Há um ano, uma família com cinco crianças deixou às pressas a casa onde vivia na comunidade da Capadócia, no Parque Brasilândia, Zona Norte de São Paulo. Durante as chuvas de verão de janeiro de 2023, a terra encharcada fez com que a parede abrisse uma rachadura.
“Vai desabar, vai desabar”, gritaram os membros da família enquanto saíam desesperados. Moradores das casas debaixo também precisaram abandonar seus lares às pressas. A região é uma das mais de 400 da cidade de São Paulo que estão sujeitas a riscos de deslizamento.
Segundo levantamento feito pela Agência Pública, o município de São Paulo tem quase 200 mil moradias em áreas com risco de deslizamento de terra ou solapamentos. Ao todo, a apuração, com dados do GeoSampa — portal mantido pela Prefeitura de São Paulo — encontrou 185.634 moradias em regiões classificadas como de risco. Os dados são referentes a visitas da Defesa Civil feitas até dezembro de 2023.
As construções em áreas de risco geológico estão distribuídas em 489 áreas mapeadas de 29 das 32 subprefeituras do município. Apenas as subprefeituras da Sé, Vila Mariana e Pinheiros não foram apontadas nos relatórios.
E esse número vem aumentando: em 20 anos, a quantidade de territórios suscetíveis a deslizamentos e solapamentos mais que dobrou. Em dezembro de 2003, foram catalogadas 214 áreas.
Família cuja casa rachou durante chuva precisou deixar o local duas vezes
“Numa chuva aconteceu que [as paredes] começaram a rachar e eles [família] saíram gritando ‘vai desabar, vai desabar’. Na hora que nós vimos, estava fazendo até barulho essa parede aí, trincando. Rachou a casa inteira, de ponta a ponta”, contou o pintor Paulo Sergio Conceição de Oliveira, de 29 anos.
“Quando aconteceu, os moradores aqui das casas de baixo também tiveram que sair porque ficaram com medo. Depois eles voltaram, porque não tinham pra onde ir pagando aluguel”’, contou Oliveira.
Segundo o pintor, a família que saiu às pressas também retornou, mas deixaram o imóvel de vez após perceberem que a rachadura aumentava e a terra ameaçava soterrar a todos.
“O pessoal aqui não sai por falta de opção e não ter pra onde ir. É muita promessa do tipo ‘eu vou te dar o bolsa de aluguel, vou te dar a casa’ e depois pega o voto e o pessoal fica desacreditado”, disse o pintor.
Na mesma viela, Elizabete Maria da Silva, de 45 anos, descartou peças de roupas sujas de lama que ficaram apodrecidas após o córrego que corta a comunidade encher, durante as chuvas de 10 de janeiro deste ano. Dentro da casa onde vive com a mãe, a irmã e mais quatro filhos, telhas de plástico improvisadas cobriam a parte em que galhos de uma árvore de grande porte destruíram a laje da residência.
“A Prefeitura queria tirar a gente daqui para levar para um albergue, mas eu fui para o barraco da minha prima, mais lá pro fundo, até a gente poder consertar aqui”, contou Elizabete Silva.
Durante a mesma chuva, uma árvore caiu sobre o imóvel vizinho ao de Elizabete Silva e foi destruído. O morador deixou a casa de madeira para ficar com parentes. Além do dano na estrutura da casa, a matriarca contou que a enchente danificou parte dos móveis, mas a preocupação era com os filhos: “Meu filho tentou segurar a porta [para a água não entrar], mas não deu. Eu estava segurando o botijão, a geladeira e segurando as crianças para não caírem na água”.
Uma ponte improvisada com madeiras e vigas de metal sobre o córrego é o que divide a comunidade. No Parque Brasilândia, 1.100 moradias estão classificadas com altíssimo risco de deslizamentos de terra. Segundo os moradores, o local é habitado há pelo menos dez anos. O terreno onde as habitações foram construídas é parte particular e outra, um lote municipal.
“Quem não gostaria, moço, de morar em outro lugar?”
Durante a visita à comunidade da Capadócia, uma casa desnivelada no alto de um barranco chamou atenção. Nela vive o catador de reciclagens José Amaro da Silva, de 58 anos, que mora no local há 23 anos, segundo ele.
O reciclador contou que duas árvores de grande porte já caíram em cima da casa dele e por sorte não foi atingido. “Não tenho medo de chuva, moço. Tenho medo que caia uma árvore e [me] mate” disse ele.
Amaro contou que, em 2013, a Prefeitura de São Paulo, sob a gestão de Fernando Haddad (PT), fez uma visita em sua casa e o cadastrou no programa de moradia popular, mas nunca teve notícias do possível novo lar.
“Quem não gostaria, moço, de morar em outro lugar? Ainda mais nós que ‘mora’ por aqui, né?”, desabafou o catador de reciclagens. “Onde eu gostaria de morar? Numa casa bem bonita”, completou ele.
Jailton Julio Lopes dos Reis, 29 anos, trabalha como auxiliar de pedreiro. A casa em que ele vive foi construída com madeiras há quatro anos. O que separa o imóvel do barranco abaixo da moradia são dois palmos de terra.
Outras casas estão em construção no terreno e Jailson Reis destaca: “Estão tentando ter a casa própria. É o que eu estou fazendo, aqui não vai ficar para mim, vai ficar para os meus filhos. Não tenho o que deixar para os meus filhos, mas isso [a casa] eu tento deixar para eles quando legalizar [a ocupação]”.
É com a areia trazida pelo córrego poluído que o auxiliar de pedreiro e outros moradores pavimentam as escadas esculpidas no chão de terra para fornecer mais segurança a quem mora na comunidade da Capadócia, como José Manoel da Silva, de 65 anos. Recém-aposentado, o idoso vive sozinho há oito anos em uma casa de madeira na beirada de um barranco.
Por conta das chuvas fortes, o piso foi destruído, restando apenas a terra batida para abrigar a cama, o fogão, uma televisão de tubo, um armário simples e o banheiro sem porta onde a água escorre por baixo da residência. “O aluguel mais barato que eu acho por aqui é 600 conto. Eu vou comer o quê?”, desabafou José Silva ao contar o motivo de viver em uma área de risco, sem opções.
“Já fui expulso de outro lugar, lá no Parque Taipas, porque uma pedra rolou por cima de uma casa e matou a mulher. Eles foram lá [a Prefeitura de São Paulo] e tiraram todo mundo”, disse o aposentado. Ainda segundo ele, as casas ainda não foram entregues e foi oferecido o bolsa aluguel. “Quatrocentos contos dá pra pagar o aluguel?”, ele questionou em tom de desabafo.
Entre as recomendações listadas pela Defesa Civil sobre o que deve ser feito na região da favela da Capadócia está “executar remoção definitiva de moradias no setor, caso a relação custo-benefício indique a situação”.
Racismo ambiental e vista grossa de governos deixam bairros periféricos ainda mais vulneráveis
Pedro Camarinha, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e especialista em desastres, explica que são os processos induzidos pela ação do homem que potencializam os fatores naturais nas áreas urbanas com maior risco. Ele explica que essas situações ocorrem, majoritariamente, em bairros periféricos e com pouca infraestrutura.
“Se fosse uma encosta natural, já seria preocupante, mas por não haver [infraestrutura], se torna mais preocupante ainda. No Brasil, historicamente, essas populações menos favorecidas vão sendo deslocadas, sendo marginalizadas, tendo que ocupar essas regiões. O governo faz vista grossa a esse tipo de problema até que ele atinja um nível absurdo, que aí passa a se olhar, fazer umas obras paliativas ou não, mas a intervenção acaba sendo muito complexa e muito onerosa”, diz.
Perguntado sobre a possibilidade de ter construções seguras em áreas de encosta, Camarinha diz que algumas cidades adotam o conceito de convivência com o risco. “É muito comum você ver em São Paulo a concretagem de uma encosta. Você impermeabiliza para não entrar água, não é das melhores [soluções], mas ajuda. Há grampeamento de solo, uma série de outras [ações] que ajudam aquela massa de solo não se mexer, só que isso é caro”, explica.
Para o pesquisador, em casos de remoção, ela deve ser pensada de forma digna para as famílias. “Se houver a possibilidade da remoção dessas pessoas, que aconteça com dignidade. Quando eu falo em dignidade, é você retirar a pessoa de um bairro aqui, colocar do outro lado da cidade, às vezes não tem infraestrutura, não tem um hospital próximo, então é trocar um problema por outro”, disse.
Para Júlio Cézar, assistente social e co-vereador do Quilombo Periférico, mandata coletiva eleita na Câmara Municipal de São Paulo, o cenário de desastres e falta de monitoramento por parte do poder público ilustram o racismo ambiental.
“Curiosamente, quais são os territórios atingidos na cidade de São Paulo e em todo o país? São territórios majoritariamente negros. O conceito de racismo ambiental vai falar do racismo a partir do meio ambiente, da exploração dos territórios quilombolas e indígenas. Mas, no cenário urbano, o racismo ambiental vai, na sua concretude, acontecer na ausência de zeladoria urbana, coleta de lixo, na naturalização dos deslizamentos nas áreas de ocupação”, afirma.
Com auxílio aluguel baixo, moradores retornam às casas em áreas de risco
A Subprefeitura do M’Boi Mirim, na Zona Sul de São Paulo, é a que concentra o maior número de áreas suscetíveis aos deslizamentos e solapamentos: são 60 zonas catalogadas. É lá que fica o Parque Chácara Bananal, no Jardim Ângela, onde há pelo menos 223 casas construídas em trechos com alto risco geológico. O local é apontado como território de altíssimo perigo desde 2009.
Embora tenha título de realeza, a travessa do Rei é um dos endereços que abriga famílias em maior risco de escorregamentos de encostas. É nela que reside Edvaldo da Silva Chagas, 65, pai de Francinaldo da Costa Torres e Silva, de 38 anos. A trinca no muro da residência tem um palmo de diâmetro e o solo está desnivelado em decorrência do terreno instável onde a construção foi erguida.
“A preocupação é mais com o meu pai, sabe? Quando chove bastante, eu fico olhando para esse muro aqui. A preocupação é derrubar esse muro aqui e o barro descer”, disse o pintor olhando para a rachadura que denuncia o risco da casa cair a qualquer momento.
Em 2011, quando a cidade estava sob a gestão de Gilberto Kassab (PSD), os moradores do bairro foram retirados de suas casas pelo altíssimo risco de deslizamento de terra. Segundo Francinaldo Silva, foi oferecido um auxílio aluguel de R$ 400, o que não era o suficiente para garantir a sobrevivência das famílias que optaram por voltar aos seus imóveis erguidos em encostas.
A diarista Dagel Santana Alves, de 35 anos, é vizinha de um imóvel que foi atingido por um deslizamento de terra em 2021. Na ocasião, segundo a moradora, a terra escorregou e destruiu parte do quintal da residência.
Vivendo no Parque Chácara Bananal, ela sabe que o local é um dos pontos classificados como de altíssimo risco de deslizamento de terra. “Foi onde o bolso coube para comprar. Eu pegava aluguel, tive a oportunidade de comprar esse terreno e sair do aluguel”, disse Bel, como é conhecida no bairro.
Para que a área se torne mais segura, o relatório da Defesa Civil de outubro de 2019 apontou que eram necessárias obras de drenagem de águas pluviais e esgoto, melhorias nos acessos às casas, muros para a contenção das encostas, além de monitoramento constante do local e dos imóveis que apresentam trincas.
A Pública questionou a Secretaria Municipal das Subprefeituras se as famílias que moram no Parque Chácara Bananal serão realocadas e quais obras de melhoria para garantir segurança aos moradores foram realizadas, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Moradores viram edifício quase desabar em chuva de janeiro
Os moradores do Jardim Germânia observam em silêncio os trabalhos dos funcionários contratados por um condomínio para remover a terra que deslizou durante as chuvas da madrugada de quinta-feira, 11 de janeiro, no Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo. A lama e o entulho de um muro de proteção quase atingiram as casas que ficam abaixo do terreno que abriga quatro prédios de 20 andares cada.
Ajudante de pedreiro, Eduardo Menezes, de 45 anos, mora em uma das 130 residências do Jardim Germânia, onde, segundo a Defesa Civil, há risco médio e alto de deslizamentos de terra e solapamentos em decorrência da erosão do solo. A região fica às margens do córrego Freitas. Olhando para a equipe de trabalhadores, ele desabafa: “quando vê assim, a gente sempre tem medo, né? Quem é que não tem medo de uma rua desse aí. Quem sabe como é a estrutura que foi feita aí?”.
Porfilio Emerson Alves dos Santos, de 29 anos, é ajudante de pedreiro e mora com suas duas filhas, a esposa e o cachorro Bob, em uma casa também de madeira com um cômodo, às margens do córrego Freitas, que cruza a comunidade.
O ajudante de pedreiro contou que já viu a varanda ser levada pela enxurrada do córrego, em dias de fortes chuvas, pelo menos oito vezes, sendo a última em 12 de janeiro. No local, a erosão do solo é evidente, além da família lidar com a presença de insetos, ratos e cobras em decorrência do mato alto nas margens do Freitas.
“Acho que eles nem sabem que nós ‘somos’ vivos”, declarou o ajudante de pedreiro, quando questionado se a Prefeitura o procurou para comunicar que a sua residência estava em uma área de risco geológico ou se o havia cadastrado em um programa de habitação.
Uma visita feita pela Defesa Civil da cidade de São Paulo ao Jardim Germânia, em outubro de 2023, apontou três pontos com riscos de deslizamentos de terra ou solapamentos na comunidade. O órgão municipal recomendou que fossem executadas obras no sistema de drenagem de águas pluviais e esgoto, melhorias nos acessos às casas, evitar a construção de novas moradias no terreno e fiscalização constante.
A reportagem questionou a Prefeitura de São Paulo sobre quais obras de redução de riscos foram executadas e se os moradores do Jardim Germânia foram cadastrados nos programas de habitação, no entanto, não houve resposta.