Em 2019, no Brasil, inverteu-se um dos mais reconfortantes ditados populares. Diz ele que “a esperança é a última que morre”. Pobre de nós, foi a esperança a primeira a morrer. Tratava-se de um ano que prometia ser melhor, acreditávamos que seria um tempo de reconstrução e recuperação estrutural da economia, da política, do esgarçamento das relações sociais. Isso, aliás, não somente no País, mas também em diversos pontos do mundo: havia o sonho de que o radicalismo cedesse espaço ao diálogo, que as tentativas de golpes autoritários perdessem para o fortalecimento das democracias, que os antagonismos exacerbados incorporassem a lógica dialética da necessidade de opostos para que as organizações sociais escalem os patamares civilizatórios. Nada disso se viu, 2019 fez-se um ano anuviado. Um ano sombrio, muito sombrio.
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Fixemo-nos, primeiramente, no Brasil. Era óbvia a dedução que teríamos um governo conservador, pois era isso que o então candidato Jair Bolsonaro anunciava nos palanques. Esperava-se, então, que tomada a posse na Presidência da República, no primeiro dia do ano, ele colocasse o Brasil em um governo liberal na economia e conservador nos costumes, como propõe o conservadorismo clássico. Até aí, nenhuma novidade. O conservadorismo, se de fato é conservadorismo e não reacionarismo, compõe-se de um Estado não intervencionista, de uma política econômica que aposta na livre iniciativa e de um sistema de governo que respeita as garantias fundamentais. Ao longo do ano, no entanto, amargamos o inverso: o Estado intrometeu-se mais do que nunca na regulação da vida social e econômica do País, aparelhando a máquina burocrática do poder; no plano político, a inconstitucionalidade correu livre; na área comportamental, a gestão Bolsonaro optou por tudo que há de reacionário. Isso não é ser conservador nem liberal, isso é ser retrógrado. Acentuou-se, assim, o retrocesso.
Quem viu Bolsonaro desfilar em carro aberto no dia da posse, ao lado de sua esposa e primeira-dama, Michelle, talvez tenha intuído que a coisa desandaria para o autoritarismo, para um governo familiar característico de republiquetas de fundo de quintal. Uma indagação pairava no seco ar de Brasília: afinal, o que um de seus filhos, o vereador Carlos, estava fazendo no Rolls Royce presidencial? Mais que quebra de protocolo, essa novidade apontava para o sintoma de uma doença que leva a democracia e o Estado de Direito ao cemitério: não era só o capitão quem ganhara a Presidência, todo o clã Bolsonaro se acharia no direito de reinar. Assim é o despotismo conhecido na história como “não esclarecido”. E a coisa logo iria degringolar! Veio o carnaval e o capitão deu um espetáculo de banalização de seu cargo ao reproduzir nas redes sociais uma cena de golden shower. Imagina se isso é coisa para presidente fazer! Mais: ficou um tempão falando dela, assim como, em diversas ocasiões, inesperadamente passava a falar de pênis, da higiene do pênis, coisas desconectadas de seus deveres republicanos — diversificou depois os temas, mas o desplugamento durou o ano inteiro.
Infanticídio
Bolsonaro tagarelou sobre tudo que o mantivesse em polêmicas na mídia, e foi seguido por alguns de seus ministros, a exemplo de Damares Alves , Ernesto Araújo, Abraham Weintraub — todos ideologicamente no campo da direita. Com a devida licença do genial e saudoso Sérgio Porto, um novo FEBEAPÁ (“Festival de Besteira que Assola o País”) daria para ser escrito. Foi assim com as queimadas na Amazônia e seu desmatamento recorde, foi assim nas questões envolvendo demarcações indígenas, foi assim em relação às religiões, foi assim no que diz respeito aos assuntos sobre gênero, foi assim no corte de verbas das universidades, foi assim no desmantelamento da cultura, foi assim em matéria de política externa na qual o capitão cedeu a todos os caprichos do presidente americano, Donald Trump, sem nos trazer nenhuma contrapartida. O governo Bolsonaro, se quisermos resumi-lo, foi uma falação só. Ofensas à mídia, criação de animosidades, ampliação da intolerância. E, como se imaginara, seus três filhos políticos azucrinaram a Nação: dentre tudo o que fizeram podemos destacar a responsabilidade pela queda de ministros competentes (leia-se Carlos), o envolvimento em corrupção (leia-se Flávio e o intocável Fabrício Queiroz), o autoritarismo medular por meio de ameaças com o AI-5 (leia-se Eduardo, o que queria ser embaixador nos EUA e fez gesto de revólver na ONU diante do monumento pela paz). Não restava dúvida de que o clã desconstruiria o máximo possível os valores republicanos, fórmula corriqueira do populismo para se eternizar no poder. O tempo todo, jogando ao lixo as prioridades em um País onde o desemprego mata gente de fome, o presidente só se preocupou em cuidar de sua reeleição. A nossa esperança com um ano melhor foi vítima de infanticídio.
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Pecado da omissão
Enquanto Bolsonaro não governou, Legislativo e Judiciário protagonizaram cenas da vida política brasileira. A Reforma da Previdência , proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, finalmente passou no Congresso graças ao talento nas articulações políticas do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Bolsonaro virou as costas aos parlamentares, se dependesse dele a reforma não teria sido aprovada.
Melhoraram um pouco os índices de emprego formal e de inflação, mas não precisamos do diploma da Escola de Chicago para saber que isso acontece naturalmente em meio à inércia de crises — são espasmos de abiogenése. Ou seja: além da óbvia Reforma Previdenciária, o governo nada realizou para tirar o Brasil do atoleiro econômico. Quanto ao Judiciário, ele fez-se notar por meio do STF, sobretudo em duas questões. Primeira: ao promover o retrocesso jurídico com a decisão de que o cumprimento de sentença penal condenatória só pode ter início após julgamento em terceira instância. Segundo: ao determinar, acertadamente, que dados da Receita Federal, Banco Central e Unidade de Inteligência Financeira podem ser compartilhados com órgãos de investigação, sem prévio aval da Justiça. Reabriram-se, assim, as investigações sobre Flávio Bolsonaro, suspensas em meados do ano por decisão monocrática do presidente do STF, Dias Toffoli.
Em um ano sombrio, dois crimes bárbaros nos assombraram. Um deles, ocorrido no Rio de Janeiro, foi o assassinato do pastor Anderson do Carmo, marido da deputada federal e também pastora Flordelis dos Santos Souza. Eles adotavam crianças (mais de meia centena) como quem coleciona meninos e meninas. Hoje, já não resta dúvida de que pelo menos dois desses filhos adotivos mataram o pastor como vingança por suposta traição sexual. O outro crime, pouco frequente no País, aconteceu na cidade paulista de Suzano: dois ex-alunos da Escola Estadual Professor Raul Brasil invadiram o colégio e assassinaram estudantes e funcionárias. Ambos os casos expõem, além da maldade pessoal dos criminosos, uma sociedade na qual o pacto de urbanidade se rompeu. Uma sociedade, enfim, enlouquecida. Enraivecida a partir do ódio destilado pelos donos do poder.
Não joguemos a culpa na natureza nem no destino, como se fôssemos personagens de uma tragédia da dramaturgia grega. O homem peca com maior gravidade pela omissão do que pela ação, ensina-nos um dos maiores pensadores de todos os tempos, padre Antônio Vieira. A omissão dos responsáveis pela companhia Vale levou ao rompimento de barragens na cidade mineira de Brumadinho: duzentos e setenta mortos. A omissão do Ministério do Meio Ambiente fez arder a Amazônia. A omissão daqueles que deveriam patrulhar os nossos mares permitiu o vazamento de óleo de um navio, até agora fantasma, poluindo e destruindo cerca de quatrocentas praias brasileiras.
Curto-circuito e lágrimas
O prenúncio de que o ano seria aziago deu-se no começo de 2019, quando dez jogadores adolescentes do Flamengo morreram queimados no alojamento, conhecido como “ninho do urubu”. Fora do Brasil, um curto-circuito nos levou às lágrimas, e com elas olhamos para a França. Até agora é difícil crer, porque a tristeza gera mesmo processos psíquicos de evitação, que a Catedral de Notre-Dame, um dos principais monumentos históricos do planeta, tenha sido destruída pelo fogo. Não bastasse essa dor, também choramos por uma União Europeia que continuou a se esfacelar com o fortalecimento do Brexit e a ascensão de partidos nazistas.
Há resistência ao totalitarismo, e prova disso é a ação dos coletes amarelos franceses. Ou as milhares de pessoas tomando as praças de Hong Kong a exigirem independência e liberdade. De volta à America Latina, 2019 também mostrou-se tumultuado com violentas manifestações. São protestos berrando “não” ao autoritarismo, e isso é excelente: na Bolívia, o povo mandou para o exílio o presidente fraudador de eleições Evo Morales; no Chile, o povo lota as praças gritando contra o status quo, e o lado sombrio fica por conta da brutal repressão. Tanto na Europa quanto na América do Sul ou Hong Kong, as mobilizações populares se iniciaram com detalhes do dia a dia e se tornaram um avassalador tsunami contra o establishment. Mas houve um fato, que não tem nada a ver com tudo que foi dito antes, que deu luz ao ano sombrio.
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O lôbrego ambiente quebrou-se com a canonização da primeira santa brasileira. Ela nasceu na Bahia e relacionou-se com políticos e gente rica para ajudar os pobres. Tinha um nomão: Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes. Maior ainda lhe era o coração. Trata-se de Irmã Dulce, que após a canonização é Santa Dulce dos Pobres. Ela nos abençoará em 2020, mas como boa santa também tem os seus caprichos: em relação a políticos e homens públicos, só ajudará aqueles de boa vontade.