CPI da Covid começa a delinear equívocos do governo que levaram à 500 mil mortos
Divulgação/Agência Senado/Marcos Oliveira
CPI da Covid começa a delinear equívocos do governo que levaram à 500 mil mortos

Ao longo de quase dois meses de trabalho, a CPI da Covid coletou mais de mil documentos, colheu 21 depoimentos e aprovou 29 quebras de sigilos bancários e telefônicos. A partir da análise desse material, a investigação começa a delinear três caminhos que levaram o Brasil a registrar a  marca de 500 mil mortos pela pandemia: a aposta em medicamentos sem eficácia, a lentidão na compra de vacinas e a crença na tese da “imunização de rebanho”.

O material colhido pela CPI mostra, por exemplo, o empenho do governo Bolsonaro em transformar um conjunto de medicamentos sem comprovação científica contra a Covid-19 em uma de suas principais políticas públicas de combate à doença. Levantamento feito pelo GLOBO com base em telegramas diplomáticos enviados à comissão revela que o Itamaraty atuou pelo menos 84 vezes no exterior para garantir o abastecimento de cloroquina.

A maior parte das comunicações foi envidada à Índia. Os telegramas narram, por exemplo, que o presidente Jair Bolsonaro telefonou ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para pedir a liberação de insumos para a fabricação de cloroquina por empresas privadas brasileiras.

Um documento enviado pelo Ministério da Saúde à CPI mostra que o governo distribuiu mais de 6 milhões de comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina entre março de 2020 e abril de 2021 para combater a Covid-19. Somente as terras indígenas receberam 100,5 mil unidades em junho do ano passado. Procurada, a pasta informou que a cloroquina é enviada regularmente às terras indígenas onde a malária é endêmica, mas não explicou por que mandou o remédio para combater a Covid-19. A cloroquina é indicada para malária, mas ineficaz contra a Covid.

Tudo isso ocorreu em meio aos alertas da comunidade científica nacional e internacional sobre a inadequação da cloroquina no tratamento da Covid-19. Em junho, a Organização Mundial de Saúde (OMS) suspendeu os testes com hidroxicloroquina (um derivado da cloroquina) após constatar que não tinha efeitos significativos e poderia até ser prejudicial, por seus efeitos colaterais. Mesmo assim, o governo enviou o medicamento aos estados até abril deste ano.

Vacinação atrasada

Os depoimentos do ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta e do presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, revelaram que o governo quis alterar a bula da cloroquina para incluir uma recomendação de uso do medicamento contra a Covid-19, o que não foi concretizado.

A demora na compra das vacinas contra a Covid-19 foi um dos assuntos que mais chamou a atenção no início da CPI. Desde janeiro deste ano, sabia-se que a farmacêutica Pfizer enfrentava dificuldades para negociar com o governo brasileiro.

Os depoimentos do gerente-geral da empresa para a América Latina, Carlos Murillo, e documentos enviados à comissão pela própria empresa comprovam a demora da equipe do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello em adquirir o imunizante, que já estava contratado por dezenas de países no mundo inteiro. Segundo o vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a Pfizer foi ignorada 81 vezes pelo governo.

A demora na negociação das vacinas tanto da Pfizer quanto da Janssen é apontada por senadores como uma das principais razões para a demora no início da imunização no Brasil e para o ritmo lento da aplicação.

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Levantamento da Universidade John Hopkins mostra que o Brasil tem apenas 11,39% da sua população totalmente vacinada. O número é muito inferior ao de países como o Reino Unido (45,9) e os EUA (45,23%). Também perde para latino-americanos como Chile (48,76%), República Dominicana (20,97%) e México (12,19%).

Ao mesmo tempo em que o governo apostava na cloroquina e não demonstrava o mesmo empenho na aquisição de vacinas, alguns de seus conselheiros apostavam na chamada “imunidade de rebanho”. A tese era a de que o aumento de infecções resultaria no desenvolvimento de uma “imunidade” natural na população.

Não há comprovação, no entanto, de que quem contraiu a Covid-19 desenvolva imunidade permanente. Há diversos casos de reinfecção, principalmente por causa das variantes do vírus. Além disso, apostar na tese significa expor pessoas ao risco de morte.

Um dos principais defensores dessa tese foi o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que, ao lado do então assessor especial da Presidência Arthur Weintraub, é apontado como um dos organizadores do chamado “gabinete paralelo”, um grupo de conselheiros de Bolsonaro sobre a gestão da pandemia.

Um estudo solicitado pela CPI ao Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa), vinculado à Faculdade de Saúde Pública da USP, em parceria com a organização não-governamental Conectas, aponta que o governo atuou deliberadamente por essa tese.

“O presente estudo permite concluir, com vasto respaldo documental, que, a partir de abril de 2020, o governo federal passou a promover a “imunidade de rebanho” por contágio como meio de resposta à pandemia. Ou seja, optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que a infecção naturalmente induziria à imunidade”, diz o documento.

Bolsonaro continua difundindo essa tese. Na quinta-feira passada, em uma transmissão ao vivo, voltou a dizer que pessoas infectadas pela Covid-19 estariam já imunizadas. Sobre os quase 500 mil mortos, não disse nenhuma palavra. (Colaboraram Paula Ferreira e Paulo Cappelli)

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