Em meio a uma contraofensiva ucraniana que começa a obter alguns ganhos no Sul do país, a Rússia tenta acelerar a realização de referendos para, sem qualquer tipo de respaldo internacional, anexar partes do território da Ucrânia, nos mesmos moldes do que aconteceu com a Crimeia em 2014. Contudo, autoridades em Kiev apontam que tal passo do Kremlin vetaria qualquer possibilidade de negociação futura entre os dois lados.
Nas últimas semanas, autoridades indicadas por Moscou em áreas ocupadas sinalizam que os preparativos para os referendos estariam em suas etapas finais, e eles poderiam ocorrer já no mês que vem. Oficialmente, a Rússia nega qualquer participação.
— O fato é que esses são planos dos moradores dessas regiões. Não somos nós que estamos realizando um referendo — declarou o secretário de Imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov.
As votações devem ser realizadas, de acordo com os planos do Kremlin, nas províncias de Donetsk e Luhansk — parcialmente ocupadas por separatistas pró-Moscou desde 2014, e agora sob controle quase total de Moscou — Kherson e Zaporíjia, onde as autoridades locais anunciaram, nesta segunda-feira, o início dos preparativos para um referendo.
— É hora de restaurar a justiça histórica. Estamos confiantes de que a região de Zaporíjia estará protegida de qualquer invasão como parte da Rússia — declarou, em evento, Yevhen Balitsk, indicado por Moscou para o comando da região. — Com base no princípio da livre escolha, tendo como principal valor a opinião de cada habitante de nossa região, declaramos nossa intenção de realizar um referendo sobre a entrada de Zaporíjia na Federação Russa.
Citando fontes do governo russo, a Bloomberg aponta que os processos estão sendo supervisionados por Sergei Kiriyenko, vice-chefe de Gabinete do Kremlin e que realizou várias visitas às áreas ocupadas — ele foi incluído na lista de sanções elaborada por governos ocidentais, como os EUA. Uma suposta data para a votação, segundo a Bloomberg, seria o dia 15 de setembro.
Caso se confirmem, os referendos seriam uma repetição do processo de anexação da Crimeia, em março de 2014, precedido por uma operação militar, de baixa intensidade, em meio ao caos da revolta que derrubou o governo pró-Moscou em Kiev.
Contudo, o contexto hoje é bem diferente: a Ucrânia está em meio a uma invasão militar russa de grande porte, que deixou dezenas de milhares de mortos e devastou cidades inteiras, especialmente nas áreas ocupadas.
Resistência
Apesar das ações russas para reforçar sua presença, como a troca de códigos internacionais de telefone, de sinais de TV e de internet, além da instalação das bandeiras nas ruas, grande parte da população vê a Rússia como uma força invasora, e há resistência por parte daqueles leais a Kiev.
Kherson, ponto central da ocupação russa no Sul, está sob intenso ataque das forças ucranianas: nesta segunda-feira, a ponte Antonovsky, um dos dois pontos de travessia do rio Dnipro, foi parcialmente destruída, o que deve atrapalhar as linhas de suprimento para a cidade.
Relatos em redes sociais mostram que uma balsa improvisada está sendo usada para o transporte de veículos. Representantes do Exército ucraniano afirmam que uma outra ponte na região também foi danificada.
Há combates ainda em Donetsk e Luhansk, embora os russos estejam no controle de quase toda a extensão dos dois territórios, e em Zaporíjia, especialmente nos arredores da central nuclear em Enerhodar, cuja situação é considerada crítica pela Agência Internacional de Energia Atômica: nos últimos dias, foguetes atingiram partes da usina, provocando estragos e um princípio de incêndio. O local está sob controle da Rússia desde março, e também é usado como uma “fortaleza” pelos militares.
No domingo, o presidente Volodymyr Zelensky afirmou que, se os planos para a realização de referendos saírem mesmo do papel, isso marcará o fim de qualquer possibilidade de negociação.
"A posição do nosso Estado continua a mesma de antes: não daremos nada nosso, e se os ocupantes seguirem o caminho desses pseudo-referendos, fecharão para si qualquer possibilidade de negociações com a Ucrânia e o mundo livre, que o lado russo certamente precisará em um determinado momento", declarou Zelensky.
Ele também afirmou que todos que “ajudarem os ocupantes de alguma forma”, se referindo à Rússia, “serão responsabilizados”.
Em entrevista ao jornal espanhol El País, Mikhaylo Podolyak, assessor de Zelensky e chefe das negociações com a Rússia, afirmou que as demandas ucranianas para que os dois lados voltem a conversar mudaram: ao invés da retirada das tropas de áreas ocupadas e um cessar-fogo, como queria inicialmente Kiev, a Ucrânia deseja agora a “derrota tática” da Rússia e a saída das tropas de todos os territórios ocupados após 1991, ano da independência do país, o que significa também a devolução da Crimeia.
"Se restar apenas um foco de tensão com a Rússia, será uma guerra sem fim. Se a Rússia não perder, continuará a provocar a Europa em enclaves como o da Transnístria [Moldávia], na Geórgia ou Norte do Cazaquistão", declarou Podolyak a El País.
Podolyak disse não acreditar que o acordo firmado entre Moscou e Kiev para liberar alguns portos ucranianos para a exportação de grãos sirva como primeiro passo para a retomada da diplomacia. Para ele, se trata de uma “pequena parte da guerra”, e que só saiu do papel graças à pressão da Turquia e da ONU, que mediaram o acerto.
Nesta segunda-feira, dois navios deixaram os portos ucranianos com cargas de soja e milho, e o porto de Pivdenny retomou as operações — ele é um dos três terminais incluídos no acordo firmado no final de julho. A expectativa, de acordo com o Ministério da Infraestrutura ucraniano, é de que três milhões de toneladas de grãos sejam exportadas a partir do porto por mês.
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