Um equívoco que as mulheres negras querem evitar é a ideia de que todas são iguais. Parece óbvio, mas não é. A tentativa de homogeneizar também é uma ferramenta do racismo e do machismo: serve para apagar a diversidade de experiências econômicas, sociais, de locais de origem, sexualidade e gênero que marcam as trajetórias de mulheres negras – e de todos os seres humanos.
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No país, as mulheres negras são 55,6 milhões. Na composição da Câmara Federal, entretanto, em 2018 foram eleitas 13 parlamentares negras de um total de 513 vagas.
A diversidade, portanto, precisa ser celebrada como potencialidade. Essa é uma das ideias que defendem as mulheres, movimentos e organizações que participaram do Fórum Nordeste Mulheres Negras e Poder, que aconteceu no Recife e Olinda, em Pernambuco, entre 6 e 8 de fevereiro. O evento reuniu 100 mulheres e pré-candidatas nordestinas para o pleito de 2020.
Em outubro, a primeira eleição municipal após eleição de Bolsonaro – que ainda candidato à presidência demarcou que não estava ao lado das mulheres – pode ser um divisor de águas. As mulheres, especialmente as mulheres negras, entenderam que é urgente ocupar lugares de poder. Este projeto, que poderia ser de médio ou longo prazo, é para agora.
Rosa Marques, integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e uma das organizadoras do Fórum, avaliou como fundamental o encontro, que também contribuiu para mapear, articular e mobilizar mulheres negras pré-candidatas nordestinas. “Percebemos nossa força de aglutinar, possibilitar diálogos diversos e conhecer quem está nesse processo de candidatura”, afirmou.
Como resultado, foram construídas proposições para fortalecer as candidaturas que se efetivarem como, por exemplo, a realização de planejamentos e formação de assessorias para as futuras candidatas, além de mobilizar apoios políticos e realizar campanhas de voto em mulheres negras.
Segundo a organização, cerca de 60 mulheres pré-candidatas em municípios do Nordeste marcaram presença [ver mapa]. Vinte e cinco delas são de Pernambuco.
Decidir enfrentar a disputa eleitoral é o primeiro passo. Não significa que todas conseguirão formalizar as candidaturas. Esse outro desafio também foi um dos principais temas de debate durante os dias de Fórum: como viabilizar que candidatas negras recebam apoio dos partidos e possam construir campanhas competitivas. Foi possível escurar frases como “não seremos laranja, nem mesmo de partidos de esquerda” ou “só os 30% da cota para mulheres não bastam”.
Conversamos com pré-candidatas de sete estados nordestinos para entender os contextos locais, a pluralidade de experiências, as construções políticas e também onde as mulheres negras se encontram com uma pauta unificada. LBTs (lésbicas, bissexuais e trans), militantes da partidos ou não, ativistas e lideranças comunitárias da cidade e do campo compõem esse universo multifacetado. Confira abaixo.
Ceará
De Fortaleza, cinco mulheres compõem a pré-candidatura coletiva à vereança chamada Nossa Cara. Seguindo o exemplo das Juntas Codeputadas, de Pernambuco, vindas de movimentos sociais diversos ( pelo direito à moradia, movimento estudantil, direitos da criança e adolescentes e o desencarceramento), as cinco mulheres que já se conheciam das lutas convergiram diálogos na construção do Ocupa Política, no Recife, em 2019. Sarah Menezes, Ana Lídia, Adriana Gerônimo, Louise Santana e Alessandra Félix compõem a pré-candidatura, que foi apresentada ao Psol, partido ao qual algumas já são filiadas.
“A gente não tinha ideia de fazer uma campanha para 2020. A nossa ideia era construir um processo para 2022, mas a emergência do processo não deu para esperar. Os coletivos e movimentos que a gente faz parte apontaram que não dá para esperar. É urgente”, explica Adriana.
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O contexto local é desafiador, e por isso também empolga as pré-candidatas: na Câmara Municipal, das 43 cadeiras, apenas 6 são ocupadas por mulheres – apenas uma é de esquerda. Nenhuma negra.
“A gente quer construir a política com a nossa cara. No Ceará é muito comum dizer isso. Achamos que o nome era muito convocatório”, conta Lídia, sobre a ideia do nome da candidatura. “A partir de uma crítica ao personalismo, a gente quer alargar a política. Hoje a política está institucionalizada nas casas legislativas, mas não é isso que queremos. Queremos política que esteja impregnada no cotidiano das pessoas”, completa.
A Nossa Cara, por ser composta apenas por mulheres negras, também parte de uma postura antirracista. O desafio de trazer ideias e propostas oriundas de diversas coletividades é uma potência, como explica Sarah Menezes. “As propostas de coletividade geralmente não vêm de dentro dos partidos, vêm de atitudes que as mulheres e, nós mulheres negras, temos para a sociedade. O que temos aliançado entre nós é essa ideia de que somos mulheres negras e quando o mundo prestar para as mulheres negras, vai prestar para todo mundo. Essa é nossa proposta de sociedade”, diz.
Bahia
Integrante de diversos movimentos de mulheres negras da Bahia, Denize Ribeiro é professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano e mora em São Félix, município do Recôncavo com cerca de 17 mil habitantes e 7 vereadores. Apenas uma mulher. É lá que Denize lançou sua pré-candidatura a vereadora. Apesar de ser a primeira vez que se dispõe a um pleito eleitoral, ela tem experiência em campanhas – trabalhou em diversas ao longo das últimas décadas.
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Em sintonia com outras mulheres do estado, a exemplo de Wilma Reis (pré-candidata pelo PT à prefeitura de Salvador), tomou para si a missão de colocar em prática a vez das mulheres negras. “Não vamos mais deixar nossas vidas serem decididas por homens. Homens decidindo sobre aborto, sobre creches, pautas nossas que eles engavetam porque não interessa. Precisamos ter representação de mulheres negras, de periferia nesses espaços”, afirma.
A candidatura será pelo Psol, mas a construção política passa pelo movimento de mulheres negras, explica Denize, que também se apoia no Fórum Marielles, coletivo formado em 2019 para incentivar mulheres negras em espaços de poder. “A luta cotra o racismo e machismo está na minha agenda há mais de 30 anos”, conta. “Em 2019 nos reunimos para fazer homenagem a Marielle Franco e uma coisa que chamou nossa atenção é que só conhecemos a história de Marielle depois da morte dela. O próprio partido isolou ela. A gente se viu na mesma situação, éramos todas Marielles”, relembra.
Maranhão
Do município de Timon, já na divisa com o Piauí, Eliana Silva, professora e militante do movimento negro maranhense também é uma estreante na disputa eleitoral. Pré-candidata pelo Partido dos Trabalhadores, constrói também a política partidária desde a juventude. “Tenho uma trajetória de militância dentro do PT, o que mudou para que hoje eu possa postular uma vaga é que a conjuntura nos convoca a dar a cara a tapa”, conta. Para ela, a revolução precisa ser feita com a ocupação dos espaços de poder e, para isso, a construção partidária é inevitável, mas também considera saudável o debate com espaço para crítica.
“Se a gente não estiver nos espaços de poder não temos como fazer as políticas de ações afirmativas que precisamos. Posso falar que, desde 2016, no pós-golpe, o crescimento do neoliberalismo e do conservadorismo avassalador é um elemento que conta. Não quero dizer que estava bom com o PT, mas depois disso as coisas pioraram”, avalia.
Paraíba
A organização da luta dos trabalhadores rurais é a base da militância de Maria Leônia Soares, agricultora em Massaranduba, interior da Paraíba. Ao longo dos anos, construiu também a militância dentro do PT, partido pelo qual deverá sair candidata. “Dentro do meu município a política sempre foi muito perversa e violenta, ocupada por famílias de fazendeiros”, conta, mas, apesar disso, reconhece que será um desafio o partido legitimar e apoiar sua candidatura.
Foi por meio do sindicato que despertou para as pautas das mulheres rurais. Hoje, ela integra também o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais. “Historicamente o movimento sindical sempre foi ocupado por homens. Vi, por exemplo, que as mulheres estavam em condição de invisibilidade. Quando iam dar entrada em aposentadoria eram os homens que iam, os homens que falavam. Quando a gente forma a comissão de mulheres, a fazer reuniões e mutirões, produzir remédios caseiros as mulheres foram se unindo. Hoje em dia a maioria das associações são lideradas por mulheres”, conta.
Uma das principais pautas de sua pré-candidatura é a violência contra a mulher e o fechamento das escolas do campo, duas questões que, segunda ela, muitas vezes não são priorizadas mesmo por vereadores de esquerda.
Piauí
No município de Amarante, no interior do Piauí, existem três comunidades quilombolas. Apenas uma delas tem o reconhecimento oficial do território, o Quilombo Mimbó. É de lá que vem Marta Paixão, 36 anos, diretora escolar. Pré-candidata pela primeira vez, a principal motivação é garantir a atenção do município às políticas de apoio à população quilombola. A falta de investimento em educação, saúde e transporte são alguns dos principais problemas que as comunidades enfrentam. “Sou do primeiro quilombo registrado no Piauí, mas ainda assim enfrentamos muita rejeição e discriminação”, conta.
A indicação do seu nome foi uma proposição das próprias comunidades quilombolas e conta com base forte do movimento de mulheres negras no Piauí. “Estamos cansados de sermos mandados. Entendemos a importância de ocupar uma cadeira na Câmara”, diz. Ela é filiada ao PT, mas confirmou que recebeu convites de ao menos três outras legendas depois de revelar a intenção de sair candidata. No município, há apenas uma vereadora mulher, mas que está alinhada a pautas que, segundo ela, não defendem interesses das mulheres. “A questão maior é da rejeição das mulheres. Lá o pessoal apoia mais homens”, explica.
Rio Grande do Norte
Pré-candidata à vereadora de Natal, capital do estado, Elizabeth Lima, assistente social e militante do movimento negro e de mulheres negras desde os 17 anos, decidiu se candidatar pela primeira vez, após rejeitar outros convites, por entender que nunca as condições estarão perfeitas. Não dá para esperar que estejam favoráveis. “As condições nunca permitiram, como ainda não permitem, mas hoje há uma reflexão mais intensa de que é preciso ocupar esse espaço”, explica.
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Filiada ao Partido dos Trabalhadores, ela ainda espera a definição do cenário eleitoral para saber se a candidatura será viável, mas colocou o desejo de construir a partir dos desafios diários de ser uma mulher negra. “O legislativo é um espaço predominantemente machista e eurocêntrico. Temos responsabilidade de ocupar todos os espaços”, argumenta.
Sergipe
Josineide Dantas, mais conhecida como Gigi Poetisa, se apresenta como uma mulher afroindígena, bissexual e mãe solo. Além disso, como diz o apelido, é poetisa, atuando como militante no campo da cultura, do movimento periférico, de juventude, LGBT e também nos movimentos indígena e negro. “Minha inserção na política sempre foi por acreditar em uma democracia, em um ambiente que todos tenham direito e que o Estado tire nosso povo de situação de exclusão. Tenho fama na minha terra de acolher toda gente excluída”, conta.
Ela é pré-candidata à Câmara Municipal de Aracaju, mas não será a primeira vez que disputou uma eleição. Ela tem um histórico de candidaturas pelo PT, partido ao qual foi filiada por anos, mas atualmente está no Psol e tentará o pleito pela legenda. Com 25 anos de militância também partidária, não esconde as críticas aos partidos, mesmo os de esquerda: “Tenho uma frase que diz que os partidos de direita são racistas e os partidos de esquerda hoje são racistas e festivos”. A fala dura é dita sem firulas, na lata, e diz muito sobre a necessidade de debater os projetos políticos dos partidos. “Temos que estar atentas e participar das construções partidárias para garantir os projetos”, pondera.
Formação para ocupar o poder
Com uma perspectiva prática e também reflexiva, o Fórum reuniu tanto parlamentares já eleitas para compartilhar os desafios e experiências das campanhas eleitorais quanto intelectuais e profissionais da comunicação para pensar estratégias de como chegar ao poder e construir uma política conectada à população negra, em especial às mulheres. O evento teve participação de da deputada Érica Malunguinho (SP), deputada Marilene Alves (MG) e a codeputada Robeyoncé Lima (PE).
Os debates e palestras deram conta de assuntos como mídia, relações de poder, estratégias e fortalecimento das mulheres pré-candidatas, racismo, feminismo, democracia, disputas de narrativas à inserção das mulheres negras nas esferas partidárias e a questão da segurança de parlamentares e de candidatas.
O evento faz parte das ações do Projeto Mulheres Negras e Democracia, realizado pelas ONGs Casa da Mulher do Nordeste, Centro das Mulheres do Cabo e Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste, em parceria com a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e Rede de Mulheres Negras do Nordeste, com o apoio do Fundo Mujeres Del Sur.