Em 4 de dezembro de 2020, uma bala perdida atingiu duas crianças que brincavam na porta de casa em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Naquele dia, Emilly Victoria dos Santos, de 4 anos, e a prima, Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7, perderam o futuro em uma tragédia que segue, até hoje, sem desfecho. Após um ano, o caso está longe de ser o único no Rio de Janeiro. Quase 10 mil inquéritos sobre mortes de crianças e adolescentes tramitam nas delegacias de polícia do estado, desde o ano 2000, sem qualquer conclusão. É o que aponta uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública estadual.
"Um ano. Um episódio que não foi esclarecido. A defensoria e a família empreenderam todos os esforços necessários para apuração, mas até agora, diferentemente do que a gente gostaria, não houve conclusão do inquérito. Seguimos promovendo instâncias junto à Polícia Civil para que haja conclusão, garantindo apuração autônoma e independente dos fatos para a família", garante a defensora pública Carla Vianna, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos.
Até o momento, a polícia não identificou o autor do disparo que matou as duas primas. Na época, testemunhas chegaram a contar que viram disparos de arma de fogo saindo de um carro da Polícia Militar. A corporação chegou a afirmar que fazia um patrulhamento na região, mas, em depoimento, os cinco policiais negaram ter feito o disparo.
Para o estudo, foram analisados dados da Secretaria de Polícia Civil e do Instituto de Segurança Pública (ISP), de forma comparativa. De 9.542 casos de homicídios de pessoas de 0 a 17 anos cujas as investigações estão em aberto, 79,5% são crimes dolosos e 20,5%, culposos. A capital fluminense concentra 34,5% do total de casos. Duque de Caxias, onde as primas Emily e Rebeca foram mortas, aparece em sexto na lista, com 312 ocorrências nos últimos 21 anos.
Há procedimentos que tramitam desde o ano 2000, mas a média de tempo é de 3.060 dias, ou seja, cerca de oito anos e três meses.
"Precisamos avançar muito no combate às perdas antecipadas de vidas. Essas cifras são vidas. Prevenir é possível, sendo certo que a responsabilização efetiva é uma dessas formas. Esses números são inaceitáveis num país que pretende assegurar, com prioridade absoluta, os direitos de crianças e adolescentes", diz o defensor público Rodrigo Azambuja, coordenador do núcleo de infância e juventude (Coinfância) da defensoria, grupo que solicitou a pesquisa.
A proposta do levantamento foi dar luz à discussão do tema, que é foco da Lei 9.180 de 2021, conhecida como Lei Ágatha Félix. A menina foi morta no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, dentro de uma kombi com a mãe. A lei dispõe, dentre outras coisas, sobre a prioridade de investigação nos crimes cometidos contra crianças e adolescentes e que tenham resultado morte. Mas não é o que se vê.
"A pesquisa mostra o que ouvimos de muitas famílias: lentidão e demora na apuração de crimes envolvendo seus filhos. O Estado precisa dar uma resposta a essas mães e pais sobre o que aconteceu com suas crianças", afirma a defensora Paola Gradin, coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA).
O inquérito concluiu que o tiro que matou Ágatha partiu da arma do PM Rodrigo José de Matos Soares, que atirou na direção de uma moto após confundir uma esquadria de alumínio com uma arma. A bala bateu num poste antes de atingir Ágatha. O policial foi denunciado por homicídio doloso e virou réu no caso. Mas, passados mais de dois anos, o julgamento ainda não teve início no Tribunal de Justiça do Rio.
Em relação aos crimes dolosos, onde há intenção de matar, ou seja, onde o agente quis ou assumiu o resultado, os mais representativos são os homicídios consumados ou tentados provocados por projétil de arma de fogo (62,5%), seguidos dos homicídios relacionados à atividade policial (intervenção policial, oposição à intervenção policial e autos de resistência), que representam 10,7% dos crimes dolosos.
Já sobre os crimes culposos em aberto, a maioria está relacionada com meios de transporte: acidentes de trânsito, queda de interior de veículo ou de composição ferroviária e atropelamento, por exemplo.
Crimes por faixa etária
No grupo de 0 a 4 anos, o crime que mais afeta essa faixa etária é o homicídio culposo não especificado, com 389 ocorrências, seguido pelo homicídio doloso não especificado (106 casos). Já as crianças de 5 a 9 anos são atingidas, principalmente, pelos crimes culposos relacionados ao trânsito. O grupo de 12 a 17 anos é expressivamente marcado pelos homicídios dolosos em decorrência de projétil de arma de fogo em sua forma consumada (3.056) e tentada (1.308).
A pesquisa aponta ainda que os homicídios relacionados à atividade policial são muito expressivos no grupo que compreende as idades de 12 a 17 anos. Enquanto 10,4% dos crimes relacionados a essa faixa etária são desse grupo, essa correspondência é menor do que 1% para as demais faixas etárias. Esse grupo representa, ainda, 98,6% das mortes em decorrência de auto de resistência (350 de 356). A capital abrange quase 74% das mortes de crianças e adolescentes classificadas como resultado de auto de resistência (264 de 356).
Fora da capital, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, três policiais foram indiciados pelo assassinato do adolescente João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, em maio do ano passado, no Complexo do Salgueiro. Dois deles devem responder por homicídio culposo, quando não há a intenção de matar. Um terceiro deve responder, segundo o relatório, por tentativa de homicídio culposa, porque foi descartada a possibilidade de o agente ter atingido João Pedro. Para a conclusão da investigação, "os policiais agiram sob erro quanto aos pressupostos fáticos da legítima defesa, supondo haver uma injusta agressão".
"Depois de analisar as bases de dados remetidas, fica claro que a causa da letalidade varia de acordo com a faixa etária. É preciso investir para reduzir a circulação de armas (maior causa da morte de adolescentes), e em estratégias seguras de trânsito de veículos (maior causa entre crianças)", ressalta a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça, Carolina Haber, que coordenou o trabalho.
Procurada, a Polícia Civil afirma que "os inquéritos da Ágatha e do João Pedro foram concluídos e encaminhados à Justiça, com o indiciamento de um policial da UPP Fazendinha e de três policiais da Core, respectivamente. A investigação sobre o caso Emily e Rebecca está em fase de conclusão." A Polícia Civil ainda diz que "é concedida absoluta prioridade em todos os procedimentos que figuram crianças e adolescentes vítimas, cuja complexidade varia de acordo com caso concreto."