Manifestação de seguidores do movimento QAnon
Tony Webster/Creative Commons
Manifestação de seguidores do movimento QAnon

Os Estados Unidos (EUA) viveram um cenário de terror na semana passada quando centenas de manifestantes pró-Trump invadiram o Capitólio , sede do Legislativo do país, durante a sessão que diplomaria o presidente eleito Joe Biden para assumir a presidência no próximo dia 20 de janeiro. Vestidos com roupas pretas e equipados com escudos, máscaras de gás e tacos de beisebol, a mobilização foi de seguidores da teoria conspiratória conhecida como QAnon .

Esse movimento tem como bandeira a ideia de que o presidente Donald Trump seria o líder de uma guerra secreta contra uma seita de pedófilos satanistas do alto escalão do governo dos EUA e de personalidades como Beyoncé e Hillary Clinton .

Após as cenas de depredação no Capitólio, que terminou com janelas do Capitólio quebradas e cinco pessoas mortas nos conflitos com a polícia, novas manifestações são previstas para o dia da posse de Biden e de sua vice, Kamala Harris.

De onde surgiu o QAnon?

O surgimento do QAnon ocorreu em 2017, quando um internauta que dizia ser integrante das "profundezas" do Estado norte-americano começou a fazer publicações com mensagens codificadas sobre o que estaria acontecendo na cúpula do governo.

Essa pessoa, que ficou conhecida simplesmente como "Q", utiliza a deep web para se comunicar com seguidores, o que permite o envio dessas informações sem que ela seja rastreada ou identificada. O nome do movimento vem da identificação que essa pessoa recebe acrescido de uma sigla para Anonymous (Anônimo, em tradução livre do inglês).

"A gente pode dizer, na verdade, que o 'Q' não existe. Essa comunicação é feita assim para que ninguém tenha nenhum tipo de responsabilidade sobre o que é dito. As pessoas se juntam de forma voluntária e essa rede acaba se tornando mais horizontal", diz o antropólogo David Nemer, do Departamento de Estudos de Mídia da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos.

Captura de tele de canal no Telegram do QAnon
Reprodução

Seguidores do QAnon usam o aplicativo Telegram para se comunicar

Cada vez que uma mensagem é enviada por "Q", milhares de pessoas se debruçam sobre o conteúdo da publicação para tentar desvendar o que ela significaria. Devido à recorrência desses comunicados, eles receberam o nome de "Q Drops". Em tradução literal, "drops" significa "gotas", mas nesse caso poderia ser interpretado como "vazamento".

Também faz sentido pensar que "drop", que é um verbo que significa "soltar", se refira ao ato de deixar alguma informação "cair", já que as mensagens seriam enviadas por alguém do alto escalão do governo dos EUA.

Segundo Nemer, a última das ocasiões em que uma publicação de "Q" viralizou na internet foi quando se criou a alcunha "Operação Tempestade". Inicialmente não se sabia a que esse termo fazia referência, mas após a invasão do Capitólio, os conspiracionistas passaram a atribui-lo a esse acontecimento.

"Eles relacionaram esse termo à incitação que Trump fez para que manifestantes invadissem o Capitólio. É isso que eles fazem. Eles jogam termos criados com base em teorias da conspiração para ver se esses acontecimentos se confirmam. Nesse caso ela deu certo", afirma o especialista.

Como é a atuação do QAnon?

Para Nemer, o QAnon é, em sua essência, um movimento de extrema-direita que utiliza a bandeira contra a pedofilia para legitimar sua atuação. Por meio dela, o movimento permite que ela consiga angariar mais seguidores e evitar críticas a ele.

"A visão que eles têm é a de que todos repudiam as ações de um pedófilo, que é alguém que ninguém defende e, por isso, seria uma coisa difícil de problematizar. Mas eles confundem isso com o estupro, que, ao contrário de pedofilia, não é uma doença psiquiátrica", diz o antropólogo.

Além disso, Nemer inclui nessas bandeiras os movimentos anti-imigração e contra as manifestações que tiveram como mote a frase "Black Lives Matter" (Vidas Negras Importam, em tradução livre do inglês). "Eles repetem tudo que o Trump diz, então eles acreditam nessas ideias da extrema-direita e fazem essa ginástica mental para trazer mais pessoas para segui-los", afirma.

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Protesto anti-imigração nos Estados Unidos
Ted Eytan Creative Commons
Protesto anti-imigração nos Estados Unidos

A antropóloga Letícia Cesarino, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), discorda dessa visão. A especialista reconhece que existem setores do QAnon que são de extrema-direita, mas ela chama a atenção para o que ela caracteriza como as várias "linguagens" que existem dentro do movimento.

"O QAnon é um movimento muito caleidoscópico, é um reflexo do meio que é a internet, que é muito variado. Ele tem muito de uma linguagem religiosa e 'conspiritualista', que une a conspiração e o espiritualismo", diz Cesarino.

No caso da invasão ao Capitólio, ela conta que viu sinais claros de que muitas pessoas ali defendiam pautas anti-sistema, como é o caso das vertentes que se dizem contra a indústria de organismos geneticamente modificados.

"Existe também a linha que dos que alertam para o que seriam as fazendas de crianças, que elas seriam vítimas do tráfico para serem usadas em ritos satanistas nos quais teriam pessoas que bebiam o sangue delas", afirma a antropóloga.

Manifestantes ocuparam o interior e o exterior do prédio do Capitólio no dia 6 de janeiro
Reprodução/Twitter
Manifestantes ocuparam o interior e o exterior do prédio do Capitólio no dia 6 de janeiro

Essa linha à qual a professora da UFSC se refere diz respeito às acusações de que crianças seriam sequestradas e submetidas a episódios de estresse, decorrentes de sessões de tortura e agressões, para que o organismo delas produzisse uma substância chamada adrenocromo no sangue.

Essa substância realmente existe, mas segundo os seguidores do QAnon, ela teria a propriedade do rejuvenescimento para pessoas que bebessem o sangue no qual ela estivesse presente. Por conta disso, o adrenocromo é chamado por alguns, inclusive, de "droga da juventude", sendo que ela seria usada por artistas, produtores de Hollywood e milionários.

O QAnon está se espalhando pelo mundo?

Na avaliação do antropólogo da Universidade de Virgínia, o QAnon já chegou ao Brasil, mas ele ainda não tem a mesma força que possui nos EUA. Nemer aponta, porém, uma diferença na forma de adesão do movimento no País. "A diferença para o que acontece no Brasil é que essas manifestações vêm do alto escalão do governo do Bolsonaro e dos blogueiros bolsonaristas. Nos Estados Unidos esse movimento vem da base para cima", afirma.

Ele cita como exemplo as declarações de ministra Damares Alves, que comanda a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em várias oportunidades, Damares fez comentários alertando para que as crianças deveriam ser protegidas.

Em julho do ano passado, durante o lançamento do plano de contingência para proteger as crianças e os adolescentes vulneráveis durante a pandemia da Covid-19, a ministra disse que o projeto tratava também do tema da prescrição crime sexual.

"Este projeto veio para corrigir, na legislação nacional, uma falha. No Brasil, alguns abusadores de criança escapavam da punição, porque, quando chegava a 70 anos de idade, a eles era garantida a prescrição. Esse projeto de lei agora eleva a idade para 80 anos de idade", afirmou Damares à época.

"No Brasil isso acaba passando despercebido, mas os integrantes do QAnon, quando vêm esse discurso, eles sabem que ela está falando", diz Nemer, que ainda cita as montagens que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), com uma estética conhecida como shockwave, ou também vaporwave .

Essa estratégia de comunicação se dá por meio de recursos visuais como o neon e a colagem de imagens que não fazem sentido juntas, como golfinhos, estátuas greco-romanas, ondas do mar e filtros de VHS. "Isso também é uma sinalização", completa o antropólogo.

A popularidade baixa do QAnon também é vista pela professora Letícia Cesarino, da UFSC. No Brasil, ela avalia que esse movimento ainda é fraco e limitado a disseminadores com pouco alcance nas redes sociais. "Acho que esse papel é ocupado pelo bolsonarismo no Brasil. Sem o advento da internet esse movimento não teria a mesma força", afirma a especialista.

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