Nenhum brasileiro minimamente atento aos movimentos do Congresso Nacional na atual legislatura pode alegar surpresa diante dessa "Minirreforma Eleitoral" aprovada pela Câmara dos Deputados na semana passada . A pretexto de "aperfeiçoar a legislação" com vistas à disputa de 2024, quando serão escolhidos os prefeitos e os vereadores dos 5.568 municípios do país, o texto acabou promovendo uma das mais escancaradas ações em causa própria já vistas neste país. Os beneficiados, claro, são os políticos em campanha, que, a partir de agora, e se tudo permanecer como foi aprovado pelos deputados, se tornam praticamente inimputáveis à luz da legislação eleitoral.
O texto foi aprovado na noite de quarta-feira, em primeira votação, por 367 votos a favor, 86 contrários e uma abstenção. O resultado é para lá de expressivo. Por se tratar de um Projeto de Lei, teve 110 votos a mais dos 257 que teriam sido suficientes para a aprovação. E assim, o número superou os 342 votos necessários para a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional na Câmara.
Na quinta-feira, os deputados votaram os destaques e aprovaram aquele que talvez seja o único ponto positivo da minirreforma: a proibição de uma aberração chamada "candidatura coletiva", que permitia que uma única vaga no Parlamento fosse ocupada por uma patota de ativistas. Tirando esse e mais um ou dois pontos, o projeto é um desastre! Para entrar em vigor já nas próximas eleições, as medidas precisam agora passar pelo Senado. Caso sofram alguma mudança, voltarão à Câmara. Depois, deverão ser sancionadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva antes do dia 6 de outubro.
LIBEROU GERAL — Mas, afinal, o que o texto aprovado tem de tão escandaloso assim? Num resumo apressado, o Projeto de Lei 4438/2023 e o Projeto de Lei Complementar 192/2023, obras coletivas encabeçadas pela deputada Dani Cunha (União-RJ) e relatadas pelo petista Rubens Pereira Júnior (MA), reduzem o alcance da Lei da Ficha Limpa. Elas anulam penas a que os partidos e os políticos estariam sujeitos por irregularidades cometidas nas eleições passadas. Além disso, perdoam as multas aplicadas pela Justiça Eleitoral e criam uma espécie de blindagem para dificultar ou até mesmo evitar que novas punições venham a ser aplicadas daqui por diante. Ou seja, liberou geral!
As novas regras eleitorais reduzem as obrigações que pesam sobre os candidatos em campanha, dificultam a fiscalização de sua conduta e, em alguns casos, até mesmo impedem que recaiam sobre os partidos políticos o mesmo tipo de punição utilizado a torto e a direto contra os cidadãos que eles representam. Os recursos do Fundo Partidário e do Fundo de Financiamento de Campanha, por exemplo, continuam impenhoráveis e não podem, em hipótese alguma, ser objeto de bloqueio judicial ou de confisco.
A lei também legaliza práticas que, num passado recente, já despertaram a indignação contra os políticos que as cometeram. Quer um exemplo? Se tudo permanecer como está, os candidatos e os líderes partidários poderão gastar o dinheiro público que receberão a título desses fundos para adquirir ou alugar "veículos, embarcações e aeronaves" e utilizá-los da forma que bem entenderem. Se algum deles quiser, por exemplo, comprar uma lancha, um jatinho ou um helicóptero em nome do partido e, depois, embarcar num desses "veículos" numa viagem de férias com a família ou com os amigos, ninguém terá o direito de abrir a boca para se queixar.
Outro ponto: sabe aqueles recursos do fundo eleitoral que, nas eleições passadas, estavam reservados para as candidaturas femininas? Pois é... Agora, eles podem ser compartilhados em dobradinhas com os homens... Só mais uma, para encerrar o assunto: candidatos de partidos diferentes podem compartilhar material de campanha. Essa possibilidade, na prática e ao lado de outras medidas da nova lei, reduz o esforço feito até aqui no sentido de promover a necessária redução da quantidade de legendas existentes no Brasil.
OBRA COLETIVA — Um projeto como esse, como se observa até pelo placar da votação, revela uma tendência que não pode ser atribuída a este ou aquele partido e muito menos à influência do governo atual ou do anterior. Ela demonstra, acima de tudo, a união de toda a Casa (com as raríssimas e honrosas exceções de sempre) em torno da visão de que os políticos se colocam acima dos cidadãos que deveriam representar. É bom repetir para que não haja dúvidas: o recado passado por essa "minirreforma eleitoral" é o de que aqueles que formulam as leis não se sentem obrigados a se submeter aos mesmos critérios e ao mesmo rigor que pesa sobre a sociedade brasileira.
Nesse caso, não cabe jogar a culpa sobre a direita ou a esquerda, mas a todo o Parlamento. A deputada que assina a obra coletiva que deu origem às mudanças, Dani Cunha, do União Brasil, como se sabe, segue uma orientação de direita. Integrante da bancada bolsonarista mais fiel, ela é filha e se guia pela cartilha do ex-deputado Eduardo Cunha — execrado por todos os petistas do mundo por ter autorizado a abertura do processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff. Já o relator Júnior, por sua vez, é petista de carteirinha. Vice-líder do governo na Câmara, foi um dos escolhidos a dedo para integrar a CPMI que investiga os atos de 8 de janeiro e garantir que o trabalho saia conforme os interesses do Planalto. Ou seja: é pessoa de confiança da cúpula partidária.
Em circunstâncias normais, Júnior e Dani nunca estariam do mesmo lado. Eles jamais se entenderiam em torno de qualquer outra questão — e qualquer projeto de autoria de um ficaria desfigurado se tivesse o outro como relator. Mas, nesse caso, não! Os dois se entenderam às mil maravilhas.
PASSO A PASSO — Um fato a ser destacado foi a rapidez com que a matéria passou pela Câmara. Se Suas Excelências tratassem as matérias de interesse da sociedade com o mesmo senso de urgência demonstrado na hora de cuidar dos temas que os beneficiam, muitos dos problemas que hoje afligem o povo brasileiro já estariam resolvidos. Apenas 21 dias — isso mesmo, nada mais do que três semanas! — se passaram entre o dia 23 de agosto deste ano, quando o presidente da Câmara, Arthur Lira, instalou um Grupo de Trabalho destinado a debater as novas regras eleitorais, e a aprovação da matéria pelo plenário, na noite da última quarta-feira, dia 13 de setembro.
O Grupo, que atuou sob coordenação de Dani Cunha, contou com representantes de 13 das 23 legendas com assentos na Câmara. Alguns entre eles eram tão bolsonaristas quanto ela. Outros, tão lulistas quanto o relator Júnior. A despeito das divergências entre esses dois grupos, que nos últimos anos têm impossibilitado qualquer diálogo civilizado sobre política no país, o entendimento foi perfeito. Como comprovam as gravações das sessões do Grupo, que podem ser vistas no site www.camara.leg.br, não houve qualquer altercação que dificultasse a aprovação da matéria.
Para dar mais clareza ao que se pretende mostrar aqui, não custa reconstituir, passo a passo, a movimentação que resultou na aprovação do projeto e que dará aos partidos e aos políticos toda liberdade do mundo para gastar os R$ 6 bilhões em recursos públicos a que terão direito no ano que vem. Eles poderão gastar esse dinheiro da forma que bem entenderem praticamente sem ter que prestar contas sobre o destino do dinheiro.
Para se chegar a esse resultado, tudo transcorreu com a velocidade de um corisco. No dia 23 de agosto, quarta-feira, o Grupo de Trabalho criado por Lira foi instalado para tratar do assunto. Dele fizeram parte, além de Dani e Júnior, as deputadas e os deputados Alexandre Guimarães (Rep-TO), Antônio Brito (PSD-BA), Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP), Áureo Ribeiro (Sol-RJ), Baleia Rossi (MDB-SP), Luiz Tibé (Avante-MG), Pedro Campos (PSB-PE), Renata Abreu (Pode-SP), Renildo Calheiros (PcdoB), Talira Petrone (PSOL-RJ) e Thiago de Joaldo (PP/SE).
A primeira reunião serviu apenas para dar posse a essa turma e para sacramentar os nomes de Dani como coordenadora e de Júnior como relator da matéria. No dia seguinte, numa reunião aberta às 15h37 e encerrada às 16h03, o relator apresentou seu plano de trabalho. Na quarta-feira seguinte, dia 29, houve nova sessão de debates pela manhã. Havia uma outra sessão prevista para o período da tarde. Mas tanto ela quanto a que estava marcada para o dia 30 acabou não acontecendo.
A reunião mais longa foi a do dia 31. Nela, houve uma audiência pública que reuniu autoridades e especialistas em Direito Eleitoral — mas nada do que foi dito ali foi incluído nos textos apresentados por Dani Cunha e relatados por Júnior. Detalhe: nem a coordenadora nem o relator acompanharam essa reunião integralmente, assim como nenhum dos outros 11 integrantes do Grupo. A coordenadora chegou atrasada e o relator saiu antes do encerramento dos trabalhos. Alegou compromissos na CPMI do dia 8 de janeiro, que para ele era mais importante, e se mandou. A impressão que ficou foi a de que os especialistas estiveram ali apenas para cumprir uma formalidade.
O relatório de Júnior foi apresentado no dia 4 de setembro. Na quarta-feira, dia 6, véspera do feriado da Independência, houve no Anexo II, Ala A, Sala 172ª Superior, da Câmara dos Deputados o "debate sobre o texto da proposição a ser apresentada pelo grupo". Os trabalhos tiveram início às 11h13 e apenas 25 minutos depois, às 11h38, estavam devidamente encerrados. A impressão era que não havia o que debater. Tudo que havia para se resolver já estava decidido antes do debate ter se iniciado.
Mas como diz o sucesso da dupla Chitãozinho e Xororó, sucesso nas casas de karaokê de todo o Brasil, o Grupo de Trabalho precisava ir "negando as aparências, disfarçando as evidências". E assim, eles seguiram todo esse ritual até que, no dia 11, uma segunda-feira — dia em que raramente há trabalhos na Câmara, ainda mais depois de um feriadão —, o tema voltou a ser tratado e o relatório telegráfico apresentado por Júnior foi aprovado. Como se vê, a turma estava mesmo com pressa.
CIRCUNSTÂNCIAS DO MOMENTO — Mudanças frequentes na lei eleitoral não são surpresa na história recente do Brasil. A começar pela disputa presidencial de 1989, a primeira depois da promulgação da Constituição, o país teve 18 eleições. Cada uma delas foi regida por uma legislação diferente da anterior. Ou seja: no Brasil, quando o assunto é eleição, não são as circunstâncias que precisam se submeter à lei. A lei é que se altera conforme as circunstâncias — sempre com o objetivo de atender aos interesses dos grupos envolvidos na disputa; nunca dos que serão afetados pelo resultado do pleito.
Há sempre alterações nos cálculos de proporcionalidade para formação das bancadas, na quantidade mínima de votos que um partido precisa para continuar existindo, nos critérios de coligações entre legendas e, claro, nas formas de financiamento das campanhas. Uma das mudanças mais radicais se deu para as eleições de 2016. Diante da exigência de rigor que vieram no rescaldo da Operação Lava Jato, houve ali uma pressão forte para que as Pessoas Jurídicas não pudessem mais fazer doações para os candidatos em disputa.
A partir dali, e como acontece nos Estados Unidos e em outros países de democracia consolidada, os financiamentos das candidaturas passariam a ser feitos diretamente pelos cidadãos. Certo ou errado, é isso que está previsto na lei! O problema é que a nova regra representou uma alteração enorme na tradição eleitoral brasileira e trouxe com ela o risco de asfixiar as candidaturas e as campanhas pela falta de recursos. Afinal, o dinheiro doado pelas pessoas não seria suficiente para bancar as campanhas e os candidatos teriam dificuldades para financiar o eleitor.
A solução encontrada pelos partidos e pelos políticos, ao invés de procurar estabelecer com a sociedade laços capazes de convencer as pessoas a contribuir com recursos próprios e apoiar os projetos eleitorais de seus interesses, foi criar um Fundo abastecido com o dinheiro do povo e, com ele, financiar suas campanhas. Os recursos seriam distribuídos entre as dezenas de partidos existentes no Brasil conforme o tamanho de suas bancadas na Câmara — e os caciques de cada legenda teriam o poder de determinar quem colocaria a mão nos recursos. A matéria, é claro, foi criticada pela sociedade, mas passou pelo Parlamento com a maior facilidade.
Para compensar a existência do Fundo de Financiamento de Campanha, mais conhecido como Fundo Eleitoral, que se somaria ao Fundo Partidário destinado a bancar o dia a dia das legendas, os parlamentares concordaram, no início, com a ideia de impor critérios rigorosos de fiscalização do uso desses recursos. As prestações de contas desses gastos à Justiça Eleitoral passariam a ser mais detalhadas e, no período da campanha, teriam que ser feitas diariamente.
Para encurtar a história, as regras que eram rígidas em 2016 foram se tornando cada vez mais brandas nas eleições seguintes — e o valor à disposição dos partidos para financiar a campanha foi se tornando cada vez mais vultoso. Além disso, os critérios para doação do dinheiro por pessoas físicas foram sendo gradativamente abrandados. No início, as contribuições aos partidos tinham que ser feitas por transferência bancária ou por cheque nominal e contabilizadas por quem as recebesse com o nome completo, o número do CPF e outros dados pessoais do doador.
De acordo com os critérios aprovados na semana passada, esse rigor ficou no passado. Daqui por diante, as doações poderão ser feitas por Pix, por máquinas de cartões de crédito ou por cobrança virtual. A doação poderá ser feita por meio de cooperativas de crédito, sendo também aceito o financiamento coletivo por meio de "vaquinhas virtuais" alimentadas por pessoas físicas.
Acontece, porém, que a mesma lei menciona textualmente a "transferência monetária instantânea via Pix ou similar, independentemente de a chave associada ao doador ser o CPF". Qualquer brasileiro que já tenha feito alguma transação Pix sabe que o sistema aceita como chaves um número de telefone celular ou um endereço e-mail. E, também, claro, um CNPJ.
No caso das vaquinhas virtuais, o valor deverá ser declarado pelo total arrecadado, sem a necessidade de identificação de cada doador. No caso de suspeita de irregularidade, caberá ao órgão fiscalizador ou a quem se sentir prejudicado pela prática a obrigação de reunir documentos que comprovem o ato ilícito. Essa fresta pode permitir, no limite da interpretação da lei, a volta das doações anônimas, inclusive de pessoas jurídicas, às campanhas eleitorais.
O assunto, claro, não está decidido — mas depois do empurrão da semana passada, pode-se apostar que essas são as regras que regerão as próximas eleições. E antes que alguém interprete o que foi dito aqui como uma tentativa de criticar os partidos ou o próprio exercício da democracia (argumento manjado que os senhores parlamentares utilizam sempre que alguém critica esse tipo de arranjo), um aviso! Uma das características do regime democrático é justamente a de permitir o debate e promover a discussão das ideias, por mais que elas sejam incômodas para "x", "y" ou "z". Para que esse debate aconteça, é necessário transparência. E transparência, aqui entre nós, foi tudo o que não houve na discussão dessa "minirreforma eleitoral".