Uma guerra lançada por escolha e decisão de Vladimir Putin e que vai muito além de um conflito clássico entre duas nações: foi assim que o diretor do Centro Carnegie de Moscou, Dmitri Trenin, definiu a invasão iniciada pela Rússia há duas semanas na Ucrânia, um evento militar de proporções históricas e que tem como ponto central uma disputa entre Washington e Moscou.
— Essa não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que não é vista pela Rússia como sua maior inimiga. Ela é vista como um Cavalo de Troia, uma ponta de lança dos EUA — declarou Trenin, durante evento realizado por teleconferênca pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). — Não estamos lidando com uma crise regional, [mas] com uma crise mundial.
Ex-coronel dos serviços de Inteligência Militar da Rússia (GRU), Trenin se disse surpreso com o início da invasão — afinal, como apontou, havia sinais de que a diplomacia ainda funcionava antes dos primeiros disparos serem feitos, e os alertas emitidos pelo Ocidente pareciam mais ferramenta de pressão política.
— Olhando em retrospecto, parece que essa era a guerra mais esperada em tempos, muitos já falavam de um conflito no início de 2021, com a concentração de tropas na fronteira da Ucrânia. O governo dos EUA chegou a dar datas para uma invasão e tomou medidas, como a retirada de seus diplomatas para Lviv — firmou Trenin. — Mas não esperávamos uma invasão: não ficamos apenas surpresos, mas também chocados.
Até então, Trenin considerava que a concentração das tropas nas fronteiras era uma forma encontrada pela Rússia para fazer valer suas demandas de segurança ou objetivos estratégicos, como prefere o cientista político, em especial a relação da Ucrânia com a Otan e a presença da aliança militar ocidental em países do Leste Europeu. Uma pressão militar para a obtenção de resultados diplomáticos palpáveis.
— A Rússia insiste em ter uma zona tampão desmilitarizada em suas fronteiras, e o Ocidente não concorda com isso, essa é a questão. A Ucrânia, em si, não é uma questão: o país não vai entrar para a Otan, os EUA não o defenderão e não querem incluí-lo na zona de defesa da Otan — afirmou Trenin. — Putin quer um tratado, um acordo, assinado, ratificado, dizendo tudo isso.
'Consequências jamais vistas'
O cientista político considera que o Ocidente não levou a sério as palavras de Putin nas semanas anteriores ao início do conflito, em especial quando falava em "ameaças existenciais" à sua segurança, sendo uma delas a intensificação da parceria entre Kiev e a aliança. Segundo Trenin, quando as lideranças russas usam a palavra "existencial", significa que estão dispostas a lutar por seus pontos de vista não apenas com palavras.
— Pela lógica de Putin, se a diplomacia não trouxer resultados, a via militar é a única possível. Ele poderia ter seguido com as conversas se percebesse que um acordo estava próximo, mas acabou vendo as portas se fechando — afirmou, sugerindo que, em um cenário extremo, como um hipotético conflito direto com forças da Otan, o uso de armas nucleares poderia ser colocado sobre a mesa. — Se os aliados ocidentais interferirem na operação, Putin ja afrmou que poderiam sofrer consequências jamais vistas, e podemos imaginar o que isso significa.
Nesse cenário, Trenin acredita que a invasão foi decidida pelo próprio Putin, e que
eventuais vozes contrárias dentro do Kremlin não foram levadas em consideração — em suas consultas, como na infame reunião do Conselho de Segurança russomno mês passado, o presidente estaria apenas em busca de uma aprovação para a decisão que já hava tomado. Mas talvez nem o próprio Vladimir Vladimirovich saiba o que acontecerá daqui pra frente.
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— A política externa russa não pode mudar a menos que Putin queira, e por isso que digo que não é sobre a Ucrânia. As coisas não chegarão ao fim com um cessar-fogo, as sanções e os custos militares não vão acabar, isso é algo sem precedentes na Rússia, é um território desconhecido, e como o governo e o povo russos vão responder é algo ainda a ser visto — opinou.
Situação fluida
Hoje, 58% dos russos apoiam a guerra, ou a "operação militar especial" —como o governo ordenou como fosse denominada dentro do país a invasão—, segundo uma pesquisa divulgada na terça-feira por um grupo de pesquisadores independentes.
Mas vale apontar que a mídia independente — local e internacional — foi virtualmente banida da Rússia, assim como redes sociais como o Twitter e o Facebook. O discurso pró-Kremlin e as narrativas oficiais ganharam ainda mais destaque, e quem emitir opiniões dissonantes pode estar sujeito a uma nova lei que prevê até 15 anos de prisão.
— As coisas estão muito fluidas, e precisamos acompanhar fatores como um aumento no número de mortos, uma deterioração das condições no front — alertou Trenin. — Se tivermos problemas econômicos sérios, as coisas podem se tornar muito difíceis para as pessoas, e elas poderão mudar suas atitudes. As lideranças precisam entender isso.
Esse isolamento, aponta o cientista político, também deve atrapalhar na obtenção de um eventual acordo para colocar fim às hostlidades.
— As lideranças em Kiev são guiadas pelos EUA,e hoje acreditam que podem lidar com os russos como se elas estivessem cercando Moscou, não o contrário — afirma. — Não acredito em um acerto, acho que as forças russas terão que ficar por mais tempo que gostariam no país, creio em uma intensificação dos combates e e que ainda estamos nos estágios iniciais da guerra.
Olhando pelo aspecto histórico, Trenin vê as raízes da atual crise no que considera ter sido um erro, por parte do Ocidente, no trato com a Rússia depois do fim da União Soviética e da Guerra Fria. Em várias ocasiões, como em seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, Putin se "queixou" por Moscou ter sido relegada a um papel secundário nos novos arranjos políticos globais, ao mesmo tempo em que via a Otan se expandir em países que anteriormente eram sua zona de influência.
— Se você deixar de lado um país que tem ambições, recursos e armas nucleares, verá o resultado uma geração depois. Vejo muitos apontarem que a resolução do conflito se daria pela saída ou deposição de Putin, mas vejo como necessário abordar as pessoas em Washington, e estou pessimista quanto a isso — aponta. — A questão aqui é sobre a Rússia e os EUA, e os líderes dos EUA precisam se comprometer com a Rússia, tratá-la como um elemento de sua própria segurança. Até porque se algo estourar na Europa, os EUA não passarão incólumes.
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