Nuno Vasconcellos
Daniel Castro Branco/Agência O Dia
Nuno Vasconcellos

Goste-se ou não do presidente Luiz Inácio Lula da Silva; acredite-se ou não nas ideias que ele defende em matéria de política internacional, aprove-se ou não a simpatia que demonstra por governos de reputação arranhada no cenário mundial — como são os casos da Rússia, da Venezuela e da Nicarágua —; o certo é que, em seu governo, o Brasil tem sido notado pelo mundo de forma mais positiva do que foi nos quatro anos de Jair Bolsonaro. E essa situação — a despeito dos deslizes que Lula comete quando se deixa levar pelo entusiasmo e fala mais do que deveria — pode ser positiva para o Brasil.

Na terça-feira passada, na abertura da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente fez um discurso absolutamente coerente com seu estilo. Sua fala, que durou 21 minutos, foi interrompida por aplausos durante sete vezes. Os aplausos não foram, é evidente, tão efusivos como os apoiadores de Lula andam dizendo. Mas, por outro lado, também não foram protocolares como diz a oposição.

Este é o primeiro ponto a ser observado: o discurso de Lula na ONU não deve ser analisado à luz da divisão política que, no Brasil, transforma o presidente numa espécie de deus, para os que gostam dele, ou no capeta para os que estão do outro lado. Um pronunciamento feito naquele plenário não deve ser medido pelo efeito que causa nas multidões. O que conta, ali, é passar uma mensagem aos líderes que influenciam as decisões globais. E, ainda que a Assembleia deste ano não tenha contado com a presença de alguns Chefes de Estado destacados, ninguém pode dizer que as palavras de Lula não tenham chegado a quem interessava.

Por diferentes razões, que não cabe detalhar aqui, Vladimir Putin, da Rússia, Xi Jinping, da China, Rishi Sunak, do Reino Unido, e Emmanuel Macron, da França, quatro dos cinco países com assentos permanentes no Conselho de Segurança da entidade (o quinto é os Estados Unidos), não deram o ar da graça no plenário. Mas, independentemente dessas ausências, o discurso foi feito, o recado foi dado e a nata da diplomacia dos 193 países que compõem a organização ouviram o que o governo do Brasil tem a dizer sobre alguns temas relevantes e outros nem tanto a respeito dos quais eles, em algum momento, terão que dialogar.

Lula defendeu com convicção as ideias nas quais acredita — ainda que algumas delas pareçam ultrapassadas e não sejam consensuais nem em seu próprio país. E, por mais que tenha deixado claras suas diferenças em relação às posições de outros países, ele fez questão de, a seu estilo, manter aberta a porta para as negociações e o entendimento. Nesse ponto, a comparação do estilo de Lula com o do seu antecessor é inevitável.

FORMA E CONTEÚDO — Pelo menos no que diz respeito à reação às críticas que o Brasil recebe em relação ao meio ambiente, Lula e Bolsonaro falam a mesma língua. Assim como o antecessor, o atual presidente sempre devolve as cobranças dos países desenvolvidos em relação à exploração da Amazônia. Para eles, os Estados Unidos e os países desenvolvidos da Europa e da Ásia construíram sua riqueza sem o mínimo respeito ao meio ambiente e precisam se lembrar disso antes de criticar o Brasil.

Na ONU, Lula voltou a lembrar que “os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima”. Sendo assim, eles não têm autoridade para impor ao Brasil sua forma de lidar com essa questão. Bolsonaro, por sua vez, sempre reagiu às críticas em relação à Amazônia como se ouvisse uma ofensa.

Quando a Alemanha, em 2019, suspendeu a contribuição de mais de US$ 80 milhões por ano ao Fundo Amazônia, destinado a bancar ações de preservação na região, o então presidente reagiu como se aquilo não fizesse falta. E mandou um recado mal criado à então chanceler Angela Merkel: “Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok? Lá estão precisando mais do que aqui”, disse o presidente na ocasião.

Lula, ao contrário, devolve aos países ricos as cobranças que recebe. “O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si”, disse o presidente na ONU, referindo-se ao esforço liderado pelo Brasil para unir os países sul-americanos cobertos pela floresta em torno de uma agenda capaz de definir políticas de preservação para a região. Em agosto passado, o Brasil reuniu em Belém, no Pará, líderes dos oitos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica para discutir políticas de preservação e exploração responsável da região.

“RISCO DE GOLPE” — Lula parece feliz quando cumpre o papel de lembrar os outros de suas responsabilidades — e faz isso com maestria. Na ONU, ele foi absolutamente fiel a esse estilo e, por essa razão, não faltaram em seu discurso aqueles pontos que, dependendo da forma com que são olhados, causam mais constrangimentos do que trazem benefícios aos interesses do Brasil.

A viagem que o levou a Nova York, onde fica a sede da ONU, depois de passar por Havana, em Cuba, foi a 14ª que ele fez em nove meses de governo. Nelas, visitou um total de 19 países e manteve conversas bilaterais com cerca de 30 chefes de Estado. Em seus discursos e entrevistas, Lula sempre exige respeito do mundo às decisões internas de outros países.

Na ONU, Lula chamou de “ilegal” o bloqueio comercial que o Congresso dos Estados Unidos impôs a Cuba. Ele pode até criticar a medida, mas, por uma questão de coerência, ao chamá-la de “ilegal” ele está interferindo numa decisão democrática de outro país. No discurso, o presidente se queixou das medidas “unilaterais” que “causam grandes prejuízos às populações dos países afetados”. Se esqueceu, porém, de mencionar que a invasão da Ucrânia foi um ato unilateral de agressão da Rússia contra um país vizinho. Por mais que ele queira dividir a culpa entre os dois países em guerra, seu ponto de vista sobre esse assunto é uma defesa do regime ditatorial de Vladimir Putin, que é condenado pelo mundo inteiro.

Em outro momento do discurso, ele mencionou preocupação com a Guatemala, onde “há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas”. É verdade que a vitória do esquerdista Bernardo Arévalo no segundo turno das eleições guatemaltecas está sendo contestada na Justiça do país por irregularidades que foram apontadas ainda antes da contagem dos votos. O problema, nesse caso, é a incoerência em relação ao tratamento dado por Lula a outros países.

O mundo inteiro sabe que Lula jamais manifestou a mínima preocupação diante das atrocidades praticadas por tiranos como Nicolas Maduro, da Venezuela, ou Daniel Ortega, da Guatemala. Por essa razão, qualquer palavra dita em defesa de Arévalo entrará por um ouvido e sairá pelo outro de qualquer pessoa que escute a peroração. Ou seja: nesses casos específicos, Lula está comprometido demais com uma determinada posição para se colocar, como vem se colocando, com alguém capaz de unir lados divergentes.

VEXAMES MARCANTES — A tribuna das Nações Unidas é, por definição, um espaço com alcance mundial e o Brasil conquistou, por mérito da diplomacia de excelência que tinha no passado, o privilégio de fazer o discurso de abertura da Assembleia Geral, que sempre acontece no mês de setembro de cada ano. Tem sido assim desde que a Organização foi fundada, em 1946, numa sessão histórica presidida pelo chanceler brasileiro Oswaldo Aranha.

Logo nos primeiros anos de vida da ONU — criada como rescaldo da Segunda Guerra Mundial como a grande fiadora da paz entre as nações —, o mundo começou a sentir os efeitos da queda de braços travada entre os Estados Unidos e a União Soviética nos anos da Guerra Fria. Diante da situação delicada que se criou naquele momento, o Brasil teve a habilidade de se posicionar como um algodão entre os cristais. Para evitar que as assembleias gerais do organismo fossem iniciadas com discursos beligerantes, passou, a partir de 1951, a se voluntariar para fazer o discurso inaugural. Até que, em 1955, o plenário oficializou a condição e deliberou que, dali em diante, sempre caberia a um representante do país o direito de falar logo depois do Secretário Geral e do presidente da assembleia.

No começo, os discursos brasileiros cabiam a diplomatas. A presença de presidentes brasileiros na tribuna é relativamente recente. Apenas em 1982 — ou seja, 27 anos depois de o país adquirir o direito de ser o primeiro a falar — um Chefe de Estado do país, o general João Figueiredo, falou no plenário da ONU. A regra só foi quebrada em 1983 e 1984 quando, por deferência da delegação brasileira e num momento em que o prestígio do país estava enfraquecido pela crise da Dívida Externa, o discurso de abertura foi feito pelo presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan.

O fato é que, depois de Figueiredo, José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff, Bolsonaro e o próprio Lula passaram por lá e — uns mais, outros menos — deixaram seu recado. Nenhum desses discursos, no entanto, mereceu muita repercussão fora dos meios diplomáticos. E isso, de certa forma, é positivo. Os discursos mais rumorosos na ONU, de um modo geral, têm sido grotescos e, no final, acabam se voltando contra quem os proferiu.

Por pressão dos países árabes, no calor da primeira crise do petróleo, o líder Yasser Arafat foi convidado para defender a causa palestina na Assembleia Geral de 1974. Isso aconteceu apenas dois anos depois do massacre em que terroristas palestinos tiraram as vidas de onze atletas israelenses durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Em tom desafiador, Arafat disse que chegava à ONU com um ramo de oliveira numa mão e o revólver na outra — e que o assassinato dos atletas era consequência da luta pela independência. As palavras de Arafat causaram tanta repulsa que, ao invés de fortalecer, enfraqueceram sua causa. E atrasaram por mais de dez anos o processo de reconhecimento da causa palestina pela comunidade internacional.

Em 1975, o tirano Idi Amin Dada, de Uganda, subiu à tribuna para acusar as próprias Nações Unidas de caluniar seu governo — que, como se sabe, foi um dos mais abjetos e sanguinários da história. Em 2006, o caudilho venezuelano Hugo Chávez se valeu do espaço para proferir ofensas ao ex-presidente dos Estados Unidos George W. Busch, a quem chamou de “diabo”. Em 2009, o ditador líbio Muammar Khadafi foi à ONU acusar os Estados Unidos de criar a gripe suína e espalhá-la pelo mundo e por em dúvida a versão oficial sobre o assassinato do presidente John Kennedy.

No ano seguinte, em 2010, o títere iraquiano Mahmoud Amadinejad teve a cara de pau de responsabilizar os Estados Unidos pelos ataques do dia 11 de setembro. Naqueles atentados, 3.045 pessoas perderam a vida no World Trade Center, que ficava a poucos quilômetros da tribuna que ele ocupava. Diante daquela estupidez sem propósito, integrantes de 33 delegações abandonaram o salão em protesto e sem ouvir o final do discurso do garoto de recados dos aiatolás.

ZELENSKY É O CARA — Diante de casos como esses, que entraram na história pela porta dos fundos, é até confortável constatar que os discursos brasileiros na ONU sempre cumpriram sua função sem chamar muita atenção. No caso específico da semana passada, o espaço ocupado pelo assunto na imprensa internacional foi discreto. O New York Times e o Washington Post, os jornais mais influentes dos Estados Unidos, por exemplo, foram econômicos em suas menções à fala do presidente brasileiro — mas, no dia seguinte, foram generosos na cobertura do encontro que Lula manteve com o líder ucraniano Volodymir Zelensky. Aliás, este é um ponto que merece atenção!

Por mais protocolar que tenha sido o encontro, que durou pouco mais de meia hora e aconteceu no hotel em que Lula estava hospedado, a reunião pode ser vista como uma vitória da diplomacia brasileira. Ele aconteceu devido ao trabalho costurado pelo Itamaraty na tentativa de apagar a péssima impressão deixada pelo tratamento que Lula dispensou ao líder ucraniano durante a reunião do G7, em maio deste ano na cidade japonesa de Hiroshima. Na ocasião, Lula foi o único chefe de Estado que não se moveu na cadeira quando todos os outros se levantaram e foram cumprimentar Zelensky no momento em ele entrou na sala. Na sequência, o presidente brasileiro ainda criou dificuldades e acabou não recebendo o líder ucraniano para uma conversa reservada.

Até a diplomacia brasileira, que já não demonstra a mesma atenção para os detalhes que tinha no passado, se deu conta do tamanho do erro. E desde maio vem tentando corrigi-lo. Pela forma como reagiu à agressão russa e pela capacidade de unir o Ocidente em torno de sua causa, Zelensky desempenha no mundo um papel de destaque semelhante ao que Lula desempenhou em sua primeira passagem pelo governo do Brasil.

Ainda hoje, as pessoas se recordam das palavras do presidente dos Estados Unidos Barak Obama a respeito do líder brasileiro naquele momento. Ao se encontrar com Lula durante uma reunião do G-20 em Londres, em abril de 2009, Obama disse para todo mundo ouvir: “Lula é o cara. É o politico mais popular do mundo”. Todos queriam estar com ele.

Hoje, quem atrai atenção e esbanja popularidade onde quer que pise é Zelensky. E Lula, depois dos altos e baixos de sua trajetória recente, agora precisa se esforçar para recuperar o prestígio, que já foi muito maior do que é atualmente, e utilizar sua habilidade política para fazer o que realmente interessa para o Brasil neste momento. Ou seja, buscar se aproximar dos parceiros certos e capazes de para ajudar o país a fortalecer a economia e gerar mais empregos e chances para os brasileiros. Isso é fundamental — ainda mais neste momento em que mais uma oportunidade se oferece ao país na forma do processo de transição energética em curso no mundo inteiro.

O Brasil tem tudo para se tornar uma das grandes potências energéticas do Século 21. O país conta com uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. O próprio Lula disse na ONU — e é a mais absoluta verdade — que 87% da eletricidade nacional provém de fontes renováveis. A adição de etanol à gasolina, que subirá de 27% para 30% nos próximos dias, faz da frota brasileira de automóveis a menos poluente do mundo. O biodiesel é uma realidade cada vez maior.

Isso sem falar no potencial fantástico representado pelo Hidrogênio Verde. O que falta, nesse caso, é uma tecnologia que permita a produção desse combustível a partir de fontes verdes e renováveis, em escala capaz de atender a demanda mundial e em condições que permitam o transporte seguro e barato do que vier a ser produzido. Ou seja: para ter o Hidrogênio Verde que Lula menciona em todos os seus discursos, como fez na ONU, será necessário investimento em pesquisa e desenvolvimento. Isso requer conhecimento — que o Brasil tem de sobra — e rios de dinheiro para investimento. Como dinheiro não anda sobrando por aqui, será necessário celebrar as parcerias certas com países capazes de contribuir, e não retardar, esse esforço.

O presidente, nesse campo, pode fazer pelo Brasil ainda mais do que vem fazendo. É fundamental que se definam marcos regulatórios mais modernos para as questões energéticas e ambientais, no âmbito do Plano de Transição Ecológica liderado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad. Se, ao invés de sair por aí defendendo ditaduras, Lula concentrasse seu talento político na busca de acordos internos e externos capazes de ampliar ainda mais a capacidade do país explorar as fontes renováveis de energia, talvez o Brasil deixasse de ser visto pelo mundo como um pária ambiental e recuperasse o prestígio e voltasse a ser uma companhia desejável. Se isso acontecer, Lula certamente voltará a ser “o cara” a quem Obama se referiu em 2009.

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