O iG lança neste domingo (18) a seção Diálogos , que terá semanalmente, um convidado especial para uma entrevista exclusiva, sobre os mais variados assuntos. Para a estreia, o escolhido foi o Padre Julio Lancellotti , coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo.
O líder religioso, que dedica a vida à luta social, ganhou projeção nacional durante a pandemia da Covid-19 devido ao seu trabalho com a população em situação de rua e suas ações de enfrentamento à desigualdade . Por causa disso, Lancellotti sofre, diariamente, diversos ataques - chegou a receber até mesmo ameaças de morte.
"Às vezes, as pessoas passam com os carros, xingam e ofendem. Se elas estivessem armadas, poderiam dar um tiro. E seria certeiro". Essa intolerância, segundo ele, existe porque "há muita desigualdade" na sociedade, que acaba gerando conflitos.
Membro da Igreja Católica, o padre critica pessoas que usam da religião em benefício próprio, e refuta a ideia de que as ações de caridade estão relacionadas à religiosidade: "A solidariedade, misericórdia e compaixão não são dimensões religiosas, são dimensões humanas", declara.
Entre os temas abordados pelo pároco estão a tentativa de liberação de cultos e missas presenciais no país ; o projeto de lei contra a arquitetura hostil , que já foi aprovado no Senado e carrega seu nome, e detalhes de sua rotina de trabalho - nas ruas, na igreja e, também, em casa.
Confira a entrevista completa:
Qual é a opinião do senhor sobre a liberação de cultos e missas presenciais enquanto estávamos na fase emergencial e na fase vermelha da pandemia em São Paulo?
No voto do Supremo Tribunal Federal se propôs que os estados e municípios é que devem lidar com o assunto e, no estado e cidade de São Paulo, continuou tendo a reserva. Também, o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, colocou aos padres que não deveríamos ter celebrações presenciais. Nesse momento, é importante que isso seja preservado por uma questão de saúde pública, não é uma questão religiosa, no sentido de liberdade religiosa, mas é uma questão de saúde pública, por isso deve ser seguido.
No julgamento sobre a liberação de cultos e missas no STF, o advogado-geral da União André Mendonça declarou que "religiosos estavam dispostos a morrer" ao defender a abertura de templos e igrejas. O que o senhor achou dessa declaração?
A declaração dele é que os religiosos estão dispostos a morrer pela sua religião e não especificamente pela abertura dos templos. É um discurso religioso na boca do advogado-geral da União, que deve ter um discurso jurídico, colocando a questão a nível jurídico. Ao fazer um discurso religioso parece que fica fora do âmbito que ele competia em um processo como esse. Então, o discurso dele foi mais religioso e fundamentalista. Acho que é descabido nesse momento. Tanto que não foi levado em conta como um argumento definitivo ou importante para a tomada da decisão.
Faz pouco mais de 4 meses que Bruno Covas assumiu o segundo mandato em São Paulo. Na campanha, o prefeito declarou que a geração de emprego e renda seria a solução para ajudar as pessoas em situação de rua. Isso está acontecendo?
Não, ainda não está acontecendo para ninguém. Nós não podemos dizer que temos uma geração de renda e emprego garantido para grande parte da população, ainda continuamos como uma cidade onde o número de pessoas desempregadas, desalentadas e muitas que procuram o primeiro emprego é muito grande. Encontro diariamente pessoas que estão em situação de rua procurando trabalho. Muitos estão fazendo trabalhos informais e trabalhando na reciclagem. Então, essa ainda é uma meta que não foi atingida e que nem está sendo trabalhada para ser atingida.
No pior momento da pandemia, a fome também ganhou espaço nas ruas de São Paulo, ainda mais com a pausa no recebimento do auxílio emergencial. Como o terceiro setor está se mobilizando para ajudar essas pessoas?
Eu acredito que há uma grande mobilização, não que essa grande mobilização resolva todos os problemas, mas há. São muitos grupos, como a CUFA (Central Única das Favelas), que tem feito uma mobilização muito grande para que se dê uma resposta para essa questão. As igrejas estão amplamente mobilizadas para socorrer as famílias que estão em dificuldade, que não são poucas. O desemprego, a inadimplência, as pessoas que perdem o lugar onde estão morando... Muita gente tem que optar entre morar ou comer e acaba ficando em um lugar para dormir, mas durante o dia fica na rua para poder comer.
Podemos dizer que vivemos hoje, em São Paulo, a maior crise humanitária da história da cidade?
Há uma grande crise humanitária, não sei se a maior da história. Pelo menos da história contemporânea é uma das maiores. Há muita gente que não tem como garantir o básico para sobreviver, como o transporte. Diariamente eu ouço pessoas desesperadas que precisam se locomover pela cidade, seja por motivos de saúde, ou para procurar trabalho e não conseguem. Nós vivemos uma crise humanitária nas ocupações, nas favelas, nas habitações coletivas, com a população de rua...
Nós temos publicado esses vídeos [nas redes sociais] que mostram, de forma bastante clara, a necessidade e a penúria que essas pessoas vivem, na questão de higiene, saúde e falta de acesso a instalações sanitárias.
A crise fez com que mais pessoas procurassem o centro de convivência, onde o senhor trabalha, em busca de alimento? Quais são as refeições oferecidas?
Esse é um centro de convivência que surgiu na pastoral de rua, na nossa paróquia, e nós agora temos feito uma ação conjunta de convivência. O que é interessante é que há uma grande necessidade de alimentação, mas as pessoas não estão buscando só o alimento, elas estão buscando saída para a própria vida, procurando um sentido. Por exemplo, nesse espaço de convivência, passavam por mês, pela primeira vez, 4.000 pessoas. A partir da pandemia, passam por mês, pela primeira vez, 8.000. O que não significa que essas pessoas se fixem lá por causa da alimentação, porque diariamente passam de 600 a 700, chegando até a 800 pessoas. O que nós percebemos é que há uma grande movimentação de gente pelo Brasil, pelas cidades... Muita gente circulando, procurando uma saída.
Nesse espaço de convivência, assim como na casa de oração e em muitos outros lugares onde as pessoas não moram, eles têm o café da manhã e o almoço. Depois, muitos vão ter o jantar nos centro de acolhida, e muita gente está cozinhando na rua ou espera que chegue algo na rua onde eles estão, que é o caso desses vídeos e fotos que publicamos. Principalmente na Praça Princesa Isabel, na região da Luz e do Centro de São Paulo.
Você viu?
Por mais de uma vez o senhor denunciou ter sido vítima de ameaças de morte. O senhor teme sofrer algum atentado/agressão enquanto realiza ações nas ruas?
Olha, a gente recebe muitas agressões. Às vezes, as pessoas passam com os carros, xingam e ofendem. Se elas estivessem armadas, poderiam ter dado um tiro e seria certeiro. Então, essas ameaças e essa intolerância existe porque há muita desigualdade, que é conflitiva. Toda desigualdade gera conflito e surge através de conflitos. Uma criança que não tem onde dormir e o que comer, pessoas viverem debaixo de viadutos e sofrerem pressão como estão sofrendo [se refere a moradores em situação de rua na Av. Salim Farah Maluf] são atos de violência. As pessoas se incomodam, agora você acha que alguém vai acreditar que é melhor morar embaixo do viaduto? Sem ter água potável, instalação sanitária? Qual a vantagem disso? Se essas pessoas tivessem um lugar decente para morar, com água, esgoto, energia elétrica, não iriam querer morar embaixo do viaduto, e sofrer uma pressão violenta. Hoje mesmo eu recebi vários telefonemas, mensagens, que são coisas ameaçadoras, porque dizem: 'a culpa é sua, a culpa é do padre'.
Quem são as pessoas que aparecem no centro para se alimentar? São somente pessoas que vivem em situação de rua?
Não. Também há pessoas que estão em pensões, ocupações e que têm que optar por comer ou morar. Então, para ela morar em uma vaga de pensão, ter um lugar para dormir, ela precisa se alimentar no centro de convivência. Às vezes são até pessoas aposentadas que não tem como sobreviver.
Um projeto de lei contra a arquitetura hostil foi aprovado no Senado depois da sua ação de quebrar as pedras instaladas embaixo do viaduto, e ainda foi batizado com o seu nome. Como o senhor se sente em relação a isso?
Foi um bom projeto de lei apresentado pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que agora vai para a Câmara federal e depois, se aprovado, o que eu acho um tanto difícil, tem que ser sancionado pelo presidente da República. Então tem um longo caminho. Ele foi aprovado rapidamente no Senado, e eu sei que nada é fácil, e que conseguir essas coisas é um caminho longo, penoso e difícil. [A aprovação no Senado] é o primeiro passo, um passo importante, mas ainda tem que passar pela Câmara e pelo presidente.
Como é a sua rotina desde a hora que o senhor acorda? O que faz primeiro e até que horas fica na rua?
Agora, durante a pandemia, eu faço a minha presença na rua mais no período da manhã e eu fico na igreja até as 11h, 11h30, e depois, a partir do meio-dia, eu tenho feito o trabalho através de reuniões e encontros por meio do home-office (de casa). Mas, pela manhã, o contato e a presença são diretos, permanentes e contínuos com a própria população de rua.
Toda essa ação de solidariedade, na sua opinião, está envolvida diretamente com a religião?
Não necessariamente. Eu tenho repetido muitas vezes que a solidariedade, misericórdia e compaixão não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. Isso porque muitas pessoas que se dizem religiosas discriminam, têm preconceito, discursos de violência, contra pobres e são homofóbicos, e se justificam de maneira religiosa. Os ateus também são solidários, misericordiosos e compassivos. Então, a religião tem um instrumento que pode te ajudar a ser solidário, mas não significa que por ser religioso você é solidário. Às vezes, elas [as pessoas] usam da religião para interesses pessoais e próprios com pouco de solidariedade ou empatia, e muitas vezes uma religiosidade extremamente moralista.
Vimos que o senhor já recebeu a vacina contra a Covid-19. O senhor já foi infectado pela doença?
Não.
Teve medo de adoecer por trabalhar diretamente com a população, pelo fato de estar perto?
A gente tem que ter as precauções, só o medo não resolve, se ele fosse a solução não precisaríamos das máscaras, da vacina, do escudo facial ou lavar as mãos, bastava o medo. O medo te paralisa, e não significa que ele te torna imune, então o que você precisa ter é discernimento e saber que você não deve ter comportamentos arriscados, que você deve seguir os protocolos, lavar as mãos muitas vezes ao dia, usar álcool em gel. Eu uso luvas, máscaras, todos os equipamentos que são necessários, então não é o medo que resolve, são os comportamentos, atitudes, práticas que sejam condizentes com o momento de emergência sanitária que estamos vivendo.
Existe uma frase do Ariano Suassuna que diz que "Jesus às vezes se disfarça de mendigo para testar a bondade dos homens", se isso for realmente verdade, acha que ele seria hostilizado nos dias de hoje?
Na verdade, não é um disfarce, é uma realidade. Isso temos que ver, nós, que temos a fé cristã, temos que levar a sério o que está no próprio evangelho: 'Eu estava com fome e me destes o que comer, eu estava com sede e me destes o que beber, eu estava nu e me vestisse', mas ele também diz: 'Eu estava com fome e não me destes de comer, eu estava com sede e não me destes o que beber, eu estava doente e não me visitaste'.
Então, o próprio evangelho tem as duas coisas, assim também acontece hoje. Tem os momentos em que ele é acolhido e tem os momentos em que ele é repelido. Mas nós não podemos ter uma visão romântica dos moradores de rua, esse tipo de visão deve nos ajudar na responsabilidade social, solidária e da valorização da vida, mas você não deve ter ideias ingênuas e querer enfrentar o mundo com o sentimentalismo religioso, se deve ter análises bastante claras, buscar respostas no intricado, na complexidade histórica para entender as consequências das suas ações e das buscas que você faz.
*Sob supervisão de Valeska Amorim