Não uma, mas seis apenas neste ano. Outras dez em 2019. Quatorze em 2018. Casos de meninas com até 14 anos que não conseguiram interromper a gestação no município de São Mateus, no Espírito Santo, onde vive a menina de 10 anos estuprada pelo tio que precisou ir a Pernambuco para realizar um aborto legal, são frequentes.
Segundo apuração da Agência Pública, nos últimos dez anos 158 meninas com até 14 anos engravidaram e tiveram que levar a gestação até o fim na cidade. Segundo o artigo 217-A do Código Penal, “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” é crime com pena de 10 a 20 anos de reclusão, “independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”.
Em média, o município, com cerca de 130 mil habitantes, tem registrado quase um parto de meninas de até 14 anos a cada mês – houve anos com cerca de dois partos mensais. A quantidade de crianças que não têm a gestação interrompida e chegam a ter filhos ultrapassa a de diversas outras cidades do estado, comparativamente. Para se ter uma ideia, Vitória, a capital do Espírito Santo, tem uma população três vezes maior que São Mateus, mas registrou uma quantidade de partos de meninas nessa faixa etária apenas 50% maior.
Os dados de saúde de São Mateus revelam também uma realidade duplamente cruel: as gestações de meninas no município não têm sido registradas como resultado de estupro. O sistema de saúde tem contabilizado, em média a cada ano, menos de sete estupros de meninas nessa faixa etária residentes na cidade. Contudo, a média de meninas que engravidaram e chegaram ao parto passa de 17 por ano, no mesmo período.
Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, o programa para vítimas de violência sexual atendeu três adolescentes de São Mateus vítimas de estupro em 2019 e 2020. Nesse mesmo período, a cidade registrou 16 partos, apenas de meninas com até 14 anos.
De acordo com Maria Agapito, coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres na Defensoria Pública do Estado, o caso atual, que ganhou repercussão nacional, “descortinou” um problema crônico. “Temos que ter em mente que se trata de um município do interior do estado. As meninas têm dificuldade e medo de denunciar”, comenta.
Dados do IBGE apontam que São Mateus é uma cidade majoritariamente católica, com 54% da população declarando seguir essa religião no último censo. Em seguida, estão os evangélicos de diversas denominações, que em 2010 somavam cerca de 38%.
“Devem ser considerados também as questões de gênero e o machismo estrutural que permeiam toda a construção da sociedade e infelizmente fazem com que haja um bloqueio para que as meninas e mulheres sejam devidamente encaminhadas e atendidas na rede de acolhimento e enfrentamento à violência sexual”, relata a defensora.
A Pública procurou o Conselho Tutelar da cidade, que não quis se manifestar. Buscamos também vereadores e lideranças políticas da região, que não se pronunciaram. A reportagem procurou ainda grupos de mulheres, que não responderam até a publicação da matéria.
Já a prefeitura, quando questionada, respondeu com uma notificação do Ministério Público estadual que a impede de conceder informações sobre qualquer caso concreto e em curso envolvendo crianças ou adolescentes na cidade.
“Sou titular da Promotoria da Infância desde fevereiro de 2012, e esse é o primeiro caso de aborto legal que a gente tem. E obviamente não é a primeira vítima que precisa de um aborto legal na infância”, afirma o promotor da Infância e Juventude da Promotoria de Justiça de São Mateus, Fagner Andrade.
“Esse caso quase não chegou, por todas as dificuldades e resistência a uma solução que não depende de opinião, mas decorre da lei. Vivemos em uma cultura machista antiaborto legal e de condenação da vítima, e ela envolve inclusive atores essenciais para o aborto legal. Isso não é aceitável”, critica.
Meninas grávidas após uniões ilegais
Entre as seis meninas que não interromperam a gestação e pariram este ano em São Mateus, duas apresentam em seus registros a informação de “união consensual”. Essa união ou qualquer forma de casamento com menores de 16 anos é ilegal no Brasil desde março de 2019, independentemente da idade do cônjuge.
Contudo, antes da mudança no Código Penal ocorrida no ano passado, pela lei o casamento de menores de 16 anos era permitido caso a menina estivesse grávida ou justamente para evitar “imposição ou cumprimento de pena criminal”. Na prática, essa permissão era um “perdão” institucionalizado para crimes de estupro praticado por maiores de 16 anos que se relacionassem com crianças.
De acordo com os dados apurados pela Pública, a “união consensual” de crianças em São Mateus foi registrada continuamente nos atendimentos em saúde – e pode explicar parte da subnotificação dos estupros. Das 158 meninas com até 14 anos que engravidaram e pariram na cidade nos últimos dez anos, quase um terço delas teve o registro de “união consensual”.
Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da ONG Plan International Brasil, explica que, perante a lei, não existe a possibilidade de uma menina menor de 14 anos expressar consentimento para estar em uma relação conjugal. “Essas meninas são casadas, mas esses casamentos não deveriam ter acontecido, porque a união entre elas e pessoas mais velhas é considerada estupro de vulnerável”, declara.
No ano passado, a organização lançou, em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), um estudo sobre casamento infantil no país.
Segundo Viviana, a ideia de uma menina com menos de 14 anos estar em uma “relação consensual” é “uma solução moral que se encontra para uma violação de direito”. “A sociedade fica muito convencida por essa resposta moral, e isso faz com que, muitas vezes, todos invisibilizem a violência sofrida por ela, inclusive os serviços de saúde. Uma menina de 12, 13 anos chega grávida e as pessoas não entendem aquilo como uma violência sexual porque o marido está do lado”, aponta.
Viviana afirma que o fenômeno do casamento infantil acontece em todo o Brasil e é mais incidente sobre crianças negras e pobres. A pesquisa aponta que, nessas relações, as meninas são em média de cinco a sete mais novas que os parceiros. Levantamento do Núcleo Jornalismo e Revista AzMina revela que, entre 2014 e 2018, mais de mil meninas foram casadas com homens de 18 anos ou mais no país.
Exposição de menina vítima de estupro e participação de autoridades são investigadas
Foi o grupo conservador, composto por políticos e religiosos contra interrupção da gravidez da menina de São Mateus, que chegou primeiro à porta do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife.
Apesar de a criança e sua família terem viajado anonimamente para outro estado para fazer valer o direito do aborto legal, os opositores sabiam a data e o local onde o procedimento seria realizado – e se organizaram para tentar impedir o procedimento, constranger a família da vítima e os profissionais de saúde.
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Uma das possíveis fontes dessa informação é a extremista Sara Giromini, que divulgou no Twitter o primeiro nome da vítima e o local onde o aborto legal seria feito. Contudo, não se sabe como ela obteve essas informações, visto que todo o processo corria sob segredo de justiça.
“Essas informações estavam de posse apenas dos órgãos públicos que atuam nessas situações. Se comprovado o vazamento de informações sigilosas por um agente público, configura improbidade administrativa, além de outras infrações contra o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] e o Código Penal.
A divulgação das informações sobre a criança é crime, como prevê o ECA”, afirma o promotor Fagner Andrade. O vazamento das informações sobre a criança está sendo investigado pelo Ministério Público do estado.
A perseguição à família já havia começado na própria cidade de São Mateus. No último sábado (15), um grupo católico conservador, liderado por Pedro Teodoro dos Santos, filiado ao PSL e pré-candidato a vereador no município, visitou parentes da vítima para tentar convencê-los a manter a gravidez. Ele fez um post contra o aborto nas redes sociais, usando uma hashtag que expunha o nome da criança violentada.
“A gente tá querendo salvar o bisneto da senhora”, diz um homem, que seria Teodoro segundo testemunhas, em um dos áudios transcritos nesta reportagem e que estão de posse da Promotoria da Infância e da Juventude de São Mateus. A Pública teve acesso aos áudios.
Neles, esse integrante do grupo religioso afirma, de forma equivocada, que o aborto legal seria mais arriscado para a criança do que manter a gravidez. Diz também que tem à disposição juízes e médicos dispostos a prestar assistência à família, caso a gestação não fosse interrompida.
“A avó da menina chegou a desmaiar”, contou à reportagem uma pessoa da família, que registrou boletim de ocorrência denunciando o grupo religioso e Pedro Teodoro por “pressão psicológica”. “Até agora a gente não sabe como eles descobriram o nome da criança e o endereço da família. Quando vimos, o nome da menina já estava rolando na internet”, disse o parente da menina.
Ontem (20), o Ministério Público do Espírito Santo entrou com ação civil pública por dano moral contra Teodoro, com pedido para que ele pague indenização de R$ 300 mil à família.
Na segunda-feira (17), a Pública conversou com Teodoro, que inicialmente aceitou falar, mas depois recusou a entrevista, afirmando que já havia “prestado todos os esclarecimentos à Justiça” e que estava se “reservando aos cuidados da família” depois do “burburinho” em torno de seu nome. Ele confirmou em entrevista ao UOL que visitou a família para “tentar levar conforto espiritual, uma mensagem de Deus e uma alternativa para a morte”.
No áudio gravado durante a ida do grupo religioso à casa da vítima, um integrante do grupo, supostamente Teodoro, diz que a abordagem para tentar convencer a família a manter a gravidez aconteceu com ciência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. No início daquela semana, a ministra havia enviado dois representantes ao município para acompanhar o caso.
Os servidores do ministério são Alinne Duarte de Andrade, coordenadora-geral de Fortalecimento de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, e Wendel Benevides Matos, coordenador-geral da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Alinne, no governo desde fevereiro de 2019, ocupa um papel estratégico para Damares no ministério: ela trabalha diretamente junto à rede de proteção e combate ao abuso de crianças e adolescentes em todo o território nacional, uma das principais bandeiras de Damares em sua gestão. Já Wendel é policial rodoviário federal e atuava na corregedoria do órgão no estado do Espírito Santo.
A equipe do ministério chegou a São Mateus no dia 12, segundo informações divulgadas pela pasta. A própria ministra fez um post sobre o envio dos servidores no Twitter e afirmou que sua equipe acompanhava o caso ao menos desde o dia 10 de agosto, embora as informações sobre a viagem oficial não constem no Portal da Transparência do governo federal.
Acompanhados pelo deputado do Republicanos do Espírito Santo Lorenzo Pazolini, que é ex-delegado e presidente da Comissão de Direito de Proteção à Criança da Assembleia Legislativa local, os funcionários de Damares conversaram com conselheiros tutelares e com a polícia.
O ministério nega relação com o vazamento das informações sobre a menina e afirma que seus representantes “não sabiam o nome da criança, nem o endereço da família. E acrescenta que “jamais tiveram contato com qualquer pessoa próxima à criança” (leia a nota completa).
Na entrevista ao UOL, Pedro Teodoro disse que sua relação com a ministra Damares foi “uma narrativa mal interpretada” e que havia ficado sabendo pelas redes sociais da ministra “que ela estava oferecendo ajuda”, mas que nunca viu a ministra e não tem relacionamento “com pessoas dela”.
A atuação de grupos que tentaram coagir os familiares da menina a não fazer o aborto – que é garantido pela lei brasileira em casos de estupro – pode ser enquadrada como “crime de constrangimento”, segundo o promotor de São Mateus. Até agora, apenas Teodoro foi identificado. A identidade dos demais integrantes está sendo investigada.
Abusos de meninas e violência contra mulheres ocorrem por todo o estado
“Esse é só um caso entre milhares, não é o único. Há diversos casos de meninas estupradas no Espírito Santo, que são tiradas da guarda das famílias, mas não há informações do que acontece após”, denuncia Gi Del Fuoco, do grupo feminista Sangra Coletiva.
O grupo foi responsável por levantar a hashtag #gravidezaos10mata, que ajudou a tornar nacional a discussão sobre o caso de São Mateus. Atualmente, elas cobram dos deputados federais que investiguem e tomem ações sobre os altos índices de violência e abuso contra meninas no Espírito Santo.
O Espírito Santo registrou mais de um caso de estupro de crianças por dia entre janeiro e julho deste ano, segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp). Emilly Tenório, assistente social e representante do Fórum de Mulheres do Espírito Santo, ligado à Articulação de Mulheres Brasileiras, lamenta os dados, mas acredita que a quantidade de casos pode ser ainda maior.
“Há muita subnotificação. A própria desorganização dos fluxos de assistência contribui para isso, porque a pessoa que sofreu a violência vive uma verdadeira saga para ter seu direito assegurado”, aponta.
A representante do Fórum de Mulheres critica a atuação da rede de proteção no caso da menina que foi estuprada e precisou sair do estado para fazer um aborto legal. “Quando ela recebeu o primeiro atendimento de saúde, precisaria já ter tido seu direito assegurado, considerando que, nessas situações, quanto mais rápida a intervenção, menor o sofrimento causado”, considera.
“O argumento do hospital, de que não tinha capacidade técnica para atender, também é muito grave. Gravidez na infância e na adolescência precoce mata! Estamos falando de assegurar um direito fundamental da vida de uma menina de 10 anos.”