Ao mesmo tempo que corta o orçamento para a Ciência, o governo dificulta universidades públicas de captarem financiamento para pesquisa e trabalha para tirar recursos do pré-sal que atualmente vão para as instituições. Com isso, projetos importantes, como estudos sobre a Amazônia, não sabem como chegarão ao fim do ano e áreas estratégicas poderão ficar sem dinheiro do principal fundo de financiamento à pesquisa do país, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
Em maio, o governo federal oficializou um bloqueio de R$ 1,8 bilhão no orçamento da Ciência, Tecnologia e Inovação. Pouco tempo depois, anunciou que esse valor subiria para R$ 2,5 bi, o que deve ser decretado em julho. De acordo com nota da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), esse movimento se deu para diminuir o corte de outros ministérios.
“O corte em si é ultrajante e coloca em risco todo o sistema de pesquisa científica e tecnológica do País. Mas além disso, revela que a ciência se tornou alvo preferencial do governo federal, impondo ao setor uma restrição orçamentária sem paralelo no Poder Executivo. De acordo com os dados divulgados pela equipe econômica, todas as pastas afetadas pelo bloqueio tiveram seus cortes orçamentários reduzidos, transferindo a carga para o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação”, diz a nota.
Todo esse valor deve ser retirado do FNDCT, dinheiro arrecadado de impostos destinado especificamente para pesquisa. Ele cairá de R$ 4,5 bi para R$ 2 bi, o que significa 44,76% menos recursos do que o orçamento efetivado em 2021.
Segundo a SBPC, fundos setoriais, que compõe o FNDCT, como o CT-Mineral, o CT-Transportes, CT-Biotecnologia, CTInfo, CT-Amazônia e CT-Aquaviário podem ficar completamente sem verbas, impedindo a realização de qualquer projeto de pesquisa e desenvolvimento nestas áreas no segundo semestre de 2022.
Com isso, levantamento do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies) aponta pelo menos 52 projetos que serão altamente prejudicados com esses bloqueios. Entre eles, estão os programas Ciência no Mar e Ciência Antártica, além de pesquisas em bioinformática; mitigação de mudanças climáticas; nutrição e defensivos agrícolas sustentáveis; Covid-19; hidrogênio verde; e até em nióbio, mineral que é o xodó do presidente Bolsonaro.
Especialistas apontam que, por conta de uma lei do ano passado que proíbe o contingenciamento do fundo, essa forma de bloqueio foi uma maneira que o governo encontrou para liberar orçamento abaixo do teto de gastos. Na avaliação da SBPC, o governo burla a lei com uma questão semântica. Em vez de contingenciamento, chama de “bloqueio”. Ao setor, representantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação têm dito que o dinheiro será liberado integralmente à medida que as pesquisas precisarem. Procurada, a pasta não respondeu os questionamentos da reportagem.
"Se não for liberado, esse dinheiro já começa a fazer falta nos próximos meses. O problema é que a credibilidade do governo é muito baixa", afirma Wanderley de Souza, professor titular da UFRJ e ex-presidente da Finep. "No ano passado, por exemplo, o presidente Bolsonaro demorou para sancionar a lei que impedia contingenciamento no fundo e isso fez com que a lei só valesse a partir de 2022. A comunidade científica sentiu que isso foi uma traição e tem todos os motivos para ficar com o pé atrás".
Além disso, outras fontes de financiamento têm sido estranguladas pelo governo federal, na avaliação do setor. Outro levantamento do Confies mostra que tem ganhado corpo entre as fundações o interesse em fundos patrimoniais. Criada no Brasil em 2016, essa é uma modalidade muito difundida nos EUA e consiste no recebimento de doações em que apenas o rendimento é utilizado para financiar projetos de pesquisa.
"Nesse modelo, uma fundação ou associação civil faz o papel de recepcionar os recursos doados, gerir com regras caprichadas e aportar por convênio na universidade apoiada. E o doador tem a possibilidade de apontar como ele deve ser utilizado", afirma Fernando Peregrino, presidente do Confies.
Até agora já foram criados 10 fundos patrimoniais no país, de acordo com a pesquisa do Confies. Além disso, 76% de 50 fundações ouvidas pelo levantamento já iniciaram o processo para criar os seus. No entanto, a falta de incentivos fiscais dificulta a arrecadação. Por isso, na avaliação do estudo, somente 5% dos fundos receberam doação de recursos privados.
"O governo não dá o dinheiro e e não deixa a gente captar. O calculo que se faz é que o ganho é de seis vezes o valor que não foi arrecadado pelo incentivo fiscal", diz.
Renovação de frota
Além dos bloqueios e das dificuldades de arrecadação em fundos patrimoniais, o setor também tem lutado para manter os recursos que as empresas de exploração e produção de petróleo e gás natural são obrigadas por lei a destinar a pesquisa de desenvolvimento e de inovação. Este ano, com o aumento no preço das commodities, esses recursos são da ordem de R$ 3 bilhões, segundo estimam fontes da comunidade científica.
No entanto, os projetos de pesquisa podem perder R$ 1 bilhão desse dinheiro, só em 2022, que seria encaminhado para um programa federal, instituído por uma medida provisória de Bolsonaro, de renovação de frota de caminhões. A proposta do governo é que esses recursos sejam compartilhados pelo menos até 2027. O Congresso ainda precisa analisar a MP.
"Esse é um dinheiro sagrado que proporcionou o Brasil a explorar petróleo a três mil metros de profundidade e tornar o país autossuficiente na década passada. Não pode ser retirado da área", protesta Peregrino.
Um levantamento de maio do Observatório do Conhecimento com a Frente Parlamentar Mista da Educação mostrou que os seguidos cortes, desde 2014, no orçamento na Ciência e Tecnologia já tiraram da área quase R$ 100 bilhões até este ano.
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