A Justiça Federal em Goiás condenou dez policiais militares pelo crime de tortura qualificada, a penas de prisão que chegam a oito anos, e determinou que eles cumpram a sentença em regime fechado.
O caso dos PMs agora condenados em primeira instância é o primeiro envolvendo uma federalização das investigações por tortura praticada por policiais. As conclusões da investigação e a existência de uma denúncia pelo Ministério Público Federal (MPF) foram reveladas pelo GLOBO em janeiro de 2018. A reportagem mostrou que seis dos dez PMs haviam sido promovidos pela corporação.
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A sentença de 280 páginas foi assinada ontem pelo juiz federal Leão Aparecido Alves. Além da condenação à prisão com início de cumprimento em regime fechado, ele determinou que a vítima de tortura seja reparada com um valor de cinco vezes do rendimento bruto de cada um dos PMs envolvidos. Os policiais devem perder os cargos, inclusive os que estão na reserva, e serem impedidos de exercer funções públicas, conforme a sentença. Cabe recurso contra a decisão em instâncias superiores. O juiz permitiu que eles recorram em liberdade.
O PM que teve a principal condenação, a oito anos de prisão, comandou por três anos as escolas militares em Goiás, até janeiro deste ano. As outras penas aplicadas variam de 85 a 94 meses de prisão.
“Nos crimes perpetrados na clandestinidade, como é o caso da tortura, a identificação dos responsáveis pelas agressões depende quase que exclusivamente da palavra da vítima”, afirmou o juiz responsável pela sentença. A palavra da vítima se somou às provas levantadas e confirmadas pela Polícia Federal (PF).
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“Este Juízo tem o maior respeito pelas pessoas que colocam suas vidas em risco para defender a segurança da comunidade e promover o respeito às leis. Este Juízo agradece imensamente a todos os integrantes das forças de segurança pela atuação decidida e leal em defesa da sociedade. Aqui, todavia, diante dos fatos disponíveis aos acusados, em 24 de junho de 2010, não havia a menor possibilidade de que eles pudessem ter cometido um equívoco desculpável na realização e na manutenção da prisão da vítima.
Os réus tinham pleno conhecimento de que ele não estava em flagrante delito”, disse Alves. “Os policiais militares sabiam perfeitamente que eles não poderiam prender alguém que não estivesse em flagrante delito. Ademais, os réus admitiram que a vítima não estava em flagrante delito e que não havia ordem judicial para a prisão dele.”
O crime foi premeditado, segundo o juiz. “Os sequestradores não asseguraram à vítima os direitos mais básicos, presentes na Constituição, relativos à assistência da família e de advogado e a comunicação ao juiz competente.”
“A detenção de uma pessoa por agentes do Estado, sem ordem judicial e na ausência de flagrante delito, para que essa pessoa confesse crime de que é suspeito, por si só, já constitui tortura psicológica. Uma prisão fora do devido processo já é suficiente para causar profundo temor na vítima quanto ao seu destino. Afinal, se os agentes dos Estado não respeitaram a Constituição e a lei ao prenderem o cidadão, por que estariam dispostos a garantir a incolumidade dele?”, afirma o juiz na sentença. Como a tortura aconteceu dentro de um batalhão, e diante de outras circunstâncias levantadas, as penas foram majoradas.
O grupo de PMs é acusado de torturar um jovem para que ele confessasse dois estupros que não cometeu.
O caso ocorreu em junho de 2010, na cidade de Trindade, a 27 quilômetros de Goiânia. Desde então, diante da lentidão das apurações na esfera local, seis dos dez policiais foram promovidos — um deles por ato de bravura e outro por merecimento.
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A federalização foi pedida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e determinada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em fevereiro de 2015. A decisão do STJ revela que uma sindicância da própria PM goiana apontou a “responsabilidade disciplinar” dos policiais. O inquérito tramitou pelas Justiças Militar e comum, sem que a Polícia Civil fornecesse informações sobre o caso.
Um dos réus, o coronel Anésio Barbosa da Cruz, comandou por três anos o ensino em 36 colégios militares, onde estudam 5,6 mil crianças e adolescentes. Foi ele que recebeu a maior pena da Justiça Federal.
A prisão ilegal do jovem foi efetuada por quatro policiais, segundo a acusação: Itamar Xavier de Souza, Valtencir Borges Taquary, Cleuber Marques de Oliveira e Agnaldo Divino de Arruda. Itamar, em 2014, foi promovido a subtenente na PM por ato de bravura. Valtencir também virou subtenente, em 2012, por critério de antiguidade.
A detenção do jovem foi comunicada a um superior dos policiais, Anésio Barbosa da Cruz. “No deslocamento, com a privação ilegal de sua liberdade, a vítima sofreu agressões diversas, notadamente choques, por meio de equipamento específico e coronhadas de armas de fogo portadas pelos acusados”, afirma a denúncia. Anésio tinha “ciência” e “não apenas emulou a manutenção da restrição de liberdade, como determinou a condução ilegal da vítima ao 22º Batalhão”, cita a acusação.
Em 2016, Anésio foi promovido de tenente-coronel a coronel por merecimento. No mesmo ano, foi nomeado para o cargo de comandante de ensino policial militar.
De oito policiais presentes na sala da P2, onde ficou a vítima, seis praticaram agressões, segundo o jovem. Além dos responsáveis pela prisão, “presenciaram” e “coonestaram” a permanência da vítima no batalhão Aroldo Rodrigues de Andrade, Divino Carlos de Paulo, Hildeil Borges Ribeiro da Silva, Marcioni Cavalcanti Urzêda e Alan Marcelino da Silva. Os dois primeiros foram promovidos de major a tenente-coronel e transferidos à reserva remunerada em 2016, por mais de 30 anos de serviços prestados. Hildeil passou de cabo a terceiro sargento, por antiguidade, no mesmo ano.
“A vítima permaneceu a sofrer agressões até horário incerto, sendo que foi encapuzada e levada a uma região rural de Trindade e, ao menos durante o período de 9:06 a 11:49, ali sofrido mais agressões, por meio de afogamentos e choques, praticados por Valtencir, Aroldo, Hildeil e Alan”, cita a denúncia do MPF. Uma plataforma utilizada pela PF permitiu comprovar a presença dos quatro no local onde ocorreu a tortura.
Na ocasião da acusação pelo MPF, a PM de Goiás afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que “os fatos relatados são sobre um fato ocorrido em 2010, porém o processo ainda está em andamento”. “Não podemos afirmar que houve ou não o crime de tortura, de sorte que os acusados possuem o direito do contraditório e ampla defesa, conforme o princípio da presunção de inocência, instituto previsto na Constituição Federal de 1988, prerrogativa do acusado não ser considerado culpado por um ato delituoso até que a sentença penal condenatória transite em julgado”.