A alta carga de responsabilidades com o trabalho de cuidado dentro de casa e a necessidade de ser uma provedora para o sustento da família , somadas às diversas violências impostas pela sociedade machista causam às mulheres um nível de estresse e exaustão - física e mental - responsável por uma série de insatisfações regadas a adoecimento mental, principalmente para as negras e/ou de baixa renda.
Dados do Laboratório Think Olga, elaborado por uma ONG que carrega o mesmo nome, expressam essa realidade em números no relatório "Exaustas", fruto de uma ampla pesquisa que provou que a somatória de problemas e discriminações leva as brasileiras de todas as idades e classes sociais a não conseguirem ter uma vida plenamente satisfatória em quase nenhuma esfera.
Os índices de satisfação máxima estão em torno dos 30% e se referem às relações familiares e amorosas, enquanto a situação financeira e a conciliação das diversas áreas da vida são responsáveis pelos piores percentuais de satisfação.
Isso significa que as principais razões de insatisfação, infelicidade, esgotamento e adoecimento das mulheres são as dificuldades de equilibrar todas as suas atribuições e o fenômeno conhecido como feminização da pobreza - ou, para simplificar, o empobrecimento das mulheres.
Índice de satisfação das mulheres, segundo a pesquisa do Laboratório Think Olga
- Relações amorosas - 32%
- Relações familiares - 30%
- Relação consigo mesma/autoestima - 27%
- Relação com a comunidade/amizades - 24%
- Saúde emocional - 24%
- Relação com o trabalho - 22%
- Capacidade de conciliar diferentes áreas da vida - 21%
- Situação financeira - 14%
Aprofundando mais a questão, as maiores insatisfações financeiras das mulheres são causadas pela situação financeira restrita/apertada (48%); dívidas (36%); dependência financeira de terceiros (22%); medo de ficar desempregada (18%); desemprego do cônjuge ou outro parente (10%); o desemprego da própria mulher (5%); e a fome/desnutrição (4%).
O excesso de trabalho doméstico - ou trabalho de cuidado - é um problema transversal, apontado entre as causas de insatisfação de diversas áreas. No tópico “relações”, muitas mulheres citaram problemas como árdua jornada de trabalho doméstico/de cuidado (20%); falta de parceria do(a) companheiro(a) (19%); falta de rede de apoio (16%) e problemas/responsabilidades com os filhos (16%).
As mesmas questões voltam a aparecer no tópico de insatisfações ligadas ao trabalho. Neste tópico, alguns dos principais problemas giram em torno da remuneração baixa (32%); sobrecarga de trabalho doméstico (22%); e jornada de trabalho excessiva/dupla ou tripla (20%), entre outros.
“Vamos perdendo o nosso brilho”
Os números são interessantes para ilustrar e dar dimensão do tamanho dos problemas, e onde eles se concentram. Contudo, dados são frios e não expressam adequadamente os sentimentos e o sofrimento que inúmeras mulheres reais, vivenciam todos os dias de suas vidas.
São pessoas, mulheres de carne, osso e coração levadas à exaustão enquanto se equilibram numa “corda bamba” fingindo naturalidade para poder se adequar ao papel social que se espera delas.
Thabata Alves, de 44 anos, é uma jornalista e mãe atípica de quatro filhos - um deles, de quase 5 anos, é autista - que mora na cidade de Olinda, na Região Metropolitana do Recife - PE.
Sem rede de apoio e contando com um auxílio financeiro insuficiente por parte dos ex-companheiros e pais das crianças, o aperto financeiro e a sobrecarga de trabalho - tanto remunerado, quanto de cuidados - provoca exaustão e adoecimento mental com que ela precisa lidar sentindo que nunca pode “falhar”.
“Antigamente as famílias eram bem maiores que as de hoje, mas sempre tinha uma irmã, um irmão, tios e avós que podiam ajudar a mãe em diversas situações. Hoje em dia, a mulher tem mais responsabilidades, jornadas de trabalho bem mais amplas dentro e fora de casa, porém não têm com quem contar. Essa semana estive doente e me vi com medo de não conseguir dar conta dos afazeres domésticos, do trabalho e dos cuidados com as crianças. Tudo traz um desgaste emocional tremendo. A gente nem pode adoecer, porque não tem com quem contar. E se a gente não estiver saudável, como vamos dar conta de todas essas demandas? É uma conta que nunca fecha.”
Thabata também relata que mesmo com “todo o amor do mundo” pelos filhos, é meramente impossível não sentir um desgaste diante de uma rotina tão extenuante, e do estresse de ser, sozinha, a responsável por todo o cuidado, organização e sustento de uma família grande. Diante disso, o esgotamento e adoecimento emocional foram inescapáveis para ela.
“Além de ser mãe solo, também não posso contar com o apoio financeiro necessário, por parte do pai, para os custos com as crianças. Mesmo que a pessoa tenha um salário foda, só ela bancando tudo, pesa.”
Como resultado da sobrecarga emocional, financeira e psicológica, o sofrimento fez Thabata adoecer. Em meio à rotina que não pode parar e esperar que ela consiga se recuperar, o sofrimento é inevitável - mesmo que ele exista em meio a muito amor à família que ela construiu.
“Por mais amor que tenha pelos meus filhos e que seja um prazer educá-los e hoje em dia até querem desvirtuar o debate porque a mulher verbaliza esse cansaço, essa solidão para todas as tomadas de decisão, não é fácil. Cabe a nós chorar no banheiro, quando dá e na maioria das vezes engolir o choro para que as crianças não se sintam culpadas.”
Questionada sobre o que acabou ficando de lado na Thabata que era - e ainda é - uma mulher antes de ter se tornado uma mãe cansada pela falta de apoio, Thabata conta que sua própria individualidade e mesmo os cuidados com sua saúde foram ficando cada vez mais escanteados.
Contudo, o sofrimento se impôs por meio de um diagnóstico atestando o impacto mental que uma vida tão atribulada acarreta. Para poder continuar atendendo às demandas que tem, Thabata viu que precisaria se tratar. Por si mesma e pelo bem de sua família também.
“Estou em tratamento porque me cobro por querer dar conta do que é impossível fazer sozinha, mas teimo em tentar todo dia, exaustivamente. Preciso demonstrar força, sem que necessariamente esteja forte. Vamos nos perdendo de nós mesmas, eu me vejo perdendo a minha essência.”
Outra “armadilha” mental que surge em meio a essa rotina insana que está longe de ser uma exclusividade de Thabata é a dificuldade de aceitar que o problema não está na mulher sobrecarregada que não consegue dar conta de tudo, mas na quantidade sobrehumana de atribuições postas sobre os ombros de uma pessoa só. Eis que surge, então, um sentimento traiçoeiro: a culpa materna.
“É difícil admitir que não consigo sozinha, os padrões da nossa sociedade o tempo todo nos diz que, sim, nós mulheres temos que dar conta de tudo: ser mãe como se não fosse profissional, e ser profissional como se não fosse mãe. Ser mulher atraente, interessante dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal. Deixamos nossos sonhos de lado porque já nem temos tanto tempo para ‘esperançar’ e assim vamos perdendo nosso brilho. Deixei meu lado mulher de lado, minha vaidade feminina e até os cuidados básicos com a saúde.”