Em primeiríssimo lugar, é bom deixar claro que esta coluna não é nem poderia ser contrária aos reajustes salariais a policiais, professores, médicos, enfermeiros ou qualquer outro servidor público.
Todos esses profissionais merecem vencimentos capazes de assegurar uma vida digna e um futuro confortável a suas famílias. Diante disso, quanto mais alto for o valor estampado do contracheque no final do mês, melhor.
Esclarecido esse ponto, é preciso olhar com muito cuidado para as consequências de alguns reajustes que vêm sendo concedidos por Brasília.
Vistos sem paixão, eles são daquele tipo de bondade concedida hoje que pode se revelar uma tremenda maldade amanhã — e criar problemas que, mais cedo ou mais tarde, podem se voltar contra os mesmos profissionais que, no primeiro momento, foram beneficiados com os reajustes.
Aumento bom é aquele concedido conforme a capacidade de pagamento do Estado e que gera efeitos que se prolongam por muito tempo. Ponto final.
Quando esse fundamento não é levado em conta, os reajustes podem se transformar em armadilhas perigosas, que geram benefícios passageiros, que desaparecem em pouco tempo e acarretam consequências negativas que muitas vezes se prolongam pelos anos seguintes.
IMPOSTO CRUEL — Na semana passada, foi concedido um aumento reajuste de 33% sobre o salário dos professores da Educação básica. O índice provocará um aumento em cadeia das despesas de todos os níveis da administração pública e significará obrigações de mais de R$ 30 bilhões para a União, estados e municípios.
Visto como um número isolado, o impacto da medida parece até modesto. Afinal, o que são esses R$ 30 bilhões num momento em que o Congresso acaba de reservar no orçamento deste ano um valor quase três vezes maior, de R$ 89 bilhões, para o pagamento do Auxílio Brasil e para o aumento do salário mínimo? O problema, porém, não é o valor, mas a roda que se coloca em movimento a partir do momento que a decisão é tomada.
O que o presidente fez, ao criar uma despesa que pesará nos cofres de todos os governadores e prefeitos do Oiapoque ao Chuí — independentemente da situação em que se encontram suas finanças — foi mais ou menos o mesmo que derrubar o primeiro dominó de uma fileira que, no final, pode jogar por terra todo o esforço da área econômica (e em especial do Banco Central) para organizar as contas públicas e segurar o desarranjo geral dos preços.
O resumo dessa ópera é mais repetitivo do que as notas de um realejo. O aumento aos professores, assim como a promessa de reajuste aos policiais federais e outros profissionais de segurança, é o ponto de partida de uma pressão feita por outras categorias profissionais num momento em que os cofres públicos estão exauridos pelas medidas recentes de combate às consequências da pandemia.
O governo tentará esboçar uma resistência inicial, mas daqui a pouco será impossível não ceder diante da onda de greves e de decisões judiciais que terá pela frente.
Os pedidos serão atendidos a conta gotas e no final, quando todos forem contemplados, as categorias que foram beneficiadas no início já estarão novamente insatisfeitas. E assim, num enredo de desfecho conhecido antes mesmo do filme começar, os favores concedidos hoje pressionarão o equilíbrio das contas públicas e serão cobrados amanhã na forma do mais perverso de todos os impostos já inventados pela incompetência administrativa: a in-fla-ção!
BAGUNÇA GERAL — Trata-se de uma assombração que, de repente, volta das profundezas depois de ser dada por extinta. A inflação, todo brasileiro com mais de 50 anos está cansado de saber, provoca um desarranjo geral na vida financeira das famílias e, por mais que afete a sociedade de alto a baixo, atinge de forma mais desumana quem está na base da pirâmide social. O aumento de salário que se consegue hoje é corroído num espaço curtíssimo de tempo e logo se mostra insuficiente para pagar as mesmas mercadorias que comprava no primeiro momento.
Ainda está na memória de quem viveu os anos anteriores ao Plano Real a corrida desenfreada que se travava nos corredores dos supermercados contra os operadores das máquinas de remarcação de preços.
O quilo de feijão que a família deixasse de comprar durante a manhã certamente custaria mais caro no final da tarde — e num ambiente em que os preços eram reajustados para compensar a expectativa da inflação futura, a taxa chegou a bater em incríveis 80% ao mês e a superar os 1.150% em 1989.
A situação atual, claro, ainda está longe dessa balbúrdia e, diante desses números, os 10% de IPCA acumulados em 2021 chegam a parecer inofensivos. Não são! Numa Economia minimamente organizada, uma taxa anual de dois dígitos significa que os alertas emitidos não foram levados a sério e que algo muito terrível pode estar apenas começando.
O problema das contas públicas, é bom deixar claro, não é causado apenas pelos aumentos de salários concedidos a determinadas categorias. A questão é que, somados a outras despesas feitas para atender a interesse aqui e outro ali, podem ser o ponto de partida de um círculo vicioso cuja resultante é a bagunça geral das contas públicas.
Quando o governo perde o controle sobre os próprios gastos, a consequência é o aumento da quantidade de dinheiro em circulação e, com isso, a alta geral de todos os preços.
Soma-se a isso a situação internacional que, entre outros efeitos, tem resultado na elevação do custo dos combustíveis a níveis insuportáveis para a maioria das pessoas. Num cenário como esse, tudo fica mais caro e difícil até para quem parece ter controle sobre o que está acontecendo: o próprio governo.
Veja, por exemplo, o caso dos títulos públicos. No ano passado, o governo financiava seu funcionamento com a emissão de títulos que ofereciam uma taxa anual bruta de mais ou menos 8% ano: 3% de juros, mais 5% de correção com base no IPCA no ano anterior. Com a elevação do IPCA para 10%, os juros das NTNs, um dos principais títulos da dívida brasileira, passaram para 5%. Ou seja, 15% no total.
Na prática, isso quer dizer o seguinte: o governo que pagava um total de R$ 80 mil de juros para cada R$ 1 milhão de sua dívida, passa a pagar R$ 150 mil. O significado é óbvio: a diferença de R$ 70 mil entre um valor e outro, que poderia ser destinada a programas sociais terá que ser obrigatoriamente usada para o pagamento de juros.
A origem primária da inflação, claro, é o desarranjo das finanças públicas em situações em que os gastos superam a arrecadação e a capacidade de financiamento saudável de uma dívida mobiliária que fechou o ano passado acima de R$ 5,6 trilhões e que tem crescido diante da necessidade de cobrir as despesas pressionadas pelas medidas de combate à pandemia.
Essas medidas, porém, abriram a porteira por onde passou a boiada do descontrole das contas. Com o tempo, as decisões emergenciais passaram a justificar, também, despesas destinadas a beneficiar políticos que se preparam para disputar as eleições. É preciso cuidado. Afinal, ninguém quer assistir novamente a um filme que todos sabem como termina: com sacrifícios e sofrimento. Ainda há tempo de impedir o pior!