameaças de morte.
Outro problema foi o aumento no uso da Lei de Segurança Nacional, da época da ditadura militar "como arma contra manifestantes e jornalistas que desafiaram o presidente por sua falta de ação, mesmo com o aumento das evidências do escopo da emergência da Covid-19".
No mundo todo, 62 jornalistas foram mortos e 274 presos. Os países com mais prisões foram China, Turquia e Egito. "As prisões quadruplicaram de março a maio de 2020, e o assédio e os ataques físicos aumentaram em todo o mundo — do Brasil à Itália, Quênia, Senegal e Nigéria", diz trecho do sumário executivo do relatório.
Apesar das críticas a Bolsonaro e outros governos mundo afora, o relatório apontou o papel de algumas instituições como freio ao autoritarismo: "Algumas instituições demonstraram resiliência — governos regionais e Congresso foram um contrapeso efetivo no Brasil, enquanto o Judiciário no México bloqueou algumas das iniciativas mais problemáticas de López Obrado [presidente do país]."
Queda global na liberdade de expressão
Na escala de liberdade de expressão, que vai de 0 a 100 e é calculada a partir de 25 indicadores, o Brasil teve 52 pontos. É a pior pontuação da série, que começou em 2010, e é a mesma da Colômbia e do Gabão, ficando logo abaixo do Haiti, que teve 53 pontos. As melhores pontuações foram da Dinamarca e Suíça, com 95, e a pior foi da Coreia do Norte, que zerou. Na América Latina, os melhores resultados foram de Uruguai (92), Costa Rica (89), Argentina (88) e República Dominicana (87).
Em 2010, o Brasil tinha uma pontuação bem melhor: 89. Em 2015, ficou em 86. A primeira grande queda foi em 2016, quando obteve 73 pontos. Em 2017 e 2018, ficou em 66 pontos. Em 2019, nova queda, para 54 pontos. Países que têm entre 40 e 59 pontos entram na categoria de expressão restrita. Já aqueles entre 80 e 100 estão na categoria de expressão aberta, a melhor possível.
"Nos últimos cinco anos, o Brasil deixou de ser um dos países com maior pontuação mundial para ser considerado uma crise de democracia e expressão – e agora também uma crise de saúde pública. O Brasil é a perfeita avalanche contemporânea de problemas de expressão: populismo autocrático, desinformação, desigualdade severa e controle tecnológico. A pandemia consolidou as tendências observadas no último ano", diz o relatório.
No mundo em geral, o relatório também mostra uma queda no grau da liberdade de expressão e imprensa. Ao todo, 61 países analisados têm pontuação inferior a 40, ou seja, são considerados em crise ou com altas restrições, o que dá 64% da população global. Em 2010, tais pontuações abrangiam 32% da população no mundo. E pelo menos 57 governos usaram a pandemia de Covid-19 como pretexto para limitar a liberdade e a democracia.
O aumento do autoritarismo é atestado por outros índices. Em 2010, 48% da população mundial viviam eu autocracias. Em 2020, passou para 68%. No ano passado, 96 países cometeram violações moderadas ou graves à democracia. Em 29, houve 155 desligamentos da internet. Também foi constatada a diminuição da privacidade e o aumento da vigilância, e um crescimento das demissões e cortes salariais de jornalistas no mundo todo.
Também foram registrados 331 mortes de defensores de direitos humanos, das quais 264 na América Latina. A Colômbia sozinha foi responsável por 53% dessas mortes no mundo todo.