No Rio, seis pacientes receberam órgãos infectados pelo vírus HIV
Reprodução: Flipar
No Rio, seis pacientes receberam órgãos infectados pelo vírus HIV


O Brasil é mesmo um país de contrastes — onde estruturas e serviços que podem ser incluídos entre os melhores do mundo convivem com situações de indigência e de atraso que cobram um preço altíssimo da população. E uma das maiores evidências dessa realidade é o serviço de saúde e a qualidade da medicina nacional. O sistema brasileiro é altamente inclusivo. Embora não possa ser considerado 100% universal, se esforça para não deixar sem atendimento quem precisa de seus serviços. E esse esforço, claro, custa uma montanha de dinheiro.

O total da verba para a saúde corresponderá neste ano de 2024 a quase 4% do orçamento federal . Isso significa um valor de R$ 236,7 bilhões. Dessa dinheirama, R$ 183,8 bilhões já foram empenhados para serem gastos e, deles, R$ 158,2 bilhões já foram efetivamente dispendidos. São esses recursos bilionários que movimentam as engrenagens de uma máquina vigorosa, de abrangência nacional e digna de elogios, mas que, volta e meia, como o tudo o que existe no Brasil, às vezes se vê no meio de uma discussão barulhenta.

Condições adversas

 Antes de tratar do escândalo dos transplantes de órgãos infectados com o vírus HIV , que aconteceu no Rio de Janeiro , mas teve consequências que vêm se espalhando pela rede de saúde pública de todo do país, é bom saber do que sistema estamos falando. A estrutura da saúde pública brasileira, claro, apresenta falhas. Mas, quem se der ao trabalho de analisar com atenção a lei que criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e procurar saber como ele funciona do Oiapoque ao Chuí, será obrigado a reconhecer que, embora o Brasil esteja longe da perfeição nesse quesito, não é correto nem justo tratá-lo como se fosse a Geni da música de Chico Buarque de Hollanda.

A lógica do SUS foi estabelecida pela Constituição de 1988 e regulamentada dois anos depois, pela Lei 8080. De lá para cá, foi implantado um sistema e que as responsabilidades são compartilhadas por todos os entes nacionais. A lei delegou aos municípios a triagem dos pacientes que necessitam de cuidados e a responsabilidade pelo tratamento dos casos de baixa complexidade. Os casos de média e de alta complexidade, bem como as cirurgias eletivas, ficam a cargo das redes estaduais. Finalmente, a União Federal, por meio do Ministério da Saúde , tem a responsabilidade de financiar toda a rede e de cuidar das doenças mais graves, que exigem os tratamentos mais dispendiosos. Nem tudo, porém, funciona como está no papel e é comum que os problemas acontecem.

A sociedade, com razão, fica indignada com os problemas que se manifestam na forma da superlotação de unidades de saúde e do atendimento de baixa qualidade aos pacientes em hospitais da rede pública. Ocorre que o contrário também acontece — embora os casos positivos nunca mereçam o mesmo destaque dado aos problemáticos. Em todo o país, há exemplos e mais exemplos de vidas salvas por profissionais que se desdobram para oferecer aos pacientes o que há de melhor em matéria de atendimento e de utilização adequada dos recursos públicos.

O SUS é resiliente e já se mostrou competente para transformar condições adversas de operação em vantagens que acabam beneficiando a toda a população. Um caso marcante nesse sentido é o da medicina de urgência no Rio de Janeiro. As condições mais do que precárias da segurança pública no município fizeram dos médicos, dos serviços de enfermagem no Miguel Couto, no Souza Aguiar e em outros hospitais públicos do Rio referências mundiais em cirurgia de urgência. Sobretudo naquelas motivadas por ferimentos por armas de fogo. Isso mesmo: o Rio é referências mundial no tratamento das vítimas de tiroteios!

Há um outro detalhe a ser considerado antes de tratarmos do problema que atualmente enxovalha a reputação do sistema de saúde pública no Rio. Por mais que a ação do governo tenha sido criticada durante a pandemia da Covid-19, a rede de saúde e os profissionais que atuaram na linha de frente fizeram um trabalho brilhante. No momento mais crítico, em que o número de mortes se contava aos milhares a cada dia, são pouquíssimos os casos de pessoas que morreram sem assistência. E a perda de vidas teria sido muito maior se os profissionais não tivessem se desdobrado para atender as pessoas que chegavam aos hospitais sem conseguir respirar devido à infecção.

Chance de sobrevivência

 Nenhum outro país do mundo, com a provável exceção do Reino Unido, dispõe de um serviço tão abrangente quanto o brasileiro. Por aqui até mesmo os casos de altíssima complexidade são — ou deveriam ser — cobertos integralmente pelo Estado. É o caso, por exemplo, da rede nacional de transplantes — vem sendo posta em xeque por um erro que não é culpa do sistema. Pelo que se sabe até agora, o que aconteceu no caso do transplante de órgãos infectados com o vírus HIV é dia  resultado da negligência, da ganância, da falta de responsabilidade ou da soma de tudo isso.

Desde que o doutor Euryclides de Jesus Zerbini liderou no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo a equipe que realizou o primeiro transplante de coração no Brasil, cerca de quatro meses depois da primeira cirurgia mundial dessa natureza ter sido feita pelo médico sul-africano Cristhian Barnard, o país foi um dos que mais evoluíram nessa modalidade em todo o planeta. Hoje, são realizadas a cada ano mais de 20 mil procedimentos do gênero em todo o país — o que faz do Brasil o segundo maior transplantador do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Com a evolução das técnicas cirúrgicas e o desenvolvimento de drogas imunosupressivas que ajudam a reduzir os índices de rejeição do órgão do doador pelo organismo que o recebe, milhares e milhares de brasileiros ganharam a chance de prolongar suas vidas graças aos corações, rins, fígados, pâncreas, pulmões e outros órgãos recebidos de pacientes em situação de morte cerebral. O funcionamento do sistema obedece a uma fila organizada de acordo com a gravidade dos casos, com a oferta de órgãos em cada região, com a idade, o estado geral e as chances de sobrevivência do paciente. Como todo modelo, esse também é sujeito a falhas — mas, de um modo geral, ele funciona bem.

Forma de contaminação

A seriedade de um sistema eficiente, oneroso, complexo e sensível como esse vem sendo questionada nos últimos dias por um erro gritante, cometido por um laboratório de Nova Iguaçu chamado Patologia Clínica Doutor Saleme (PCS-Saleme). Contratado a peso de ouro para examinar as condições básicas de saúde dos doadores dos órgãos, o laboratório liberou para transplante órgãos de um paciente infectado pelo vírus HIV, causador da Aids. Seis pacientes que esperavam na fila pela chance de continuar vivendo enfrentam, agora, uma ameaça seríssima de morte.  

Antes de prosseguir, uma observação: Nova Iguaçu é mencionada, aqui, não pelo fato de ser um município da Baixada Fluminense, mas por ser o “reduto” eleitoral do deputado federal pelo PP e ex-secretário estadual de Saúde , Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior, conhecido como Dr. Luizinho. Uma sequência de atos suspeitos e de irregularidades evidentes fizeram com que o governador Cláudio Castro o tirasse do cargo no ano passado.

O contrato com o PCS Saleme foi assinado três meses depois da saída de Luizinho do cargo, mas indica que ele continuou exercendo influência sobre o sistema de saúde mesmo depois de ter sido substituído pela médica Cláudia Mello. O laboratório pertence ao engenheiro — isso mesmo, engenheiro, sem a menor experiência em gestão de serviços de saúde —Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, primo do ex-secretário. O outro sócio é o médico ginecologista Walter Vieira — que é pai de Matheus e casado com uma tia do parlamentar.

Preso na semana passada, o tio Walter tentou jogar a culpa nos empregados do laboratório, que não teriam seguido os protocolos recomendados para o caso. Um dos técnicos que também foram presos, porém, disse que recebeu do patrão a ordem de economizar nos reagentes para reduzir o custo do laboratório. Saber se houve ou não essa ordem é o que menos importa neste momento. O que importa é que ficou comprovado da pior maneira possível que o PCS Saleme não tinha a mínima condição de fazer um trabalho importante como o que estava sob sua responsabilidade.

Esse é o xis da questão. Ainda que não fossem, como seus currículos comprovam, pessoas desqualificadas para lidar com análises clínicas, o tio e o primo do deputado Luizinho não precisavam ter praticado a covardia de liberar para transplante órgãos infectados pelo HIV . Bastaria, para isso, que seguissem os protocolos para detecção do vírus que são amplamente conhecidos no mundo e no Brasil desde meados dos anos 1990 — época em que o diagnóstico de Aids equivalia a uma sentença de morte.

De lá para cá, muita coisa mudou. A Aids continua sendo uma doença mortal, mas a eficiência das drogas antivirais e a eficácia dos tratamentos aumentou tanto que reduziu o estigma que havia em torno da doença. A ponto de, como alertam vários especialistas em saúde pública, fazer com que a negligência imperasse e muita gente deixasse de usar preservativos nas relações sexuais — se expondo à contaminação pela forma mais comum de transmissão da doença.

Os tratamentos mais modernos reforçam as defesas naturais do organismo contra o vírus e impede que Aids se desenvolva e leve o paciente à morte. É justamente aí que está o problema, no caso dos que receberam os órgãos infectados. Para que as defesas do organismo que recebe a doação não ajam contra o órgão transplantado, o paciente precisa tomar medicamentos que inibem a ação dos anticorpos. São os chamados imunossupressivos .

As alternativas são trágicas. Para não ter seu organismo tomado pelo vírus da Aids, que contraiu devido ao transplante, o paciente teria que tomar medicamentos para reforçar a eficácia de suas defesas naturais. Se isso acontecer, no entanto, seu organismo tratará o órgão recebido como um agente invasor e lançará suas defesas para trabalhar contra ele. Se ele, no entanto, tomar os imunossupressivos obrigatórios para os pacientes transplantados, o vírus da Aids não encontrará resistências, se espalhará pelo organismo e acabará tirando sua vida.

O caso, claro, despertou a indignação geral e lançou suspeitas sobre as razões que levaram o governo estadual, que deveria responder pela realização desse tipo de exame, ter delegado a um pequeno laboratório da cidade da baixada fluminense a tarefa de realizar um exame sensível como esse. Tudo indica que estamos diante de um caso de tráfico de influência, compadrio, peculato, corrupção e uma série de crimes tipificados pelo Código Penal — mas quem vai dizer isso é o inquérito policial e a Justiça.

Só depois que o caso veio a público por meio de uma reportagem da Rádio Bandeirantes no Rio de Janeiro, as autoridades começaram a se mexer. A secretária de Saúde, Cláudia Mello que, como já foi dito, mas não custa repetir, já estava no cargo quando o laboratório de Nova Iguaçu foi contratado par realizar exames delicados como esse diz que o caso não deverá abalar a credibilidade do sistema de transplantes. E observa, com razão, que nos últimos anos já foram realizados mais de 16 mil transplantes de órgãos no Estado.

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, classificou o episódio como “inadmissível” e prometeu endurecer os protocolos. Talvez as duas estejam certas. Mas, nesse caso específico, não se trata de punir o sistema — mas os responsáveis não só pela execução dos serviços, mas pela contratação do laboratório. Todos, sem exceção, devem responder pelo crime.

Esse problema, como se vê, não teve a ver com a estrutura de um sistema que, se funcionasse como previsto no papel, não exporia pessoas à situação terrível de entrarem numa sala de cirurgia esperando sair de lá com um problema sério resolvido e, depois de tudo, se verem numa situação ainda pior do que aquela que viviam antes. O problema não é o sistema de transplantes. É, sim, o tráfico de influência política que, alimentado pela falta de escrúpulos que permite a esse tipo de gente lucrar às custas do sofrimento do povo brasileiro, coloca todo um sistema sério, do qual o Brasil deveria ter orgulho, sob suspeita de abrigar ações criminosas.

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