Em uma recente entrevista, a historiadora e jornalista americana Anne Applebaum, autora de um livro sobre o que chama de “apelo sedutor do autoritarismo”, afirmou que o combate aos autocratas deve passar necessariamente pela união tática de forças políticas antagônicas.
Segundo ela, esquerda, progressistas, centro-direita, empresários e aquela parcela da população que se considera conservadora e está incomodada devem deixar suas diferenças de lado e se unir no combate ao autoritarismo.
Ainda que muito pertinente e correta a posição dela, é preciso diferenciar a ação política por razões de justiça da ação política por razão de disputa de poder.
No âmbito da disputa de poder, em especial no modelo brasileiro, que realiza eleição em dois turnos, nada mais razoável do que haver dois campos políticos diferentes concorrendo.
Assim, considero essencial que haja na próxima disputa à Presidência da República uma candidatura que reúna em uma única chapa os setores de esquerda e de centro-esquerda, que se diferencie do centro político e estabeleça um programa de resistência ao neoliberalismo, tanto no aspecto político quanto no econômico.
No entanto, essa é uma pauta para 2022 e, para que cheguemos lá, é preciso, antes de mais nada, garantir que a eleição ocorra, preservando a democracia. E é guiada por esse objetivo que deve ser composta uma outra frente, uma frente ampla, como a mencionada pela historiadora, essa sim incorporando os adversários, os que divergem intensamente, mas têm em comum o propósito de lutar contra o bolsonarismo.
Uma frente unida não por razões de disputa de poder, mas pela defesa da democracia e dos direitos, pela necessidade de enfrentar o autoritarismo hoje vigente no governo do país.
Um processo não se confunde com o outro. São duas formas de atuar na política por motivos diferentes. No Brasil, essa frente garantidora da democracia precisa urgentemente se fortalecer. Não dá mais para o Judiciário e o STF se colocarem como bastiões exclusivos da defesa da democracia.
Reconhecendo todos os méritos da Corte, que tem agido de forma patriótica, é preciso atentar para o fato de que, sozinha, é frágil para conter o avanço do autoritarismo e do golpismo. Até porque só em uma democracia forte temos um Judiciário forte.
Além disso, a médio e longo prazos, o efeito colateral dessa atuação quase isolada do STF poderá ser sua transformação num ator político exacerbado, que atue para além das suas funções, exercendo uma ação política inadequada.
O Judiciário tem como papel aplicar as decisões determinadas pela soberania popular, ou seja, pela Constituição e pelas leis, e não criar novas decisões, auxiliando na produção de uma nova sociedade. Isso é função do Legislativo, que, inexplicavelmente, vem se comportando de forma catatônica.
Hoje, o Poder que representa a democracia popular por excelência e que, no plano institucional, deveria capitanear a resistência democrática no momento em que o Executivo se entrega a um desvio autoritário tão profundo, padece de um imobilismo no mínimo omisso.
Mais de uma centena de pedidos de impeachment aguardam a análise da presidência da Câmara. Salvo a CPI da pandemia, nenhuma outra ação efetiva foi adotada pelo Legislativo para questionar o autoritarismo e o desgoverno do Executivo.
É necessário deslocar a luta pela democracia da jurisdição para a política, ou seja, para a rua, para a sociedade, para as ações de natureza popular. É preciso criar essa frente ampla que possa combater o autoritarismo nas ruas e pressionar o Legislativo a sair dessa apatia, sobretudo, em relação aos ataques que a democracia vem sofrendo.
A democracia não pode ser deixada sob ônus exclusivo do Judiciário. O Judiciário deve apoiar essa luta – uma luta política da sociedade em defesa da democracia –, e não ser seu ator principal.