Desde o início da pandemia, detentos do Presídio Professor Jacy de Assis, localizado em Uberlândia , no interior de Minas, estão vivendo dias de terror. Pessoas libertadas e familiares de presos relataram à Agência Pública uma rotina que inclui tapas na cara, ataques com balas de borracha e spray de pimenta e punições coletivas, como corte de água e de energia e suspensão do banho de sol. Segundo eles, torturas físicas e psicológicas se intensificaram na unidade depois que as visitas foram suspensas pelo governo do estado, em 20 de março, para evitar a propagação do vírus nas prisões.
Quem passa do lado de fora do presídio escuta os gritos de “socorro”, “chega de opressão”, “coronavírus está na cadeia” que ecoam lá de dentro. Os gritos foram gravados por parentes dos presos e enviados à reportagem. Essa foi a forma que os detentos se organizaram para chamar atenção do que está ocorrendo, segundo Bruno*. Preso no início de março, ele saiu da cadeia mês passado.
“A opressão lá dentro está muito grande mesmo. O GIR [Grupo de Intervenção Rápida] jogou spray de pimenta na minha cara, na minha cara mesmo. Também já soltaram na minha cela bomba de gás lacrimogêneo. Você sente falta de ar, arde o olho, queima tudo. E tem a bomba de efeito moral, também, que eles usam. Ela dá uma explosão e te deixa surdo. É bomba demais”, relatou à reportagem. “Eu apanhei algumas vezes lá. Já vi colega tomar três tiros de borracha no peito”, acrescentou.
Gabriel* deixou a cadeia na segunda-feira e contou que viu um colega ajoelhado, só com a roupa íntima, sendo “obrigado a arrancar as unhas com o dente”. “Devido a essa pandemia, eles não dão acesso pra gente de comunicação com a família, a gente vai dar as mãos ali dentro, não adianta vir represália, nada. A gente só quer a luta pelos nossos direitos”, reivindicou.
Detentos liberados do presídio recentemente se imbuíram da missão de denunciar os atos de violência praticados pelos agentes e pelo GIR, uma espécie de tropa de choque dos presídios. Pelo menos dez gravaram relatos aos quais a Pública teve acesso, narrando o que viram e vivenciaram na unidade:
“Toda vez que eles [GIR] entram pra trancar banho de sol, para abrir banho de sol, tacam gás de pimenta por motivos fúteis.”
“Onde foi detectado coronavírus eles cortaram tudo de nós: banho de sol, sacolinha [kit com comida e produtos de higiene enviado pela família], energia.”
“O que eles [agentes] entram falando lá no pavilhão é que [eles] querem que a gente pegue a doença mesmo, que morra, que essa doença veio para exterminar a raça do presidiário.”
Na ala feminina a situação não é diferente, mas, com menos apoio dos familiares do que os homens, as mulheres têm tido maior dificuldade de se organizar para fazer as denúncias. Juliana*, que saiu do presídio na semana passada, revelou que agentes masculinos entram no bloco e chamam as presas de “lixo”. Segundo ela, cachorros entram no pavilhão e o coronavírus está sendo negligenciado na prisão. “Está tendo Covid-19 lá dentro e eles falam que não é”, disse à reportagem.
Número de denúncias aumentou 190%
Do início da pandemia, em março, a 22 de junho, a plataforma Desencarcera registrou 298 denúncias de violência contra detentos do Presídio Professor Jacy de Assis. Ao todo, foi registrado um aumento de 190% no número de denúncias, passando de um total de 388 para 737, sendo que 40% são contra o presídio de Uberlândia. A plataforma foi criada por organizações da sociedade civil em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais para receber denúncias anônimas dos presos e seus familiares.
Além de revelarem as agressões físicas e psicológicas sistemáticas, as denúncias mostram a falta de acesso a água, a produtos de higiene básicos, a remédios, exposição ao frio, desassistência médica, suspensão da entrega dos kits enviados pelos familiares por Sedex e punições coletivas.
Gabriela* contou à reportagem que alguns presos da unidade, incluindo seu pai e seu marido, passaram dois dias só de cueca, “em uma cela sem nada”. “Desligam a energia, eles ficam igual bicho dentro da cela, no breu”, revelou. Segundo ela, durante visita virtual, seu marido contou que os agentes estavam tirando os colchões e os cobertores deles.
A água, de acordo com o ex-detento Breno*, é ligada quatro vezes ao dia por cerca de sete minutos. Nesse tempo, os 21 presos da cela têm que tomar banho, lavar roupa e se hidratar. É proibido armazenar a água em garrafas. “Eu já cheguei a beber água do cocho”, disse. “A gente não consegue ter uma higiene 100% nem com o vírus ali dentro”, manifestou.
As celas não têm televisão nem rádio. A energia, controlada pela direção, normalmente é desligada às 18 horas e religada às 10 horas, segundo os relatos. “Não tem nada pra gente se informar, não dá nem pra ler um livro, uma bíblia, porque a única luz que fica no fundo da cela é igual de farol de trem, dói a cabeça da gente”, observou Diogo*, também ex-detento.
Os presos têm direito a apenas dois dias por semana de banho de sol. Mesmo assim, de acordo com Diogo, depende da boa vontade dos policiais do GIR: “Tem vez que eles chegam e excluem uma fila do banho de sol. A gente faz duas filas dentro da cela, uma do lado direito, outra do lado esquerdo. Eles [policiais do GIR] chegam e falam assim: ‘A fila do lado direito pode assentar, vai para o sol, não’. Aí, no outro dia eles excluem de novo. Lá, eles brincam, eles fazem gracinha com a gente”, indignou-se.
O GIR foi criado em Minas, em 2012, para dar apoio às equipes dos presídios quando necessário, em situações emergenciais, na “vigilância interna” e controle de “motins, rebeliões e tentativas de fugas”. Para o uso da força, devem utilizar equipamentos de menor potencial ofensivo, para “preservar vidas e minimizar danos à integridade física e moral das pessoas envolvidas”.
Conforme os relatos dos ex-detentos e de familiares dos reeducandos, no entanto, não é assim que o GIR tem agido no Presídio Professor Jacy de Assis.
As denúncias que apontam para práticas de violações de direitos e de torturas na unidade foram encaminhadas ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.
Desde 2017, os defensores em Uberlândia registram vários tipos de violência contra os internos no presídio. “Contudo, as violações têm se agravado a partir das medidas adotadas pelo governo estadual diante do novo coronavírus”, destacou o Mecanismo Nacional em ofício encaminhado no dia 1o de julho ao poder público mineiro.
O governador de Minas, Romeu Zema, o secretário-geral de Estado de Justiça e Segurança Pública, general Mario Lucio de Araujo, a superintendente de Direitos Humanos da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social (Sedese), Maria Gabriela Diniz, a procuradora-geral de Justiça adjunta institucional do Ministério Público de Minas Gerais, Cássia Virgínia Gontijo, e o presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Nelson Missias, foram os destinatários do ofício. Até o momento, apenas a Sedese respondeu aos questionamentos do órgão federal.
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A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) informou à Pública que fez reuniões e está em contato permanente com os defensores públicos de Uberlândia. A reportagem apurou, no entanto, que o primeiro encontro de representantes da pasta com os defensores ocorreu na última terça-feira (4/8). De acordo com a secretaria, ficou acordado que, no prazo de 30 dias, a Sejusp irá verificar a procedência das denúncias e, em caso de confirmação, “tomar todas as medidas cabíveis”.
“A Corregedoria da Sejusp e diferentes áreas do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG) tratam com prioridade o assunto, respeitando o direito à ampla defesa e ao contraditório dos envolvidos”, acrescentou a secretaria por meio de nota.
Três mortes em um mês
Só no mês de julho, três reeducandos do Presídio Professor Jacy de Assis morreram em um espaço de nove dias. O jovem Cláudio Gonçalves Goes Filho, de 22 anos, morreu no dia 24. A causa ainda está sendo apurada. Cinco dias depois, José Jovelino Duarte, de 54 anos, faleceu por causa da Covid-19 e, no dia 31, Jorge Alves Pereira, de 67 anos, foi vítima de um infarto. Em junho, um detento se suicidou.
“Os últimos óbitos trazem uma perspectiva, no mínimo, de uma negligência no atendimento em saúde das pessoas que vieram a óbito, independente da causa de Covid”, avaliou o perito do Mecanismo Nacional, Daniel Melo.
A reclamação sobre a falta de assistência médica e de profissionais de saúde para atender os 1.800 presos é unânime nos relatos dos ex-detentos e dos familiares de presos da unidade.
Sem especificar quais profissionais da saúde trabalham no presídio, a Sejusp informou que a unidade possui equipe de saúde “idêntica” à do Programa Saúde da Família (PSF). O PSF conta com uma equipe composta por no mínimo um médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde.
Mas, segundo José*, “só na voz para conseguir assistência médica” lá dentro. “Tem que juntar o pavilhão de cima e o pavilhão de baixo pra chamar. Só desse jeito que eles vêm”, explicou.
No dia 2 de junho, uma detenta colocou fogo no colchão para solicitar atendimento médico. Ela estaria sentindo dores por causa de pedra nos rins, conforme apurou a reportagem.
Foi também com grito de socorro que os presos tentaram avisar que Cláudio estava passando mal, por volta das 10 horas da noite. De acordo com relatos de outros presos e de familiares que moram ao redor da unidade, os agentes só chegaram na cela onde o jovem estava por volta de 1h30 da manhã. No atestado de óbito, consta que ele morreu às 2 horas da manhã.
“Conforme eu fiquei sabendo, teve um momento que um agente foi lá na porta, viu ele passando mal e falou que não era nada”, contou Eliane Domingues de Moura, mãe de Cláudio.
Segundo ela, a causa da morte no atestado de óbito do filho foi registrada como indefinida. “Ele não tinha nenhum problema de saúde, era uma pessoa saudável”, disse Eliane. “Eu acho que é muita negligência, muita falta de respeito com todos lá. Eles acham que o preso tem que morrer. Eles não respeitam nem a família dos presos, eles são muito desumanos”, lamentou.
Eliane recebeu uma carta do filho uma semana antes de falecer. Nela, Cláudio dizia que estava tudo bem e que tinha planos para quando saísse da cadeia, como cuidar da família e da filha de 4 anos.
A cela dos isolados
Com liberdade provisória porque contraiu coronavírus, Júlio* contou à Pública que, antes de ser solto, passou três dias no pavilhão dos “isolados”, o seis, que “está funcionando como bloco rotativo”. Ele fez o teste em 19 de julho e saiu do presídio no dia 23.
É para lá, segundo ele, que são encaminhados os detentos doentes com tuberculose ou que contraíram coronavírus, por exemplo. No entanto, Júlio disse que os presos novos que estão chegando na cadeia em meio à pandemia também estão sendo trancados nesse local, até serem realocados. “Ou seja, eles estão convivendo também com as pessoas doentes. Aí propaga a doença no presídio”, disse.
O pavilhão conta com 86 celas sem nenhuma iluminação, segundo ele. “Não tem luz lá dentro, tem alguns banheiros que estão quebrados. A situação lá está precária, não tem condições de nenhum preso se recuperar fisicamente da doença lá nesse lugar. As celas são muito frias, às vezes tem infiltração, vazamento de água. Até mesmo se a pessoa pedir um socorro ali não tem jeito porque fica muito isolado”, relatou Júlio.
Segundo a Sejusp, até às 10 horas da última quarta-feira (5/8), oito presos tinham testado positivo para Covid-19 na unidade. “Eles estão assintomáticos ou com sintomas leves da doença e são acompanhados pela equipe de saúde da unidade prisional. A ala em que se encontram foi isolada, desinfectada e todos servidores e demais detentos do local usam máscaras de forma preventiva”, informou o órgão.
Familiares de presos relataram à reportagem que há detentos com sintomas que não estão sendo testados. “Meu marido foi ao atendimento de saúde porque estava dando falta de ar e dor no peito. Ele não fez nenhum exame, não foi testado. Mas ele teve esses sintomas, foi há uma semana”, contou Clarice*, mulher de um dos presos.
O primeiro caso de Covid na unidade foi detectado em policial penal, em maio. Ele foi afastado e se fez teste em toda a sua equipe. No dia 25 de maio, foi registrado o primeiro caso da doença entre os detentos.
*Usamos nome fictício para preservar a identidade dos ex-detentos e de familiares dos presos.