Após um acordo no partido, a deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) deverá assumir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O colegiado é o mais importante da Casa, responsável por analisar a legalidade e constitucionalidade de todos os projetos, além da admissibilidade de Propostas de Emenda à Constituição (PEC) e de pedidos de impeachment contra o presidente.
A parlamentar é investigada no Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news e, com frequência, usa as redes sociais para se posicionar contra medidas de distanciamento social, citadas por cientistas como necessárias para conter a disseminação do coronavírus — a deputada comemorou o fim do lockdown em Manaus, que ocorreu poucos dias antes de o sistema de saúde da cidade entrar em colapso. Em outra frente, investigadores à frente do inquérito das manifestações antidemocráticas concluíram que a deputada usou verba da cota parlamentar para propagar os atos nas redes sociais.
O acordo foi selado após a definição de que Luciano Bivar (PSL-PE), presidente do partido , deve ficar com a primeira secretaria, cargo na Mesa Diretora. A ideia é pacificar as duas alas do PSL , a de Bivar e a bolsonarista, rompidas desde 2019. Dentro desse arranjo, o líder do partido será Vitor Hugo (PSL-GO), ex-líder do governo de Jair Bolsonaro.
"Foi um acordo para selar a paz", disse Bia Kicis ao Globo.
O PSL tinha direito à indicação na CCJ por ser o maior partido do maior bloco que concorreu nas eleições da Câmara em 2019. Felipe Francischini (PSL-PR) ficou à frente da comissão antes da pandemia, durante o mandato de Rodrigo Maia (DEM-RJ), pelo mesmo motivo. No Twitter, a deputada comemorou a notícia de sua futura indicação à CCJ mais cedo nesta terça-feira, dizendo que será uma "grande honra" presidir a comissão.
Bia Kicis é investigada no STF pela disseminação de notícias falsas em redes sociais. Ela já compartilhou algumas vezes conteúdo enganoso sobre a pandemia da Covid-19 e prega contra o uso de máscaras e o distanciamento social. A deputada também fez comemorações públicas sobre o fim do lockdown em Manaus e parabenizou a população que se mobilizou contra a restrição.
“A pressão do povo funcionou em Manaus . O governador voltou atrás em seu decreto de lockdown. Parabéns, povo amazonense, vocês fizeram valer seu poder”, publicou Kicis no Twitter no dia 27 de dezembro, dias antes do sistema de saúde da capital Amazonense entrar em colapso pela falta de oxigênio para atender os casos, em alta, da Covid-19.
A parlamentar também viralizou nas redes sociais, no início deste ano, quando apareceu em vídeo ensinando um “truque maravilhoso” para não usar máscara de proteção contra a doença.
Em outro episódio, em maio de 2020, a aliada de Bolsonaro defendeu no plenário da Câmara que houvesse uma intervenção militar caso alguém impedisse o presidente de governar. No discurso, ela afirmou que havia uma “engenharia do pânico” sobre a pandemia do novo coronavírus, e se baseou no artigo 142 da Constituição Federal para sustentar a influência das Forças Armadas.
“Nossa Constituição previu, sim, um poder moderador, que alguns talvez, por desconhecimento, atribuam ao STF (...) Inúmeras vozes têm tratado como criminosos os que não veem outra solução no desespero se não pedir ao Chefe do Executivo o emprego do art. 142, como se tal dispositivo não fizesse parte da Constituição. Tratam um dispositivo constitucional como pauta ilegítima, como clamor pelo golpe. Isso é uma mentira e nós aqui sabemos disso”, discursou.
No Twitter, o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) afirmou que o acordo fará com que a CCJ seja presidida por "uma disseminadora de fake news, negacionista, sabotadora do combate à pandemia e apoiadora dos atos pelo fechamento do Congresso e do STF". A correligionária Fernanda Melchionna também reagiu ao anúncio e afirmou que ter na presidência da comissão “uma negacionista científica em meio a pandemia é decretar a morte do povo”.
Além de investigada no STF, Bia Kicis está envolvida em disputas judiciais contra adversários políticos. Ela move ações contra o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), seu ex-colega de partido, e também em desfavor do ex-deputado Jean Willys (PSOL-RJ), que já a processou também. No caso de Frota, por exemplo, o tucano é acusado de difamação.
Cientista político vê afronta
Para o jurista e cientista político Christian Lynch, professor o Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), a indicação da deputada para o comando da CCJ soa como se o bolsonarismo estivesse tentando "trollar" (gíria da internet equivalente a "zoar" ou "aplicar um trote") o Judiciário, sobretudo o Supremo.
"É um verdadeiro caso de 'trolagem' constitucional contra o STF . O intuito é afrontar o ministro Alexandre de Morais e todo o trabalho executado por aquela Corte na defesa do Estado de Direito democrático contra o vandalismo constitucional perpetrado pelo bolsonarismo", afirma Lynch, em referência às manifestações antidemocráticas.
Na avaliação do estudioso, a chegada de Bia Kicis à CCJ pode ter efeitos limitados, já que eventuais violações constitucionais podem ser rediscutidas no plenário da Câmara ou até mesmo em ações na Justiça. Ele defende que o principal impacto da indicação está relacionada à mais alta Corte do país, com a anuência de Lira, recém-eleito pelos deputados.
"Querem transformar a Constituição num documento oco, vazio de valores e alma, um documento meramente formal. E ainda submeter o Judiciário e o Ministério Público ao Executivo e ao Legislativo É bom lembrar que Lira também é processado por corrupção, e também pode lhe interessar desacatar o STF", completa Lynch.