Tragédia de Brumadinho matou 270 pessoas no dia 25 de janeiro de 2019
CORPO DE BOMBEIROS/ DIVULGAÇÃO
Tragédia de Brumadinho matou 270 pessoas no dia 25 de janeiro de 2019

A madrugada do dia 25 de janeiro parecia ser apenas mais um dia comum na vida de Fernando Henrique Coelho. Ele trabalhava na barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte (MG).

Ele bateu o cartão à 1h e seguiu seu turno até as 7h normalmente. Se despediu dos amigos que acabara de entrar no serviço e foi para casa.

Por volta de 12h30, Coelho recebeu a ligação de uma amiga. A barragem em que trabalhara mais cedo se rompeu, e a lama de rejeitos atingiu mais da metade da cidade mineira.

“Eu não vi o estouro. Estava em casa, mas tinha saído de lá mais cedo e tinha sido um dia de trabalho tranquilo, sem intercorrências. Cheguei a ver alguns amigos e fui embora”, relembra.

O estouro da barragem aconteceu no começo da tarde daquela sexta-feira. A Vale era a responsável pela administração da mina e tinha solicitado uma apuração da situação das barragens para a TÜV Süd, especializada em certificações, que atestou a segurança das barragens.

Entretanto, a barragem número 1 da mina não suportou a quantidade de rejeitos e o lamaçal atingiu os trabalhadores e moradores do entorno da Vale.  Ao todo, 270 pessoas morreram, sendo que três ainda estão desaparecidas.

Fernando conta que nasceu na Vale e morou nos prédios dos funcionários da mineradora até os 15 anos. Há pelo menos 18 anos trabalhava na empresa.

O pai dele, Olavo Henrique Coelho, era funcionário da Vale há 40 anos. No momento da tragédia, ele estava no horário de almoço, no refeitório, e não conseguiu escapar da onda de rejeitos.

“Eu trabalhei lá a vida inteira. A minha vida foi toda ali dentro. Ficamos sem notícias inicialmente, depois de um dia de tentativas de contatos, eu já suspeitava que meu pai tinha morrido. Oito dias depois veio a confirmação”.

“Perdi tudo. Pai, amigos, primos. Eu gostava muito de trabalhar na Vale, ela fazia parte da minha história”, afirma.

Fernando denunciou Vale e empresas em comissão na Câmara dos Deputados
Will Shutter/ Câmara dos Deputados
Fernando denunciou Vale e empresas em comissão na Câmara dos Deputados

Durante a entrevista, Fernando abaixa a cabeça e se emociona ao lembrar da tragédia. Ele conta que ficou descontrolado com o estouro da barragem e até queimou as lembranças que tinha da Vale.

“Queimei meu uniforme no dia seguinte. Não conseguia olhar mais. Fiquei transtornado e até hoje tenho reflexos desse dia. Tomo remédio psiquiátrico, tenho acompanhamento, mas nada me faz apagar da memória aquele dia”, conta.

“Não quero nem chegar perto daquele lugar. Não consigo. Não posso fazer isso comigo”, completou.

Angústia, tristeza e revolta

A auxiliar de contabilidade Tânia Efigênia Queiroz estava em casa, de licença médica, quando recebeu uma ligação de um amigo dando a notícia do estouro da barragem. Logo, ela ligou para o marido, que trabalhava na região próxima ao local da tragédia e recebeu a notícia de que estava bem.

Foi aí que ele alertou que a prima, Natália, estava no caminho do lamaçal que atingiu a cidade mineira. Foram diversas tentativas de contato sem sucesso.

“Antes da tragédia, eu estava em casa, de atestado, e um amigo me ligou falando que a barragem estourou, para tentar falar com o meu marido. Fiquei preocupada, mas logo consegui contato com ele. Nesse momento, ele estava subindo rumo à área administrativa e não foi atingido. Eu liguei para minha prima várias vezes e não tive retorno. Entrei em desespero e corri para rua gritando por ajuda”, relembra.

Nathália Porto Araújo trabalhava apenas quatro meses na Vale e atuava como estagiária técnica de mineração. O celular chegou a ser localizado quatro dias após a tragédia, mas o corpo dela é um dos três que ainda não foram encontrados pelas equipes de resgate.

Foto de Tânia e Nathália, vítima ainda não localizada. Imagem fica em uma estante na casa de Tânia Efigênia
Arquivo pessoal
Foto de Tânia e Nathália, vítima ainda não localizada. Imagem fica em uma estante na casa de Tânia Efigênia

Conversando com a nossa equipe, Tânia olha para uma estante e aponta para uma foto. Na imagem, as duas primas, quando Nathália estava grávida.

Ela lembra que sempre encontrava a prima no período da tarde e tinha a expectativa de encontrar Nathália quando ela saísse do trabalho. Hoje, Tânia é uma das responsáveis pela criação dos dois filhos deixados por ela.

“Eu moro perto da casa dela, então, sempre nos encontrávamos à tarde, assim que ela chegava do serviço. Nesse dia, eu não tive conversa com ela. Eu ia vê-la apenas depois das 16h. No dia anterior, conversei por telefone, perguntei se ela estava feliz e ela disse que sim. Dei até uma camisa do meu marido da Vale”, conta.

Tânia reclama da demora para localizar o corpo de Nathália e ressalta a vontade de oferecer um enterro digno para a prima. Para ela, a família convive há quatro anos com sentimentos de raiva, tristeza e angústia.

“Meu sentimento é de angústia, tristeza e revolta. Uma empresa tão grande, reconhecida em todo o mundo, deixar uma tragédia tão grande como essa. Não achar a Natália, não acalentei meu coração. Eu tenho saudade de tristeza, de raiva, porque não encontramos ela. Quando isso acontecer, vou transformar a esse sentimento em saudade de amor. Me pergunto, será que vão encontrar ela? É angustiante”, afirma.

Vivemos num eterno 25 de janeiro

No fim de semana anterior a tragédia, a funcionária pública Alexandra Andrade estava em um sítio com o irmão e o primo. A conversa foi simples, mas soube que todos estavam bem e não tinham preocupações com o trabalho. Esse era o último encontro dela com os dois.

Dias depois, quando recebia um pedreiro em casa, recebeu uma ligação desesperada de sua mãe: “Saia de casa imediatamente para não ser atingida pelo lamaçal”. Alexandra não se preocupou tanto no início e logo tratou de entrar em contato com a secretaria de Meio Ambiente, onde trabalhava, que confirmou o estouro da barragem.

Alexandra
Arquivo pessoal

Alexandra segura a foto de seu irmão, Sandro, em uma homenagem feita pela Avabrum

Quando descobriu que poderia haver vítimas, tentou contato com os parentes que trabalhavam na Vale no dia. Todas as tentativas caíram na caixa postal.

“Na hora não raciocinou que poderia ter vítimas. Tentei ligar para o meu irmão e meu primo, mas não consegui contato. Perguntei para esposa do meu irmão se ela sabia de algo e ela, já em prantos, também não conseguia falar com ele”, conta.

“Eu lembro que quando eu fui atravessar a ponte, já não podia mais. Várias pessoas encostando o carro e colocando no morro. Foi uma loucura total”, relembra.

O irmão, Sandro Gonçalves, tinha 42 anos e trabalhava como operador de equipamentos. Já o primo, Marlon Gonçalves, de 35 anos, era auxiliar de geologia.

Quando recebeu a notícia do desaparecimento, Alexandra e a família ainda tinham esperança de ambos estarem vivos.

“Foi desesperador. No início ficaram como desaparecidos, começamos a postar fotos nas redes sociais, ligamos em busca de notícias. A Vale, em momento nenhum, nos informou o estado das vítimas. A maioria já estava morta e eles sabiam. Se eles tivessem feito uma reunião e nos colocado a par da situação, teria amenizado um pouco o nosso sofrimento”.

“Até segunda-feira eu tinha esperança de estarem vivos, depois fiquei com medo de estarem mortos. Na quarta, fiquei com medo de não encontrar. No fim da semana recebemos a notícia da identificação dos corpos”, disse.

Após a tragédia, Alexandra e outros parentes de vítimas criaram a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum). Além de fornecer apoio às vítimas, a entidade ainda sentou na mesa com a Vale, Ministério Público e investigadores para negociar indenizações e benefícios para os atingidos.

Em meio a entrevista, uma imagem chama a atenção. Ao lado do sofá, uma mesa retangular, espelhada, com um capacete e os óculos. Os equipamentos eram de Sandro, e foram usados por Alexandra em uma pedalada em homenagem às vítimas.

“Não consigo tirar daqui. Ainda não tive coragem nem de guardar e nem devolver para os meus sobrinhos. Quando olho, me bate uma saudade tremenda. Lembro dele como se ainda estivesse aqui”, afirma.

Após quatro anos, ela diz que o sentimento ainda é de revolta pela tragédia. Para ela,  a cidade vive todos os dias um ‘eterno 25 de janeiro de 2019’.

“Ainda sinto muita tristeza, revolta, porque poderia ter sido evitado. A empresa poderia ter tirado os funcionários, moradores e turistas da rota da lama. Até hoje tem três famílias que aguardam pelos corpos dos parentes, tem pertences de vítimas encontrados até hoje pelos bombeiros”.

“A nossa realidade é essa. A cidade foi transformada de uma hora para a outra. Tudo caro, poeira, barulho, risco de doenças, tudo mudou. Eu me sinto perdida quanto ao meu futuro. A gente não sai do dia 25 de janeiro de 2019”, completa.

Andrielly participou de uma caravana de voluntários para ajudar vítimas em Brumadinho
Arquivo pessoal
Andrielly participou de uma caravana de voluntários para ajudar vítimas em Brumadinho

Silêncio ensurdecedor

Não foram só as vítimas que sentiram os reflexos da tragédia de Brumadinho. Milhares de voluntários também sentiram os corações dispararem em meio a cena que viram.

Entre eles estava a jornalista Andrielly Ferro. Ela foi uma das responsáveis pela distribuição de alimentos e recreação de crianças abrigadas em um ginásio.

Andrielly chegou na cidade em março de 2019, quase dois meses após o rompimento da barragem. O cenário, segundo ela, parecia filme de terror.

“Eu lembro que paramos na entrada da cidade, paramos em um painel que tinha um monte de cruz. A cidade estava em silêncio ensurdecedor, todos demos as mãos e fizemos uma oração. Foi muito estranho. Era uma sensação horrível. Parecia que a cidade estava sem vida, clima macabro”, conta.

Ela chegou a subir até o local da tragédia e viu casas e carros cobertos pelo lamaçal. A lama já estava dura, o que atrapalhava o trabalho dos bombeiros e aumentava ainda mais a tensão entre os voluntários.

“Fomos para um bairro, ficava a 9km de onde a barragem estourou. A lama já tinha descido bastante e já estava muito dura. Os bombeiros ainda trabalhavam no local. Vi carros submersos no lamaçal, vi muita árvore caída, pedaços de casas e muitos pertences das vítimas”, lembra.

“Me chamou a atenção a quantidade de carros embaixo da lama. Alguns nem pareciam ser carros, ficaram contorcidos. O cheiro no local era muito forte. Não dava para ficar muito tempo porque estávamos sem máscaras”, completa.

Durante a missão, Andrielly chegou a conversar com famílias e crianças que estavam abrigadas após o rompimento da barragem. Muitas delas não queriam falar sobre o assunto, enquanto outros ainda tentavam buscar informações sobre vítimas.

“Eles não falavam muito no assunto. Esse foi o projeto mais difícil que atuei. A interação com as crianças estava muito complicada, estavam retraídas e não queriam conversa. Elas estavam muito mais apegadas nos bombeiros, mas no fim da nossa missão, elas ficaram mais soltas. As crianças evitaram falar, enquanto os adultos ficavam preocupados em busca de informações”.

‘Foi crime’

Quatro anos se passaram e a tragédia segue sem condenação dos responsáveis. Na terça-feira (24/01/2023), a Justiça acatou o pedido do Ministério Público para que a Vale, a TÜV Süd e outras 16 pessoas se tornassem réus pelo estouro da barragem.

Fernando, porém, lembra que a tragédia poderia ter sido evitada, se os diretores da empresa tivessem escutado os alertas de seu pai, sete meses antes.

“Meu pai cansou de avisar eles sobre a possibilidade de estouro da barragem. Estava com problemas sete meses antes, pelo menos”, conta.

“Aquilo não foi tragédia, foi crime”, exclama.

Alexandra concorda com a afirmação e critica a falta de comunicação da empresa antes da tragédia.

“Foi uma falta de informação e de transparência da empresa para falar até onde os rejeitos poderiam ir”, reclama.

Após muitas negociações, a Avabrum conseguiu com que Vale pagasse um plano de saúde vitalício para pais de vítimas e reembolso do valor para irmãos. Entretanto, famílias reclamam que nem todos têm conhecimento para enviar notas fiscais à empresa.

“O que a Avabrum conseguiu que a Vale pagasse foi o plano de saúde vitalício para os pais e reembolso para os irmãos. Tem que enviar a nota fiscal para eles, mas tem gente que é mais humilde que não sabe nem como enviar”, disse Alexandra.

Alguns familiares fizeram acordos com a Vale para receber indenizações trabalhistas, enquanto outros entraram na Justiça para pedir valores maiores. O total negociado ou em negociação não é divulgado pelos órgãos jurídicos.

Os processos judiciais, cíveis e ambientais ainda correm na Justiça. Há inquéritos em tramitação até no Supremo Tribunal Federal (STF), sem data para análise.

Em nota, a Vale ressaltou a solidariedade aos atingidos pelo rompimento da barragem e disse seguir comprometida e compensação dos danos. O advogado da empresa, David Rechulski, disse que a entrega da denúncia faltando 24 horas para a prescrição do caso não causa surpresa e que não há nada para comentar sobre o caso no momento.

O iG também entrou em contato com a TÜV Süd, que não irá se pronunciar. 

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