Com João, de 4 anos, começou com sonolência, febre e erupções na pele . Marcos, de 7 anos, jogava bola quando sofreu dores violentas no abdômen. Patrícia, de 11 anos, tinha falta de ar. Todos contraíram a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (Sim-P), associada à forma grave da Covid-19 , que quase os matou.
A líder da equipe que salvou a vida deles, Raquel Zeitel, chefe da UTI pediátrica do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ), afirma que, num momento em que se discute a reabertura de escolas, é fundamental conhecer a doença e estar atento.
A história dessas crianças ajuda a compreender a dimensão da gravidade da doença. Todas são do estado do Rio de Janeiro, foram tratadas no HUPE, referência de Covid-19 infantil, e tiveram os nomes verdadeiros trocados para preservar sua privacidade e a de suas famílias.
"Os casos de Covid-19 tanto em adultos quanto em crianças têm diminuído, mas ainda acontecem, e esse é um vírus imprevisível, não o conhecemos direito ainda. Então, não se pode descuidar", salienta Raquel, de 63 anos, uma das raras médicas desta faixa etária que permaneceu na linha de frente da pandemia.
Casos graves de Covid-19 em crianças são raros, mas estão entre os mistérios mais desafiadores sobre o coronavírus. Diferentemente da maioria dos adultos que adoecem gravemente, essas crianças costumam ser saudáveis, não ter qualquer doença pré-existente ou fator de risco conhecido, como obesidade. Além disso, os sintomas respiratórios nem sempre são significativos, e o coração — e não o pulmão — pode ser o órgão mais atingido.
A medicina ainda não sabe dizer por que algumas crianças adoecem com tamanha gravidade e o que as faz tão vulneráveis ao coronavírus.
Como o nome indica, a síndrome causa inflamação generalizada e atinge múltiplos órgãos, como coração, fígado, intestino, cérebro, pele, baço e rins. O pulmão nem sempre é afetado com gravidade, e chama a atenção o acometimento do coração. Microtrombos, tão característicos da Covid-19 grave em adultos, são frequentes.
Mais do que uma dor na barriga, o caso de João
João tem 4 anos e é de uma família de profissionais de saúde. Vive cercado de cuidados, gozava de saúde perfeita até começar a apresentar febre e sonolência persistentes. Logo vieram diarreia e dores abdominais. Foi levado ao médico e recebeu diagnóstico de gastroenterite.
Não melhorou e após uma semana apareceram uma erupção na pele e momentos de alterações de consciência. Foi para um hospital e de lá transferido para HUPE, onde se detectou o coronavírus.
Chegou lá em choque, com alterações no coração. Este, inflamado, já não bombeava oxigênio suficiente para o cérebro. João estava tão mal que no mesmo dia precisou ser intubado. Por quatro dias permaneceu no respirador em estado extremamente grave. O menino, porém, respondeu bem ao tratamento e se recuperou após duas semanas de internação. Raquel Zeitel diz que não apresenta sequelas.
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Do futebol ao skate, a história de Marcos
Filho único de pais extremamente dedicados a ele, Marcos, de 7 anos, sempre gozou de saúde excelente. Adora jogar futebol, e foi brincando com a bola que sentiu os primeiros sintomas. E eles, assim como no caso de João, nada tinham a ver com o pulmão.
O menino procurou a mãe com queixa de dores fortes e persistentes na região do abdômen. Foi levado a um hospital do Grande Rio, onde se detectou uma apendicite grave. Precisou ser operado às pressas para a retirada do apêndice. Porém, não foi o fim de seus problemas.
Ainda internado, começou a apresentar sintomas respiratórios, e um exame detectou o Sars-CoV-2.
O menino foi, então, transferido para o HUPE. Marcos chegou consciente e tentava sorrir e brincar com os médicos, mas as dores não cediam aos medicamentos. Foi perdendo aos poucos a consciência, e seu coração começou a dar sinais de complicações. Foi intubado.
Coração e intestino pioraram, e seu estado fico crítico. Os médicos precisaram extrair uma parte de seu intestino grosso. O menino precisou colocar uma bolsa de colostomia.
Após um mês de internação, seu quadro melhorou, e Marcos teve alta. Ele precisará esperar entre três e quatro meses para que possa ser de novo operado, ter o intestino restaurado e a bolsa removida. Raquel diz que o estado dele é ótimo. Marcos voltou a sorrir, a brincar e já anda de skate, outra de suas diversões.
Um coração 'envelhecido', a história de Patrícia
De tão complexo devido ao comprometimento do coração, o caso de Patrícia, de 11 anos, permanece em estudo.
No início, a menina não apresentava sintomas cardíacos. Ela reclamava de falta de ar, que não passava. Patrícia nunca teve qualquer doença prévia grave, e a família alarmada procurou um hospital.
Tinha um quadro sugestivo de Covid-19, com uma pneumonia leve de chamado “vidro fosco”, devido à opacidades nas tomografias que costumam ser associadas ao coronavírus. Mas o exame deu negativo, e o primeiro hospital que a atendeu considerou que se tratava de outra doença, asma ou gripe.
Foi internada e a falta de ar só se agravou. Tanto que a transferiram finalmente para HUPE.
Chegou lá no décimo dia de doença em estado grave, direto para a UTI, onde uma sorologia deu positivo para o Sars-CoV-2. Patrícia, nesse momento, já estava com disfunção do ventrículo esquerdo do coração e tinha um trombo no átrio direito.
O ecocardiograma não parecia o exame do coração de uma criança, mas de um adulto com graves problemas cardíacos. Ela precisou tomar drogas anticoagulantes. Ficou dez dias na UTI. E o coração começou a recuperar suas funções.
Patrícia teve alta, mas ainda precisa tomar remédios para normalizar as funções cardíacas. É atendida numa enfermaria de pós-Covid-19 do HUPE dedicada às crianças. O caso permanece inconclusivo. Até agora nenhuma doença ligada à trombose foi detectada nela ou em sua família.