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Arquipélago no Rio Grande do Sul
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Arquipélago no Rio Grande do Sul


Até afundar no oceano Atlântico, há cerca de 40 milhões de anos, a Elevação do Rio Grande, a maior cadeia montanhosa submersa da margem continental brasileira, deve ter sido um arquipélago com acidentes geográficos como os encontrados hoje ao longo do litoral.

Em uma expedição com o navio de pesquisa Alpha Crucis em janeiro e fevereiro de 2018, uma equipe do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) mapeou os topos aplainados da elevação e identificou terraços marinhos dispostos em degraus, com canais fluviais, dunas, cavernas e resquícios de manguezais. As dragas trouxeram à tona amostras de rochas vulcânicas e corais e esponjas que cresciam nas paredes de uma fenda que corta o centro das três partes da elevação. Os resultados da viagem foram detalhados em um artigo publicado em maio na revista científica Frontiers in Marine Science.

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Situada a 1.300 quilômetros (km) de Porto Alegre, com cerca de 150 mil km2, o equivalente a três vezes a área do estado do Rio de Janeiro, e profundidades que variam de 700 a 2 mil metros (m), a Elevação do Rio Grande tem sido mais estudada nos últimos anos por causa de seu valor econômico. Em 2015, a Autoridade Internacional do Fundo Marinho (ISA) concedeu à Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, o direito de investigar por 15 anos as possibilidades de exploração econômica das crostas de ferro e manganês das rochas da elevação, ricas em cobalto, níquel, molibdênio, nióbio, platina, titânio, telúrio e outros elementos químicos.

Em um levantamento preliminar, apresentado em um congresso de 2015 na Flórida, Estados Unidos, a CPRM relatou a identificação de 9.729 km2 com alta reflectância (reflexo da radiação), indicando a provável ocorrência de crostas de ferro e manganês. Em dezembro de 2018, o governo brasileiro solicitou à Organização das Nações Unidas a ampliação da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas (370 km) para incluir a elevação .

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O alto da montanha : Os degraus dos terraços marinhos (à esq.) poderiam resultar da erosão costeira e o cânion (à dir.) de antigos rios, no topo do Rio Grande, entre 600 e 800 metros de profundidade.

“Precisávamos de dados técnicos para consolidar a reivindicação brasileira”, diz o geólogo Roberto Ventura Santos, ex-diretor da CPRM e professor da Universidade de Brasília (UnB). Por sua vez, pesquisadores de instituições públicas de pesqui-sa do Brasil e de outros países, como o Serviço Geológico dos Estados Unidos e a Universidade de Kingston, do Reino Unido, promoveram expedições com o propósito de conhecer a região.

Como resultado, a história dessa região submersa está sendo pouco a pouco recuperada. O que hoje é uma cadeia de montanhas sob o mar deve ter sido parte do supercontinente Gondwana. Em consequência de processos tectônicos e do calor do interior da terra que subia para onde hoje está o arquipélago de Tristão da Cunha, quase no meio do Atlântico, Gondwana começou a se quebrar entre 146 milhões e 100 milhões de anos atrás, formando as atuais América do Sul e África.

Com base na análise das fraturas do assoalho oceânico e dos movimentos das placas tectônicas, a geofísica Michelle Graça, da CPRM, em um estudo realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Universidade de Liverpool, Inglaterra, concluiu que até cerca de 80 milhões de anos atrás a Elevação do Rio Grande deveria estar unida – ou ao menos próxima – à cadeia Walvis, um conjunto de montanhas com 3 mil km de extensão a 600 km da Namíbia, na África.

Os movimentos das placas tectônicas e os jatos de magma do interior da Terra separaram as duas elevações e deram a elas suas atuais feições, a Walvis em formato de cadeia montanhosa e a Rio Grande como um platô, com topo achatado, como detalhado em um artigo publicado em março na Marine and Petroleum Geology.

“As duas elevações estavam separadas há 50 milhões de anos”, observa Graça. Segundo ela, a Elevação do Rio Grande parou de se formar e, segundo coletas recentes, abriga blocos de rochas com idades de cerca de 83 milhões e 47 milhões de anos. Em contrapartida, a Walvis continua se formando como resultado da subida de magma, com blocos de rochas com 1 milhão a 30 milhões de anos na região mais próxima de Tristão da Cunha e de até 114 milhões de anos na costa da Namíbia.

De acordo com análises do grupo de Santos, publicadas em maio na revista Terra Nova, a expulsão de lava mais recente da elevação deve ter ocorrido entre 44 milhões e 40 milhões de anos, quando a cadeia montanhosa ainda estava acima do nível do mar. Nessa época, começou a submergir “provavelmente em consequência do peso de um vulcão e da lava e da movimentação de placas tectônicas que fizeram a crosta afundar”, pondera o geólogo Luigi Jovane, do IO-USP e coordenador da expedição com o Alpha Crucis à região, em colaboração com britânicos e norte-americanos. “Mas ainda vimos muito pouco”, aflige-se. A expedição da USP examinou apenas a parte mais rasa de um dos três blocos rochosos da Elevação do Rio Grande.

Curiosamente, a área que o governo brasileiro reivindica é formada por antigos blocos do atual continente africano, de acordo com os estudos mais recentes. “As rochas da Elevação do Rio Grande pertenceram ao lado africano do Gondwana”, afirma Graça. Santos, da UnB, chegou à mesma conclusão: “A composição e a idade das rochas da Elevação do Rio Grande que analisamos são mais próximas das do continente africano”.

A ideia de que essa cadeia de montanhas poderia fazer parte da África emergiu em 2011, quando geólogos da CPRM coletaram ali amostras de granito e gnaisse com até 2,2 bilhões de anos, mais antigas que as rochas do assoalho marinho, que chegam a no máximo 240 milhões de anos. A descoberta mudou o olhar sobre essa região, até então vista como resultado da formação do assoalho oceânico e de erupções vulcânicas.

Ambiente frágil
Dois anos depois, por meio de um minissubmarino de pesquisa de águas profundas, pesquisadores brasileiros e japoneses colheram outras amostras de rochas continentais, cuja análise reforçou a hipótese de que essa região do Atlântico Sul poderia de fato ser um pedaço de continente que teria submergido durante a separação da América do Sul e da África. Segundo Santos, as duas elevações podem ser os pedaços que faltavam para completar o quebra-cabeça da junção entre a América do Sul e da África. Enquanto o litoral do nordeste brasileiro encaixa-se bem com o oeste da África, o sudeste e o sul não casam com o sul do continente africano.

“É um ecossistema peculiar”, comenta o biólogo Paulo Sumida, do IO-USP, que participou da expedição à região. Sua equipe encontrou ali uma das primeiras ocorrências no Atlântico Sul da associação simbiótica entre a esponja Sarostegia oculata e a anêmona Thoracactis topsenti, formando ramificações semelhantes às de corais. O biólogo Paulo Corrêa, também do IO, está descrevendo os padrões de biodiversidade da região, com prováveis espécies novas. Trata-se também de um ambiente frágil, “de renovação muito lenta”, observa Sumida.

Bactérias capazes de produzir oxigênio a partir de amônia e de sulfato parecem ser as principais fontes de energia para os organismos da Elevação do Rio Grande, de acordo com a bióloga do IO-USP Vivian Pellizari. “As crostas de ferro e manganês sobre as rochas abrigam comunidades microbianas próprias e uma diversidade biológica menor que a dos sedimentos próximos”, diz ela, com base em um trabalho da oceanógrafa e doutoranda do IO Natascha Bergo sobre a origem das crostas.

Os pesquisadores estão inquietos com os possíveis impactos da exploração econômica, embora ainda não existam tecnologias para extrair minérios do fundo do mar. “Muitos organismos que estão lá refletem a vida nos oceanos há milhões de anos, quando não havia oxigênio na atmosfera”, diz o biólogo Frederico Brandini, também do IO, que observou que as águas do alto da Elevação do Rio Grande são pobres em nutrientes. Sumida acrescenta: “Qualquer intervenção pode facilmente levar os organismos à extinção”.

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