Há muitos anos, levei para ser interrogada, em uma ação penal no Supremo Tribunal Federal, a então ministra da Fazenda - a mulher mais poderosa do Brasil - Zélia Cardoso de Mello. A cobertura de imprensa era algo ensurdecedor. Um massacre. A ministra, brilhante, tinha contra si a má vontade da grande maioria das pessoas, que tinha ódio do bloqueio do ridículo plano Collor, o qual confiscou todas as contas do país, deixando os cidadãos com um limite de 50 mil reais. A defesa, claro, era técnica; mas o circo estava montado.
Na hora do interrogatório, tranquilizei-a e disse que o relator era um homem muito educado, gentil e respeitoso. Não havia chance de ele ser indelicado. Esse é o único momento de defesa pessoal, no qual o réu se manifesta e se defende. Os demais atos são da defesa técnica. A regra é que todos os interrogandos fiquem muito tensos. Zélia, além de tudo, estava amamentando e bastante fragilizada. A garantia era a gentileza, que deveria ser a regra, do ministro que conduziria a audiência.
Começou o interrogatório e a diretora-geral do Supremo, Dra. Alda Villas Boas, ofereceu um pratinho de guloseimas à ré, que, agradecida, pegou uma bolacha. Surpresa geral. O ministro, nervoso e agressivo, fez uma grave reprimenda à ministra Zélia e bradou: “A senhora é ré no meu Tribunal e só pode comer se eu autorizar!” . Parecia filme americano. Perplexidade. A doutora Alda, constrangida, dizendo que ela havia oferecido. Um caos.
A ministra encostou a cabeça no meu ombro e, tremendo, disse: “acho que vou desmaiar” ; no mesmo instante, respondi, “Consegue? Desmaie!” . E a ministra desabou desmaiada. A cena, na qual a segurei nos braços, felizmente, não foi filmada, senão seria mais conhecida do que o triste episódio da bermuda no Supremo.
O que cabe anotar é que o ministro Neri da Silveira, com a elegância e a humildade das pessoas sérias, imediatamente, pediu desculpas e tratou de determinar que ela tivesse todos os cuidados devidos. Foi, sem dúvida, um ato dos mais inusitados da história do Supremo Tribunal. O ministro Sepúlveda Pertence, que via a cena de longe, brincou comigo: “você começou a ganhar o caso ali” . Zélia foi absolvida à unanimidade pelo Plenário do Supremo. Claro, porque era inocente.
Recentemente, presenciamos um episódio em que a juíza Lana Leitão Martins, do Tribunal de Justiça de Roraima, ao presidir uma audiência de custódia, tratou de garantir direitos mínimos ao preso. Uma magistrada séria, humanista e com o olhar de respeito às garantias constitucionais, o qual deve presidir a relação no Poder Judiciário. Ao se preparar para interrogar um réu de 20 anos de idade, observou que ele tremia de frio. Ofereceu café ao detento, mandou buscar uma blusa e retirar as algemas para dar a devida dignidade ao ato. A juíza cumpria rigorosamente a lei.
Causou extrema indignação a maneira chula, irresponsável e até criminosa com a qual reagiram representantes da extrema direita. O deputado federal Nikolas Ferreira, do PL-MG, foi debochado e tratou a ação da juíza como um privilégio ao pobre detento. O líder deles, Jair Bolsonaro, cuidou de voltar a pedir o fim da audiência de custódia. Imediatamente, os indigentes intelectuais Sérgio Moro e Deltan fizeram coro de maneira cruel. Faltou, inclusive, inteligência, pois esses deveriam estar numa fase de defender os direitos dos presos. Afinal, como diz o ditado, “a vida dá, nega e tira” .
No entanto, o que impressiona no episódio é que a extrema direita criou um fosso no Brasil. A questão do país não é mais só ideológica e muito menos partidária. A divisão se dá em torno de visão do mundo. Há os que respeitam e prezam pelos direitos constitucionais e pela dignidade como regra de convivência. E há os que se desumanizaram. Tomados por um ódio insano, construíram nuvens tóxicas e densas que não os permitem enxergar o outro e que impedem os demais de respirar ares puros e democráticos. A próxima tarefa será tentar dar a esses bárbaros um banho de civilização, de respeito e até, se possível, de amor ao próximo.
Remeto-me a Mia Couto, em Versos do Prisioneiro A Sentença:
“Você
tem que aprender
a respeitar a vida humana, disse o juiz.
Parecia justo.
Mas o juiz
não sabia que, para muitos,
a vida não é humana.
O prisioneiro retorquiu:
há muito me demiti de ser pessoa.
E proferiu, por fim:
um dia,
a nossa vida será, enfim,
viva e nossa.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay