Até as pedras do Muro das Lamentações sabem que o presidente Jair Bolsonaro gosta de uma encrenca no campo das relações internacionais. Mal ganhara a eleição, criou tremendo mal-estar no Oriente Médio porque queria transferir de Tel-Aviv para Jerusalém a embaixada brasileira em Israel. Na questão climática, trombou com a Alemanha. Quando a Amazônia ardia em chamas, brigou com a França e desandou na deseducação ao endossar ofensas pessoais à primeira-dama do país, Brigitte Macron. Dessa vez, o alvo de Bolsonaro é bem mais próximo e, se a coisa seguir nessa cadência caduca, o Brasil pagará caro na área econômica no que diz respeito ao Mercosul e à balança comercial.
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Trata-se da Argentina e de seu novo presidente, o peronista de centro-esquerda Alberto Fernández (toma posse no dia 10 de dezembro). No domingo passado, tendo a ex-presidente e senadora Cristina Kirchner como vice e puxadora de votos em sua chapa, ele venceu as eleições em primeiro turno com 48,1% da preferência do eleitorado, derrotando Mauricio Macri, que pretendia um segundo mandato consecutivo, mas obteve somente 40,4%.
Nas comemorações, é bom que se diga, Fernández imiscuiu-se na vida política e jurídica do Brasil ao fazer com os dedos polegar e indicador o L de “Lula Livre”, característico daqueles que defendem a liberdade do ex-presidente, preso por corrupção na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba – Fernández, inclusive, já o visitara na cadeia em meados desse ano. Ele avançou ainda mais o sinal ao dizer que a condenação de Lula é injusta, análise que desprestigia todo o Poder Judiciário brasileiro.
A questão ganhou maiores proporções, no entanto, porque Bolsonaro entrou em campo. Se, quando não há problemas, Bolsonaro os cria, dá para imaginar o que ocorre quando de fato eles existem. O problema é que Bolsonaro é o problema. Em vez de portar-se à altura de um estadista, ele decidiu dar o troco de uma forma que fere os mais elementares princípios da diplomacia e democracia.
Deixasse Fernández gesticulando e falando sozinho, e o vexame seria somente dele. Mas não: lá do Oriente Médio, onde se encontrava tratando de assuntos comerciais e estreitando relaçõs de reciprocidade, Bolsonaro deixou claro que não iria telefonar a Fernández para cumprimentá-lo pela vitória. Esse foi o erro diplomático, agiu feito criança birrenta. Quanto ao erro democrático, consistiu no fato de ele afirmar autoritariamente que os argentinos votaram errado, como se tivesse o direito de dizer o que é certo ou incorreto na casa do vizinho, quando a sua própria casa também está economicamente em ruínas.
No seu mais puro estilo vaivém com as palavras, Jair Bolsonaro entregou-se a delírios: cantou de galo ameaçando retirar o Brasil do Mercosul, e voltou atrás; disse então que perdiria a expulsão da Argentina com a ajuda do Paraguai, e também voltou atrás. É certo que as incompatibilidades políticas e ideológicas estão colocadas entre os dois presidentes e nada impede que tais escaramuças virem guerra. Esperava-se que o ministro das Relação Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, cumprisse com a sua obrigação de ofício e, na primeira hora, desanuviasse os ânimos. Imagina?!
Catedrático em diplomacia , assim que Bolsonaro falou além da boca ao declarar que “o povo (argentino) botou no poder quem colocou a Argentina no buraco lá atrás”, o ministro Araújo arrematou comparando as comemorações da vitória de Fernández a festejos das “forças do mal”. Essas declarações foram duramemente criticadas por parlamentares das comissões de Relaçoes Exteriores da Câmara e do Senado.
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O desentendimento entre Bolsonaro e Fernández, na verdade, não começou agora, já vem desde agosto quando a sua chapa venceu as eleições prévias. Bolsonaro, à epoca, dissera que com Cristina e Fernández a “esquerdalhada” voltaria ao poder. Fernández retrucou, rotulando Bolsonaro como “violento, racista e misógeno”. Desde então a tensão está no ar.
O presidente brasileiro e o presidente eleito argentino sabem, no entanto, que a política e a economia adequam-se melhor às avenidas do pragmatismo do que às ruelas das ideologias. Olhando-se para os interesses do Brasil, é necessária a manutenção de um racional relacionamento com a Argetina, terceiro país em nosso rol de exportações, atrás somente de China e EUA. Ainda que tenha caído o índice da exportação em relação ao Mercosul, o saldo global da balança comercial brasileira em 2019 ainda se mantém positivo, apontando um superávit de US$ 33,6 bilhões entre janeiro e setembro. Se considerarmos a Argentina isoladamente, o valor em exportação brasileira diminuiu, e também até setembro os negócios ficaram na casa dos US$ 7,4 bilhões, contra os US$ 12,2 bilhões no mesmo período de 2018. Mas, ainda assim, é saudável para a nossa economia.
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Em nome desse pragmatismo, soprado no ouvido de Bolsonaro por alguém de bom senso, ele recuou: “não quero fazer mau juízo, espero que esteja equivocado. Vamos sentir como os empresários e investidores vão reagir”. Em ciclos que se repetem há mais de meio século, um empedernido peronista retorna à Casa Rosada, sede do governo argentino. E a plataforma e ideário que o colocaram lá são o kirchnerismo representado por Cristina – em palavras claras, peronismo e kirchnerismo são a mesmíssima coisa: demagogia populista e sindicalista. O advogado Alberto Fernández , que já tabalhou diretamente com Néstor Kirchner quando ele foi presidente e também com sua mulher, Cristina, quando estava ela na chefia da nação, é tido como um político moderado, o que contribui para acalmar as animosidades. Torna-se inevitável, porém, uma pergunta. Quem de fato governará a Argentina?
Não há analista político que não tenha jogado nos últimos dias todas as suas fichas em Cristina, e para isso basta um único dado: 47% dos 48,1% de eleitores que levaram a dupla à Casa Rosada relataram em pesquisas que o fizeram por “acreditar em Cristina”, apesar de sua gestão desastrada no passado, dos onze processos a que responde por suspeita de corrupção e da suposta participação no assassinato do procurador Alberto Nisman (na terça-feira 29 a Justiça confirmou mais uma ordem de prisão preventiva, que não será cumprida porque ela tem imunidade parlamentar). Fernández já rompeu com os Kirchner há alguns anos, mas dificilmente o faria agora.
O povo gritava: “ela voltou”
Ele tem claro que, após o fiasco da política liberal de Mauricio Macri (inflação na casa dos 60%), foi ela quem reacendeu, por meio da estratégia populista, a esperança popular no retorno do peronismo. E, nesse ponto, é que o temor prossegue tanto em relação ao Mercosul, separadamente, quanto em relação a união do bloco com o mercado europeu.
Cristina imporá, sem dúvida, um regime protecionista; a gestão Bolsonaro defende a abertura de mercado e redução das tarifas. Fernández poderá ser o boneco movido pelos cordéis que estão nas mãos de Cristina, e ela se torna mais explosiva tendo contra si alguém igualmente populista e autoritariamente explosivo como é Bolsonaro .
Uma à esquerda, outro à direita, ambos têm na alma o mesmo desejo: mandar feito déspota não esclarecido. A diferença é que a popularidade do presidente brasileiro anda despencando enquanto a de Cristina sobe. Eis um exemplo marcante. Conforme o ritmo da apuração de votos ia dando a vitória a Fernández, nas ruas do país o povo não gritava o seu nome. Gritava com alegria, isso sim, duas únicas palavras: “ela voltou!”.
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A vida do peronismo
Destituído da vice-Presidência da Argentina e preso pelos militares, Juan Domingo Perón (foto) é libertado no dia 17 de outubro de 1945 após ampla pressão popular. Essa é a data em que começa o peronismo, política de centro-esquerda que se baseia essencialmente no populismo e sindicalismo. Perón foi eleito presidente em 1946, 1951 e 1973. Ele morreu um depois. A corrente peronista retona com força ao poder em 2003 com a ascenção de Néstor Kirchner, marido de Cristina.