O número de pessoas que adquiriram armas de fogo no Brasil aumentou em praticamente 200% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano passado. As vendas saltaram de 24.663, em 2019, para 73.985, em 2020. Os dados são do Sistema Nacional de Armas, da Polícia Federal.
O significativo aumento no número de pessoas que compraram uma arma de fogo oficialmente no país reflete a flexibilização da lei da posse de armas, por meio de decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em janeiro de 2019, pouco tempo depois de assumir o cargo, Bolsonaro flexibiizou as regras para as pessoas que quisessem ter uma arma em casa ou no trabalho.
O aumento de 200% representou uma quebra nos padrões observados nos últimos anos. De 2017 a 2019, os números da PF mostraram um aumento médio de, aproximadamente, 1.200 armas ao ano. Porém, do ano passado para este ano, este número saltou para 49.322. Veja na sequência a evolução das compras desde 2015:
Das 73.985 armas comercializadas entre janeiro e junho de 2020, quase 62%, ou seja, 45.733, foram compradas por cidadãos comuns.
Órgãos públicos não militares compraram 17.111 armamentos, o que dá 23% do total. Já servidores públicos autorizados a portar armas pessoais por causa do potencial risco, como procuradores, promotores e juízes, adquiriram 8.707 do total, equivalente a 11%.
Vale lembrar: Posse é diferente de porte. A flexibilização é da posse de arma, que permite a pessoa ter uma arma em sua residência ou no trabalho, desde que comprovada a necessidade. Já o porte permite a pessoa carregar o armamento consigo a todos os locais, desde que respeitando as regras de segurança.
Bancada da bala
Historicamente, a chamada bancada da bala, grupo parlamentar favorável à flexibilização e ao armamento da população, sempre apoiou leis e atos favoráveis ao tema. A deputada federal por São Paulo Katia Sastre (PL-SP) é membro da bancada no Congresso Nacional e acredita que a população deve ser armada por conta alta criminalidade. Além disso, ela diz que, tanto posse quanto porte de arma, devem ser flexibilizados.
“O cidadão de bem precisa ter o direito de possuir uma arma. Estamos reféns da criminalidade e, mesmo com todo o empenho dos profissionais de segurança pública, os bandidos continuam tirando a vida de nossos entes queridos. Carregar uma arma é sinal de amor, de cuidado, de carinho com quem mais amamos”, diz a deputada.
Ela acredita que os decretos de flexibilização do presidente estão no caminho certo. “Ainda estamos pagando a conta de governos desarmamentistas, mas, com a eleição de Bolsonaro, estamos no caminho certo. Os decretos de 2019 foram um primeiro passo para ampliar a posse”, completa.
Apesar de ser a favor, Katia Sastre acredita que armar a população não resolve o problema completamente, mas, pelo menos, dá autonomia para o cidadão se defender. “Armar não é a única solução. A segurança pública leva em conta uma infinidade de variantes. Mas, por outro lado, desarmar a população aumenta a insegurança: se desarmamento fosse realmente bom, não acompanharíamos uma escalada de aumento da criminalidade ano após ano no Brasil”, afirma a deputada.
Repercussão
Diversos especialistas em segurança pública e direito acreditam que armar a população não é a solução para os problemas de violência no país. “Armar a população não traz mais segurança, pelo contrário. Essa flexibilização das leis para facilitar o acesso as armas podem fazer com que as taxas de crimes violentos no Brasil voltem a subir”, argumenta Sandro Caldeira, advogado especialista em Direito Penal e Criminologia.
Caldeira argumenta que não é dever da população arcar com os custos da própria segurança. O papel de garantir a segurança pública deve ser sempre do estado. “Sustentar que o a população precisa se armar para garantir proteção para sua família e patrimônio, faz com que se jogue a questão da responsabilidade pela segurança, que deveria ser pública, nas mãos do cidadão. E isso é equivocado e perigoso”, diz ele.
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Já o advogado Daniel Toledo, que mora nos Estados Unidos e tem a posse de uma arma desde os 19 anos, pensa diferente. “Eu sou a favor da pessoa se armar, de ter o direito de se defender. Porém, eu acho que a maioria das pessoas não tem ideia do que é ter uma arma”, afirma.
Toledo concorda que armar a população não resolve o problema da segurança pública no país. Para ele, é preciso dar mais condições para a polícia trabalhar, como melhor remuneração e mais recursos técnicos. Mas, ele acredita que um cidadão bem preparado e consciente pode inibir a violência.
“Na questão da violência, eu acho, sim, que o cidadão de bem, armado e consciente, vai impedir que o bandido ouse tanto quanto ele ousa hoje. Ele vai saber que a pessoa está ali também armada e preparada para reagir. E ainda que não seja ela, existe no código penal a legitima defesa de terceiro. (...) Um cidadão treinado, consciente e armado pode ajudar sim na diminuição da criminalidade”, afirma Toledo.
Apesar dos pensamentos diferentes quanto ao armamento, tanto Toledo quanto Caldeira pensam que melhorar as condições de trabalho da Polícia Militar seria um caminho viável para diminuir a violência.
“O investimento em Segurança pública passa por uma melhora na infraestrutura das Polícias Civil e Militar, com oferecimento de qualidade de condições de trabalho, melhor remuneração, preparo constante (operacional e psicológico dos agentes). A população precisa ver as polícias como aliadas, e esse processo de confiança precisa ser resgatado ou construído”, afirma Sandro Caldeira.
A deputada Katia Sastre acredita, porém, que mesmo melhorando a polícia, é preciso também dar a oportunidade para a população possuir armas. “Precisamos caminhar nestes dois sentidos: valorizar a Polícia Militar, investir nela e armar a população. Uma coisa complementa a outra”, diz a deputada.
“Eu sou uma especialista com mais de 20 anos de experiência policial. Neste tempo constatei que um cidadão armado e preparado cobre os gargalos da segurança pública”, complementa.
Efeito Bolsonaro
As falas do presidente, desde a campanha eleitoral, reforçam o posicionamento em favor das leis de flexibilização para a posse e porte de arma. Por conta disso, o aumento no número de vendas foi visível, graças a um discurso legitimador pode estimular as pessoas a ter o equipamento.
“Não podemos negar que a flexibilização da posse e do porte de armas é uma bandeira de Bolsonaro desde a campanha eleitoral. Ele se mantém firme em suas convicções, o que acaba influenciando parte da população na aquisição de armas”, diz o advogado Sandro Caldeira.
A deputada Katia Sastre apoia as falas do presidente desde a campanha eleitoral. Ela, inclusive, crê que as falas do vídeo da reunião ministerial, do dia 22 de abril, foram acertadas. “Apoio todas essas falas do Bolsonaro, inclusive a proferida na reunião ministerial de abril, no Palácio do Planalto, que teve o sigilo quebrado, em que o presidente diz que o ‘povo armado jamais será escravizado’ e defende a ampliação do limite de munição para o cidadão.
Daniel Toledo também vê Bolsonaro como um agente estimulante da população, mas ressalta que é papel do mandatário alertar para as consequências de se ter uma arma.
“Eu acho que ele está estimulando as pessoas a adquirirem armas com certeza absoluta e, até certo ponto, eu acredito que isso não teria nenhum problema. Mas a população não está acostumada em ver a consequência. (...) Eu particularmente acho que deve se armar a população, mas o presidente deve ser o primeiro a dizer quais são as consequências dela se armar”, afirma o advogado.