O tão aguardado julgamento dos ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz , assassinos confessos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes , em uma emboscada em 2018, foi marcado, como não poderia deixar de ser, por muita comoção por parte de familiares, amigos e pessoas ligadas às vítimas. Principalmente durante os interrogatório dos executores, ambos por videoconferência, por parte dos promotores e advogados de defesa.
O júri estava previsto para começar às 9h da manhã desta quarta-feira (30), no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas atrasou em uma hora. Dos 21 jurados disponíveis, sete, todos homens, foram escolhidos para participarem do júri popular.
Ronnie e Élcio respondem por três crimes ( duplo homicídio triplamente qualificado, tentativa de homicídio e receptação ) e podem ser condenados a 84 anos cada um. Caso o júri decida pela condenação, a juíza Lúcia Glioche calculará a pena deles.
Com o andamento dos trabalhos, a juíza chegou a cogitar dar continuidade até a conclusão do julgamento, invadindo assim a madrugada desta quinta-feira (31). No entanto, o interrogatório de Élcio de Queiroz, o último a ter o seu depoimento colhido, se estendeu até pouco antes da meia-noite.
A juíza então decidiu interromper o júri e estabeleceu que os trabalhos seriam retomados a partir das 8h desta quinta-feira, quando a decisão final será proferida. E, em caso de condenação, a magistrada anunciará a sentença.
O que disseram as testemunhas
Ao todo, nove testemunhas foram ouvidas no primeiro dia de julgamento. Na sequência, os réus foram interrogados.
A primeira a depor foi Fernanda Chaves , ex-assessora e amiga de Marielle, que sobreviveu ao ataque. Ela saiu do país após o atentado, já que era também um dos alvos dos assassinos.
"Não tinha como a vida ser a mesma depois daquele pesadelo, daquele atentado, daquele crime bárbaro. Foi muito doloroso para mim. É muito dolorido ter que sair do meu país. E também dói muito não poder ter participado dos ritos de passagem da minha amiga [Marielle]", disse.
Fernanda escapou dos disparos por se abaixar no banco de trás do carro. Imagens dos disparos foram exibidas a ela durante o depoimento.
A segunda testemunha foi a mãe de Marielle, Marinete da Silva . Ao contrário de Fernanda, Marinete não se opôs a depôr na presença dos acusados. Ela comentou a ausência da filha nestes 6 anos.
"A falta que minha filha faz é imensurável. Falar o quanto ela fez falta não tem como definir", disse. "A cada dia que eu penso na minha filha é como se falassem no meu coração que um pedaço de mim foi tirado. Cada vez dói mais", completou.
A terceira testemunha a depor foi Monica Benício , viúva de Marielle. Emocionada, ela caiu no choro logo no início do depoimento, quando foi perguntada sobre como sua esposa era no cotidiano. "A Marielle era uma das pessoas mais companheiras que eu conheci, no sentido mais generoso e bonito que essa palavra pode ter", respondeu.
Ao ser questionada sobre a falta que Marielle faz, Monica voltou a se emocionar. "Eu lembro do último segundo que eu vi a minha esposa com vida. E a última coisa que ela me disse foi: 'Eu te amo'. Eu fiquei pensando depois no privilégio que é poder ter essa frase como a última dela", disse.
"Depois da morte, foram algumas as vezes que eu ameacei me matar e algumas que eu tentei", admitiu, emocionada. "Essa dor da ausência, que se apresentada diariamente, cobre todos os detalhes", completou.
"A única justiça possível seria não precisar estar aqui e ter a Marielle e o Anderson vivos. Mas, para além disso, do que é possível, eu espero que se faça a justiça que o Brasil e que o mundo esperam há seis anos e sete meses. [...] Para que a gente possa dar o exemplo de que crimes como esse não podem voltar a acontecer", disse Monica, quando perguntada sobre as expectativas do julgamento.
A quarta pessoa a depor foi Ágatha Arnaus Reis , viúva de Anderson. Ela relatou sobre os sonhos que o marido tinha de trabalhar em uma companhia aérea, e contou que a posição de motorista era vista como temporária por ele.
Anderson deixou um filho, que, na ocasião, tinha um ano e oito meses. "Ele precisa de fono (fonoaudiólogo), tem oito anos hoje e não fala. Ele começou a andar com cinco anos, já passou por sete cirurgias", contou Ágatha, ao citar como é lidar com a maternidade sem Anderson.
Arthur teve o diagnóstico da doença atrasado, pois precisava de um exame genético que dependia da coleta de Anderson. O filho do casal apresentou problemas no crescimento logo após ao nascimento.
Em uma das últimas perguntas, um advogado perguntou para Ágatha o que ela espera do julgamento.
“Eu espero ver as pessoas que me tiraram o Anderson, que tiraram pelo pai do Arthur, pagaram pelo que elas fizeram. Eu não substituo o Anderson de forma alguma para o Arthur. Eu nunca, por mais que consiga mostrar um pouco do que ele representa para mim e para Arthur, eu não consigo mostrar de tudo de bom que ele tinha no mundo. O Anderson é irrepetível. Ele é alguém que não existe outro igual. O Arthur nunca, na vida, vai ter algo tão bom do que ele teria se o Anderson tivesse aqui”, disse, em lágrimas.
A quinta pessoa a depor foi Carlos Alberto Paúra Júnior , agente da Polícia Civil do Rio, que participou ativamente das investigações da localização do carro dos assassinos.
Carlos comentou que assumiram o caso uma semana após o crime e tiveram acesso às imagens do veículo do crime e a placa. Segundo o agente, o departamento conseguiu descobrir que o carro do crime foi clonado.
O agente de segurança explicou que o carro do crime foi clonado em 2016 e que ficava no bairro Campo Grande. Um mês antes das mortes de Marielle Franco e Anderson do Carmo, o veículo foi visto em alguns lugares frequentados pela vereadora.
Apesar de ter monitorado o veículo, Carlos contou que a investigação falhou após jornalistas divulgarem o número da placa. Ele explicou que fez parte do rastreio dos aparelhos celulares de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz.
A sexta pessoa a ser interrogada pelo júri foi o agente da Polícia Civil do Rio Luismar Cortelettili , que contou que o registro que o sinal do celular de Queiroz foi rastreado na localização próxima à casa de Lessa. Às 10h30 da noite, os dois teriam se deslocado para uma região do Jardim Oceânico, na Barra da Tijuca.
A perita criminal Carolina Rodrigues Linhares , testemunha do Ministério Público, conseguiu comparecer ao julgamento. Foi exibido um vídeo com o testemunho dela durante as fases iniciais do processo.
O delegado da Polícia Federal, Guilhermo Catramby , foi a oitava testemunha a ser ouvida. Ele foi chamado pela defesa de Ronnie Lessa. Ele colheu o depoimento de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, em delação premiada. O delegado esclareceu alguns pontos sobre a investigação e enfatizou que teve dificuldades com a falta de provas sobre quem mandou matar Marielle Franco.
Já por volta das 18h40, o agente federal Marcelo Pasqualetti foi chamado para dar seu depoimento. Ele respondeu perguntas técnicas sobre o caso e foi dispensado.
Por fim, a defesa de Élcio de Queiroz abdicou dos depoimentos das testemunhas que havia requerido anteriormente.
Interrogatórios dos réus
Ronnie Lessa foi o primeiro a ser ouvido. A juíza, então, pediu que Élcio de Queiroz fosse retirado da sala. Na ocasião, Lessa detalhou como foi o planejamento da morte da vereadora. De acordo com ele, uma pessoa [que está sob investigação e não pode ter o nome mencionado] falou com ele sobre o plano, mas ele disse que não conhecia Marielle.
"Ele já tinha me adiantado qual seria a proposta e o que eu ganharia com isso. Aquilo ali foi chocante. Eu aceitei. Marcamos a primeira reunião com os mandantes, estivemos com os mandantes pessoalmente, e aí nessa reunião eles me disseram o nome. Eu não conhecia a Marielle, nunca tinha visto ela", disse.
Ele ainda afirmou que os mandantes exigiram que ela não fosse morta próxima à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, o que, para ele, seria "mais fácil", já que era um lugar que ela ia com mais frequência. Isso porque eles não queriam que a Polícia Federal se envolvesse nas investigações do caso.
"Na minha opinião, eu achava que a questão da Câmara dos Vereadores era somente para não chamar atenção de algum vereador. Só que depois de todo esse processo, que eu li a denúncia, que eu vi que existe uma Lei que se ela morresse ao sair da Câmara dos Vereadores, a Polícia Federal entraria automaticamente no caso", disse.
Lessa disse que a escolha de Queiroz para o assassinato foi a expertise no volante, além da confiança. Ele confirma que o amigo aceitou o caso sem fazer nenhuma pergunta.
O autor do crime foi perguntado sobre o seu enriquecimento. Ele explicou que os seus ganhos foram referentes a uma academia, no qual era dono e vendeu o local posteriormente. Além disso, Lessa era dono de quiosques na praia.
Entretanto, Lessa também se surpreendeu com o valor pago pelas execuções. “Os mandantes colocavam a Marielle como uma pedra no caminho, que ela ia atrapalhar. Então, eles iam dar um jeito, com nossa presença ou não. A gente ia ganhar dois loteamentos, com 500 terrenos cada, o valor de cada lote era de R$ 100 mil. Então, daria 50 milhões para cada loteamento. Uma das pessoas seria responsável por tudo para fazer os dois condomínios. Realmente era muito dinheiro. A parte que ficaria deles (mandantes), eu não sei o que iam fazer. A minha parte era só para mim e para o Macalé. Quando eu decidi chamar o Élcio para isso, eu nem quis chamar ele dentro disso, não quis criar expectativas. Eu tenho muita cautela, porque sem querer o Élcio fala, mas quando ver ele fala que não devia. [...] Ele é meu amigo e um dia queria abraçar chorar com ele e dizer que besteira que fizemos”, lamentou.
Em um dos momentos do depoimento, Lessa aproveitou para pedir perdão as famílias de Anderson Gomes e de Marielle Franco. Ele também ressaltou que está fazendo o máximo para reparar os danos que causou e que nenhum dos envolvidos irá ficar impune.
“Eu gostaria de aproveitar a oportunidade, até pedindo licença para vossa excelência, com absoluta sinceridade e arrependimento, pedir perdão às famílias do Anderson e da Marielle, a minha própria, a dona Fernanda e a sociedade dos patifes atos que me trouxeram aqui. Infelizmente não podemos voltar no tempo, mas hoje tento fazer o possível para amenizar essa angústia assumindo os meus atos e trazendo à tona todos os personagens que estão envolvidos nessa história, de cabo a rabo. Hoje eu tento fazer isso para tirar o peso da minha consciência. Eu sei que nunca vou trazer essas pessoas de volta, mas precisava pedir perdão a essas pessoas, inclusive a minha família, ninguém quer o pai preso, nenhuma mulher quer o marido preso. Eu fiquei cego, fiquei louco atrás desse [dinheiro]. Foram 25 milhões. Eu tiro um peso das minhas costas confessando o crime. Se eu puder amenizar isso, vou fazer o máximo. Vou cumprir meu papel até o final. Tenho certeza absoluta que a justiça vai ser feita. Hoje foi só uma parte e tenho certeza que ela vai ser feita no STF. É da base ao topo dessa pirâmide, sem exceções”, enfatizou.
Após o depoimento de Ronnie Lessa, foi a vez de Élcio de Queiroz responder as perguntas do júri. Ele contou que começou a se envolver no caso ao ter contato com o carro usado no crime.
“Eu tinha um carro antigo, deu problemas para a bateria e Ronnie tinha uma bateria nova na casa dele e me emprestou essa bateria. Ele me pediu a bateria de volta, porque ele estava com um ‘carro ruim’, que é um veículo de procedência duvidosa", relatou.
Queiroz detalhou que Lessa iria executar Marielle antes de ele entrar no caso, porém a operação falhou. “No ano novo de 2017 para 2018, ele (Lessa) conta que estaria nesse ‘trabalho’, que seria um alvo, que seria uma mulher e que estavam há meses andando com esse carro e que tiveram uma oportunidade de cometer o crime e não aconteceu. [...]. Ele (Lessa) estava muito nervoso, porque o motorista refugou e não emparelhou com o carro e não conseguiu concluir a execução”, contou.
Élcio relembrou que, momentos antes do crime, tentou convencer Ronnie a não matar Marielle. Após o crime, Queiroz relatou que ficou apavorado quando soube que Marielle e Anderson estavam mortos. Ronnie Lessa tentou acalmá-lo em um bar, segundo Élcio.
O caso
Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Investigações revelaram que o réu Lessa monitorou Marielle antes do crime e, junto com Élcio, disparou contra o carro das vítimas. Eles respondem por homicídio triplamente qualificado e tentativa de assassinato da assessora Fernanda Chaves, que sobreviveu. O Ministério Público busca a pena máxima de até 84 anos, e ambos estão presos desde março de 2019.
Acusados de serem os mandantes do atentado contra Marielle, o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido) e seu irmão, Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio (TCE-RJ), estão presos desde março deste ano. Apesar disso, os supostos autores intelectuais não estão sendo julgados junto com os executores.
Os irmãos Brazão foram citados em delação premiada por Ronnie Lessa durante o inquérito. Na semana passada, eles prestaram depoimento no Supremo Tribunal Federal (STF), assim como o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Rivaldo Barbosa, acusado de obstruir a investigação após o assassinato. O trio nega envolvimento no crime.