No Brasil, muitos jovens têm o sonho de realizar um intercâmbio para conhecer novas culturas, aprimorar o aprendizado de idiomas e enriquecer o currículo para as futuras carreiras. Uma modalidade bastante procurada, principalmente por mulheres, é a de Au Pair, em que as candidatas são escolhidas para trabalhar na casa de famílias que necessitam de ajuda com os filhos.
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Porém, com o início da pandemia do Covid-19
, essa rotina de cuidado, trabalho e aprendizado mudou drasticamente. Agora, elas estão ficando 24 horas dentro de casa, tiveram que interromper os estudos e viagens, e estão acumulando funções que antes não realizavam, perdendo o pouco de tempo livre que tinham para cuidar de si mesmas.
A ideia do intercâmio de Au Pairs é simples: após participar de algumas entrevistas, em que as jovens conhecem a família e são “avaliadas” por seus interesses e habilidades, elas começam a trabalhar como cuidadoras das crianças e passam a receber por isso, além de ter a oportunidade de realizar cursos e ter novas experiências.
Morar no trabalho ganhou novo sentido
“Aqui, nossa família real são as amizades que fazemos, é o que nos sustenta. Sem poder sair, a gente acaba enlouquecendo, porque a gente já mora no trabalho, já tem a ideia de que está sempre trabalhando. Por isso, eu tenho ficado mais tempo dentro do quarto, porque sei que, quando sair, vou ter que lidar com as crianças”.
É assim que Suenia Azevedo, que deixou Recife há quase dois anos para morar com uma família na cidade de Washington D.C., capital norte-americana, define como tem sido sua rotina desde o início do isolamento . Segundo ela, o trabalho com os gêmeos de dois anos que ficam sob sua supervisão pouco mudou, mas certas tarefas que antes não faziam parte do seu dia a dia acabaram sendo incorporadas.
“Agora os pais estão trabalhando de casa , tem uma movimentação maior de pessoas. Eu não cuido do filho mais velho porque ele gosta de ficar com mãe, mas se ele tem fome ou pede qualquer outra coisa, sou eu quem dá. Então, metade eu cuido, metade a mãe”, revela.
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Também alocada na capital norte-americana, Natalia Motta vive situação parecida. Responsável por cuidar de um bebê, ela conta que ficou bastante chateada no início da pandemia por não poder mais sair de casa e ver a rotina da família se intensificar, mas que depois se acostumou ao “novo normal”. Para ela, o principal problema agora tem sido a falta de tempo para descansar.
“Na minha rotina anterior, eu ficava sozinha em casa com a bebê. Quando ela dormia, eu tinha tempo para comer, fazer minhas coisas e descansar. Agora, quando ela dorme, eu tenho que tentar fazer alguma coisa com o irmão dela, que tem sete anos, e isso é bem cansativo . Eu tento entreter, mas ele anda bem entediado e já disse que está com saudade da escola. A verdade é que as Au Pairs também estão”, brinca.
No epicentro da doença, medo é com o Brasil
Outro ponto que parece ser consenso entre as Au Pairs é a maior preocupação com a terra natal. Mesmo vivendo no país mais atingido pela pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2), elas se sentem mais seguras do que os familiares no Brasil . Por este motivo, as ligações por vídeo-chamada aumentaram e as trocas de novidades também.
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“Aqui onde eu estou, na Carolina do Norte, tudo está mais controlado. Mesmo assim, minha mãe se preocupa, então eu tenho que dar atualização, falar que estou bem, que não tenho nada. Para mim, é um pouco mais complicado porque ela mora sozinha, assim como a minha avó. Elas não podem se ver e eu não consigo fazer muito por elas. Só o que posso fazer é perguntar como elas estão”, lamenta Giovanna Peroni, que está na cidade de Raleigh há dez meses.
Até quem está no “olho do furacão” parece se sentir mais seguro quando o comparativo é com o Brasil. Natural de Campinas (SP), Liliane Paula cuida de dois meninos em Long Island, na região de Nova York - cidade mais afetada pela doença em todo o planeta -, e lembra que o início da pandemia foi bastante assustador, mas que agora já está “acostumada” e teme mais pelo que pode acontecer com a sua família.
“Eu falo todos os dias com os meus parentes e peço para eles ficarem em casa. O problema é que, aos finais de semana, os vizinhos do bairro ficam fazendo festa, alguns estabelecimentos continuaram abertos, o que causa muita aglomeração. A preocupação deles comigo não é tanta, acho que pensam mais na minha saúde mental aqui, por estar sozinha e preocupada, do que com a doença em si. Querendo ou não, o nosso psicológico fica abalado”, diz.
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Terapia para “segurar a barra”
E se a questão psicológica é um dos principais fatores para quem vive o dia a dia de uma pandemia longe de casa, as sessões de terapia podem ser um forte aliado no combate ao isolamento, a solidão e a depressão. Muitas meninas têm encontrado refúgio nas conversas com psicólogas brasileiras via internet, seja para afastar temores da própria doença ou para aplacar a saudade de casa.
“Comecei a fazer terapia porque eu estava mal e pensava: ‘preciso segurar essa barra’. Tem me ajudado a entender que é uma situação atípica, que essa não é a minha vida, que isso é só um ponto em um grande círculo. Eu me considero um pouco privilegiada por estar com uma família muito compreensiva, que sempre pergunta como eu estou. Mas sei que têm meninas que ficam presas dentro de casa, que a família não deixa sair nem para dar uma volta, espairecer”, afirma Suenia.
Segundo ela, muitas das garotas que trabalham como Au Pairs acabam iniciando a terapia devido à exaustão mental causada pelo fato de se viver no trabalho, algo que ficou pior agora: “não é nem por conta da pandemia, mas ela também influencia. Antes, o fato de estar longe de casa, em outra cultura, era complicado, mas os benefícios de viagens e passeios compensavam. Agora, não dá para fazer isso, que era meio o que sustentava a gente”, conclui.
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O aumento na procura também é confirmado por profissionais da área, que notaram também uma melhora dos pacientes que seguiram trabalhando. No caso de quem está longe da família, o apoio psicológico e a oportunidade de conversar sobre temas rotineiros com alguém que traga “novos olhares” são os principais pontos.
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“A Au Pair já está vivendo uma pressão maior devido à quarentena , então é uma questão de suporte, de poder falar o que não pode conversar com a família que a recebeu ou com os parentes no Brasil, que teriam respostas prontas como ‘se adapte’ ou ‘volte’. O olhar psicológico vai tentar chegar a uma boa resolução para fortificar essa menina, para que ela consiga superar essa questão crítica”, aponta a arteterapeuta Juliana Florencio, que mora fora do Brasil e já tem o costume de atender pacientes em sessões on-line.
Já a psicóloga Sueli Moreira cita o caso de uma paciente que está nos EUA : “é um momento de muita dificuldade, porque ela passou por um período de adaptação, em que tudo era novo. Quando se adaptou, entrou no processo de saudade de casa e da família e veio essa pandemia", descreve Sueli.
"Já tem a dor da saudade, a preocupação com os familiares, mas aquela sensação de ‘estar invadindo’ a casa em que está morando e também sendo invadida na questão de horários. Tudo isso gera conflitos, do que fazer com esse sentimento grande de solidão, de vulnerabilidade e de não ter o que fazer”, avalia a psicóloga.
Ela ressalta a importância da terapia neste “momento especial”, para dar suporte às pessoas que têm sido obrigadas a encarar questões pessoais que antes eram mascaradas com atividades externas: “ao ficar dentro de casa, nós estamos nos questionando. Estamos sendo convocados a olhar para nossas mágoas, ressentimentos e energias negativas. Então, a terapia vem auxiliar e colocar uma ordem, para que a gente não limpe o baú todo de uma vez”.
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Mas como fazer tal análise ? Quem explica é Cláudia Feldman, psicodramatista e diretora da Clínica Núcleo de Estudos e Terapia (Netaf) em São Paulo: “estamos em um mesmo espaço físico, mas tendo que representar diferentes papéis e funções. É um desafio grande, que também é enfrentado pelas meninas, que precisam entender que estão no papel de Au Pair, mas também são filhas e jovens. A terapia ajuda neste ponto, para que elas saibam quais são esses papéis e como administrar todos eles”.
Voltar não faz parte dos planos
Apesar das dificuldades, para as Au Pairs entrevistadas, a vida nos EUA costuma ser bastante recompensadora. Em momentos normais, as jovens conseguem aprimorar o idioma , conhecer novos lugares, fazer amizades e ainda recebem para exercer a função de cuidadora.
Por estes motivos, a maioria costuma cumprir o prazo de um ano para poder aproveitar mais da experiência.
“Se eu voltasse, não conseguiria emprego no Brasil, porque vi que tem muita empresa fechando, então não achei uma boa. Além disso, se eu volto antes dos 12 meses estipulados, eu tenho que bancar a minha própria passagem. Como eu tenho viagens programadas e que tive que reagendar por causa da pandemia, minha ideia na verdade é até ficar um pouco a mais”, afirma Giovanna, que voltaria neste mês de maio, mas teve o contrato prorrogado por decisão do governo norte-americano.
“Sendo muito sincera, eu nunca pensei em voltar. Primeiro porque eu sei que isso é temporário, em algum momento vai acabar e eu ainda tenho muita coisa para fazer por aqui. Além disso, não ia adiantar eu voltar para o Brasil e ficar desempregada dentro de casa. Aqui, eu tenho um emprego e estou ganhando meu salário em dólares e tenho uma relação muito boa com a minha família, que me apoia e conversa comigo sempre que eu fico triste”, complementa Natalia.
Intercâmbio de Au Pairs
Sobre a questão financeira, Régis Sá, diretor da Agência World Tour, umas das empresas responsáveis pelo intercâmbio de Au Pairs no Brasil, ressalta que existem algumas regras para que o processo possa acontecer, que vão desde os pré-requisitos das interessadas até o tempo máximo de estadia nos EUA, e que a remuneração das participantes é feita toda pela família que a acolhe.
“A interessada precisa ter experiência no cuidado de crianças aqui no Brasil, mínimo de duas experiências que somem, ao menos, 600 horas, tem que ter um inglês intermediário, porque ela vai se comunicar com a família, a escola das crianças, precisa ter habilitação, porque é muito comum o uso do carro, não pode ser casada e tem idades mínimas e máximas", explica.
"O tempo mínimo do programa é de um ano, renovável por mais um. Quando ocorre a volta antes do prazo, ela arca com alguns custos que seriam da família, como passagem aérea”, afirma Regis Sá.
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Porém, o usual é que o processo aconteça dentro da normalidade e, inclusive, seja renovado por mais um ano, tempo limite do programa. Quando ocorre, a Au Pair pode seguir com a mesma família ou não, quando a candidata se interessa em conhecer outros lugares.
E se nem a pandemia não foi capaz de frear os sonhos das meninas que já estão trabalhando como Au Pair nos EUA, tudo leva a crer que, quando a normalidade for reestabelecida, mais brasileiras estarão nesta mesma função.
“As pessoas continuam com os seus sonhos. Então, a gente segue recebendo contatos. Óbvio que a demanda caiu, mas ainda tem aquelas pessoas que estavam se programando para viajar em 2021", conta o diretor.
"Então, elas seguem com esse planejamento . É um processo longo, que não se resolve em 10 ou 15 dias. Então, a demanda até caiu, mas ainda existem pessoas pesquisando para médio e longo prazo”, finaliza Régis.