Desde o ano passado, a saúde de indígenas da etnia Yanomami tem se agravado devido à falta de recursos de distritos sanitários
Reprodução/HAY
Desde o ano passado, a saúde de indígenas da etnia Yanomami tem se agravado devido à falta de recursos de distritos sanitários

No fim de junho, na  terra indígena Yanomami, em Roraima, duas crianças de 3 anos foram diagnosticadas com verminose. Sem remédios para tratamento, as duas morreram dias depois. Um mês antes, uma mulher da etnia mayoruna, picada por cobra na aldeia Nova Esperança, na terra indígena Vale do Javari, no Amazonas, morreu antes de receber o soro antiofídico, que estava em falta. As mortes nas duas aldeias são o retrato do drama de cerca de 800 mil indígenas no país, que estão com atendimento médico precário. Os indígenas denunciam que metade dos 34 distritos sanitários especiais (DSEIs) do país, ligados à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, está aparelhada e perdeu eficiência.

Levantamento do GLOBO mostra que 17 distritos, que sofrem com déficit de pessoal e falta de medicamentos, estão nas mãos de militares e de políticos ligados ao Centrão, muitos sem formação na área médica. As nomeações sem exigir capacitação técnica acontecem em áreas de garimpo ilegal, queimadas, desmatamento e de conflitos entre fazendeiros e indígenas. A outra metade dos DSEIs está sob administração de servidores de carreira e comissionados da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério da Saúde. O atual presidente da Sesai é o coronel do Exército Reginaldo Ramos Machado, que não quis comentar as críticas ao serviço de saúde.

Especialistas atribuem a mortalidade por doenças evitáveis ou de fácil controle à má gestão dos DSEIs. Filiado ao Republicanos, o coordenador do Distrito Yanomami, Ramsés Almeida da Silva, é ex-vereador de Mucajaí, município banhado pelo mesmo rio em que dragas garimpam ouro. Ele foi indicado, segundo associações de indígenas, pelo senador Mecias de Jesus, do Republicanos de Roraima, partido da base de Bolsonaro. Formado em contabilidade, já foi gerente de banco e trabalhou com gestão financeira. Procurado, Ramsés não quis se pronunciar.

No fim do ano passado, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami , Júnior Hekurari, publicou um vídeo acusando Mecias de apoiar garimpeiros e a mineração ilegal em terra indígena, onde, de acordo com ele, duas crianças morreram ao serem engolidas por uma draga do garimpo. Questionado, o senador não quis falar.

No mesmo estado, o DSEI Leste de Roraima é comandado pelo advogado Márcio Sidney Cavalcante, que foi diretor do Detran no Maranhão e presidiu a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cargo historicamente preenchido por indicações políticas. Os indígenas denunciam que ele foi nomeado pelo senador Chico Rodrigues, do União Brasil.

"O senador Chico Rodrigues tem influência no distrito Leste, dos Macuxi. O coordenador é indicado dele. E o senador Mecias influencia o DSEI Yanomami", acusa Hekurari.

Mortalidade alta

Com 9,6 milhões de hectares (o tamanho de Portugal), a Terra Indígena Yanomami, onde foi criado o primeiro DSEI, no fim dos anos 1990, é a maior do país. Com 28 mil indígenas espalhados por 375 comunidades, o atendimento básico de saúde é feito por meio de 37 polos-bases, 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) e uma Casa de Saúde Indígena (Casai). O território apresenta a taxa de mortalidade infantil mais alta do país, superior inclusive aos índices da África Subsaariana. Os Yanomamis morrem, principalmente, de desnutrição, diarreia e pneumonia.

"O modelo do DSEI foi estruturado para garantir atenção básica, onde as visitas às aldeias são fundamentais, mas isso não acontece", diz Estevão Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA), que acrescenta: — Doenças simples, como uma gripe em uma criança, que poderia ser facilmente resolvida com medicamentos e cuidados simples, acabam se agravando pela falta de visitas.

Segundo Senra, na Terra Yanomami, os casos graves, ocasionados pelas falhas na atenção básica, acabam sendo transferidos por aviões fretados até Boa Vista, o que faz com que os recursos voltados para saúde indígena sejam gastos com horas-voo.

A cada três dias, segundo o Ministério Público Federal, uma criança Yanomami tem que ser removida da floresta para Boa Vista por via aérea para receber atendimento de média ou alta complexidade por desnutrição, por exemplo. Segundo o MPF, 98% dos postos de saúde e polos-bases do DSEI Yanomami são acessíveis apenas por aviões e helicópteros.

Em 2020, foram gastos R$ 42,2 milhões com o DSEI Yanomami, dos quais R$ 28 milhões — ou 66% — foram usados para o pagamento de empresas de táxi-aéreo. No ano passado, o DSEI recebeu R$ 54 milhões, e R$ 29 milhões (54% do total) foram gastos com horas-voo.

O MPF de Roraima já enviou sete recomendações ao Ministério da Saúde para garantir a saúde indígena no local. Além disso, uma Ação Civil Pública pede à União que garanta a prestação dos serviços na região. Os procuradores afirmam que o aumento do investimento “por si só não reflete necessariamente na qualidade do serviço”. Para Clayton Coelho, médico especialista em saúde indígena da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o atendimento funciona de maneira desarticulada no Brasil:

"A articulação entre DSEIs e secretarias municipais e estaduais é extremamente deficitária. Quando há diálogo, é no campo do favor."

Em maio, mais de 200 indígenas ocuparam um polo-base subordinado ao DSEI Tocantins, em Tocantinópolis, a 585 quilômetros de Teresina, em protesto contra a falta de medicamentos, ambulâncias e exames médicos. O coordenador do DSEI era Sebastião de Gois Barros, ex-prefeito de Carmolândia, cidade próxima. Há cerca de um mês, contudo, ele cedeu a vaga para Naelio Alves de Sousa, conhecido como Naelio Alegria, que em 2020 disputou uma vaga de vereador em Palmas, mas não se elegeu. Filiado ao PSC, Sousa foi indicado para coordenar o DSEI mesmo sem qualquer experiência na área de saúde indígena.

Como ele, o coordenador do DSEI Interior Sul, em Santa Catarina, também foi indicado por políticos. Técnico em informática, Alexandre Rossettini acumula 20 anos de experiência como webdesigner e atendente de suporte técnico. No DSEI, atende a quinta maior população indígena do país, de 42 mil pessoas de 16 etnias espalhadas por 199 aldeias em quatro estados. Por cerca de 15 dias, cerca de 60 indígenas ocuparam neste mês a sede do DSEI para pedir a troca do gestor.

"A maioria dos DSEIs é comandada por pessoas despreparadas, indicadas pelo governo ou por deputados federais, aliados do governo. Eles não têm noção nenhuma de administração nem de gestão", diz Kretã Kaingang, liderança indígena da região.

Silêncio do ministério

Ex-secretário de Saúde do município mato-grossense de Jaciara, Audimar Rocha Santos coordena o DSEI Cuiabá. Em 2018, ao tentar, sem sucesso, uma vaga de deputado estadual pelo Podemos, declarou trabalhar como comerciante. Embora tenha experiência como secretário municipal de Saúde, o que o levou ao cargo de coordenador do distrito indígena foi a proximidade com o senador José Medeiros, do PL. Medeiros é próximo do governo Bolsonaro e de empresários do agronegócio. Santos era assessor no gabinete do parlamentar, onde ocupou cargos em 2015 e 2019.

Outro DSEI comandado por uma pessoa sem experiência em saúde indígena, o do Médio e Alto Solimões, está sob a responsabilidade do tenente-coronel Wladimir Lima Tavares de Lyra. Após quase 30 anos no Exército, ele foi diretor financeiro de duas lojas de recauchutagem de pneus. Lyra coordena o atendimento à saúde de cerca de 16 mil indígenas em 158 aldeias no Amazonas. Na região do departamento sob sua gestão, um indígena Kanamari morreu após ser picado por uma cobra e passar nove dias à espera do soro antiofídico, que não chegou.

Procurados, os coordenadores dos DSEIs mencionados não responderam os contatos feitos pelo GLOBO. O Ministério da Saúde também não comentou as reclamações de indígenas.

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