"Eles não pediram desculpas pelo que ocorreu com o meu pai. Disseram apenas que está tudo dentro da legalidade e que se a família quiser saber onde está localizado a sepultura dele, é para irmos ao Cemitério de Inhaúma e falar com a direção." O relato é de Thainara Souza dos Santos, de 25 anos, filha do desempregado Paulo César dos Santos Oliveira, de 53 anos, que foi enterrado sem que a família soubesse , ao morrer durante a internação no Hospital municipal Salgado Filho, no Méier.
O paciente deu entrada na unidade no dia 25 de junho, e morreu seis dias depois. A família não ficou sabendo da morte do paciente, e afirma que continuava a receber os boletins sobre o estado de saúde de Paulo César.
Na manhã de quinta-feira (20), a direção do hospital havia chamado os parentes de Paulo César para uma conversa na unidade médica . Horas antes do encontro com os parentes do paciente, a diretora do hospital - a médica ortopedista Carla da Silva Freire Cantisano – afirmou que "tudo leva a crer que não houve erros por parte da unidade".
Entretanto, a Polícia Civil vai abrir um inquérito para apurar a conduta do hospital. Parentes de Paulo registrarão um boletim de ocorrência ainda nesta sexta-feira contra a unidade de saúde que é gerida pela Prefeitura do Rio.
Ainda muito abalada, na manhã desta sexta-feira (21), a filha mais velha de Paulo César disse que, em nenhum momento, a direção do hospital pediu desculpas para os parentes e que, também, não se colocaram à disposição para ajudá-los.
"(Durante todo o tempo) eles falaram que tudo foi feito legalmente. Em nenhum momento eles pediram desculpas pelo acontecido. Também não se prontificaram a ajudar a nossa família", disse Thainara, que completa: Só queria que eles tivessem tido um pouco de respeito com o meu pai e com a nossa família. Eles não tiveram amor com a gente. E se fosse um parente deles? Seria assim?"
A descoberta de que Paulo César havia morrido foi por acaso . Na tarde de quarta, um filho da vítima precisou de atendimento médico e foi levado ao Salgado Filho. Ao chegar lá, Thainara tentou ver o pai, que estaria na "sala amarela". Foi nesse momento que ela descobriu a morte de Paulo e sobre o enterro no Cemitério de Inhaúma, também na Zona Norte do Rio, no dia 5 de agosto.
"Fui ao leito onde meu pai deveria estar e não vi ninguém. Uma enfermeira disse que eu poderia ir à recepção para saber onde meu pai estava. A recepcionista me disse, então, que o nome dele não constava mais no sistema. Comecei a questionar, fiquei muito preocupada", conta Thainara, que demorou a descobrir que Paulo César não estava mais na unidade.
"Quando fui ver, no caderno estava escrito que ele havia morrido no dia 1º de julho de 2020 e que só foi enterrado no dia 5 de agosto. Ou seja, mais de um mês após a morte. Não sei quem reconheceu e liberou o corpo, não sei quem enterrou meu pai. Ele morava do lado da minha casa, eu era responsável por ele."
Thainara ainda completa: Quem liberou (o corpo)? Como alguém iria enterrar o meu pai? Será que trocaram o corpo? Eu estava vindo deixar as coisas para ele. O endereço (no prontuário) era o da minha casa. O meu pai não tinha outra família. Tudo isso é revoltante ."
Apenas uma ligação
O Salgado Filho alega que não conseguiu contato com a família para informar sobre o óbito e que, por isso, realizou o enterro. Diretora da unidade disse que o hospital fez apenas uma ligação para a filha de Paulo. Mas, como ela não atendeu, decidiram mandar a correspondência.
"Tentamos contato com o telefone informado no momento da internação e não conseguimos . Foi uma ligação. No mesmo dia do óbito, foi enviado um telegrama para o endereço cadastrado. No nosso registro de acompanhamento, os Correios tentaram entregá-lo quatro vezes, sem sucesso. Após o óbito, temos 15 dias para fazer o registro civil da morte, o que foi feito. Além disso, temos 30 dias para o sepultamento", afirma Carla.
De acordo com a diretora, 15 dias após a morte de Paulo César, o Detran foi à unidade e fez um exame de papiloscopia para identificá-lo : "Fizemos o registro e, quando acabou o tempo, fizemos o enterro." O Detran, no entanto, informou que não faz exame de papiloscopia em pessoas mortas.
O hospital afirma que Paulo César não deu entrada com AVC, mas com insuficiência respiratória provocada por síndrome respiratória aguda. "Ele estava com Covid-19. Chegou, foi para o oxigênio, evoluiu para uma insuficiência respiratória e não regrediu, evoluindo para o óbito", diz Carla.
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Segundo a direção, a única mensagem que a família recebeu foi no dia 30 de junho, informando que ele estava estável: "Não temos registros de outro boletim. No nosso sistema fica registrado."
Carla afirmou que o protocolo é fazer um telefonema, e, caso o familiar não atenda, é enviado um comunicado por carta pedindo que a pessoa vá à unidade de saúde. Para a diretora, "houve uma deficiência de informação no cadastro informado".
A direção do Salgado Filho afirma que Paulo César não foi enterrado como indigente . De acordo com a certidão, a causa da morte do desempregado foi insuficiência respiratória aguda. Não houve um pedido de desculpa à família. A unidade de saúde diz apenas que vai abrir uma sindicância:
"A gente precisa escutar a família. No curso da sindicância, teremos um resultado, mas tudo leva a crer não houve erros por parte da unidade", diz Carla.
Investigação
A família de Paulo César foi à delegacia no início da tarde desta sexta-feira para registrar um boletim de ocorrência contra a unidade.
A Secretaria municipal de Saúde (SMS) disse, na quinta-feira, que abriu uma sindicância para apurar o que aconteceu. Questionada novamente, hoje, sobre a fala as denúncias de Thainara a pasta disse limitou a dizer que "o Núcleo Estratégico de Assistência Familiar (Neaf) do Salgado Filho recebeu a filha do senhor Paulo César na quinta-feira (20/08) e, desde então, já está dando suporte a ela e à família".
Além disso, a secretaria confirmou que a diretora do Salgado Filho errou ao informar que foi o Detran que fez a identificação do corpo de Paulo. Desta fez, a SMS afirmou que foi um papiloscopista do Setor de Identificação e Perícias Necropapiloscópicas do Instituto Félix Pacheco foi o responsável por realizar o trabalho, que aconteceu no dia 12 de julho.
Ainda segundo a pasta, "de fato, não é o Detran que faz exame de papiloscopia em pessoas mortas e, sim, o Instituto de Identificação Félix Pacheco. Seus peritos comparam as digitais colhidas pelo papiloscopista com a base de dados do Detran".
Por fim, a assessoria de imprensa da SMS voltou a afirmar que "todos os procedimentos executados até o sepultamento do senhor Paulo César são absolutamente legais ".
O delegado Deoclecio Francisco de Assis Filho, titular da 23ª DP (Méier) afirmou que pediu para investigar o fato e ver quais possíveis crimes foram cometidos.
A assessoria de imprensa da Polícia Civil ainda não respondeu se foram os papiloscopistas do Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP) que fizeram o reconhecimento do corpo de Paulo César.
Filha levava roupa de cama para lavar em casa
Morador do Jacaré, na Zona Norte do Rio, Paulo César era vizinho da filha. Ele morava sozinho e não conseguia mais andar por causa da diabetes. O desempregado deu entrada na unidade com suspeita de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Horas depois, segundo a família, funcionários informaram que ele estava com sintomas da Covid-19 e por isso não poderia receber visitas.
Os parentes contam que, durante todo o tempo em que achavam que Paulo César estava internado, a direção do hospital manteve contato , sempre informando que o "sr. Paulo passa bem".
Thainara diz que foi ao Salgado Filho muitas vezes para entregar roupa de cama limpa e pegar lençol sujo, que levava para casa para lavar e depois devolvia para o pai usar.
"Ele chegou com suspeita de AVC. Depois, informaram que ele poderia estar com Covid-19 e fomos liberados. Desde então, meu marido vinha recebendo mensagens que diziam que meu pai estava bem ", lembra a filha.
Nesta quinta-feira, após o "Bom dia, Rio", da TV Globo, denunciar o descaso da Secretaria municipal de Saúde (SMS), a direção do Hospital Salgado Filho chamou a família de Paulo César para conversar. A unidade diz que tentou contato uma vez e que enviou um telegrama para avisar sobre a morte do paciente, mas a filha nega ter recebido qualquer correspondência. A Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio, no entanto, garante que o telegrama foi entregue.
"A gente recebe todas as cartas em casa. Ninguém mandou telegrama. É mentira. Já havia dado tempo para eles mandarem uma carta. O carteiro é nosso amigo e nunca voltou nada dos Correios", diz a filha.