Garoto de 14 anos, João Pedro Mattos Pinto, foi morto em casa durante operação policial.
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Garoto de 14 anos, João Pedro Mattos Pinto, foi morto em casa durante operação policial.

A investigação do homicídio do adolescente João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, apresenta uma série de falhas em procedimentos que comprometeram a perícia , de acordo com especialistas.

O jornal Extra teve acesso ao inquérito que investiga o crime e consultou pesquisadores e peritos para enumerar os erros — que incluem evidências obtidas , manuseadas e transportadas de forma errada, falta de preservação da cena do crime, acesso dos investigados a provas do inquérito e falhas na própria perícia. A investigação do caso João Pedro , ainda em andamento, está sob a responsabilidade da Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSGI).

O jovem foi morto em 18 de maio, durante operação das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. A primeira falha ocorreu logo após João Pedro ser baleado e prejudicou a perícia da casa. Os policiais civis da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) que atiraram dentro do imóvel não só deixaram de preservar o local como modificaram a cena do crime: estojos — parte da bala expelida no momento do tiro — de calibre 556, que saíram dos fuzis dos agentes, foram retirados da casa .

No laudo de local de crime , o perito Thiago Hermida notou a discrepância entre as marcas de tiros na casa e os cartuchos recolhidos: “o número de estojos coligidos à hora dos exames periciais em muito diverge dos impactos de projéteis de arma de fogo colimados por todo o cenário”.

Os estojos só “apareceram” uma semana após o crime, quando os três policiais investigados voltaram à delegacia para prestar novos esclarecimentos e entregaram 19 cartuchos 556 da marca CBC.

As regras de documentação e controle das evidências — chamadas de cadeia de custódia pelos peritos — também não foram respeitadas. O fuzil M16 calibre 556 usado pelo inspetor José Mauro Gonçalves para fazer disparos dentro da casa não foi entregue à perícia no dia do crime, mas somente uma semana depois, junto com os estojos.

"O desrespeito dessas regras básicas causam um prejuízo enorme à investigação. Os estojos no local do crime poderiam determinar a localização exata dos atiradores. Já a cadeia de custódia traz credibilidade à investigação. Hoje não há a menor garantia de que o fuzil apreendido estava, de fato, na cena", afirma o perito e professor de Medicina Legal da Uerj Nelson Massini.

Investigado acessou provas

Outro erro na investigação, apontado por peritos ouvidos pelo EXTRA, é o acesso a provas do inquérito por um dos investigados. No dia do crime, o inspetor Gonçalves — que é justamente o que mais fez disparos dentro da casa onde o menino foi baleado — foi nomeado pelo delegado Allan Duarte, responsável pelo inquérito, depositário de três granadas que os policiais afirmam ter encontrado no local. Os explosivos foram apresentados pelos agentes da Core como provas de que havia traficantes na casa onde João Pedro foi morto. Foi o inspetor quem transportou os explosivos até a perícia.

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"No sistema de Justiça Criminal americano, por exemplo, um suspeito ser responsável pelo transporte das provas invalidaria essas provas. O que acontece no Rio é que os policiais conhecem as regras da perícia, mas há uma negação ativa do protocolo, um desprezo às normas", afirma a antropóloga Flávia Medeiros, que tem diversas pesquisas publicadas sobre perícia criminal.

A perícia feita nas três granadas é contestada até dentro da Polícia Civil . O órgão que fez a análise dos explosivos foi o Esquadrão Antibombas (EAB), que integra a estrutura da Core — unidade onde os investigados são lotados. Quem assina o laudo não são peritos profissionais, como estabelece o Código de Processo Penal, mas dois inspetores.

O Sindicato dos Peritos Oficiais do Rio (Sindperj) criticou, em nota, o procedimento. “As perícias em explosivos são feitas por profissionais capacitados em explosivos, mas não peritos oficiais, como determina a legislação”. Segundo o sindicato, “um exame pericial não se resume a responder a natureza do material, mas também quais os componentes utilizados, quem pode ter manipulado o mesmo, entre outras análises, que são de competência de peritos oficiais”. Segundo peritos consultados pelo Extra, o laudo que faz parte do inquérito se limita a descrever os explosivos.

Estojos fora do laudo

Uma descoberta feita por parentes de João Pedro colocou dúvidas sobre a perícia feita na cena do crime. Um mês após o homicídio, a família do jovem encontrou, no quintal da casa, oito estojos de fuzil calibre 5.56, que não foram achados no dia do crime e não são citados no laudo da perícia de local. A Defensoria Pública, que representa a família do adolescente, enviou o material ao Ministério Público e solicitou a comparação balística dos cartuchos com as armas dos policiais.

Atualmente, segundo o Sindperj, o Rio é o único estado do país em que a perícia não é dirigida por um perito: no estado, os peritos são chefiados por um delegado e a perícia está subordinada à Polícia Civil. Em 18 estados do país, a perícia é autônoma.

A professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Flavia Medeiros defende que a autonomia da perícia é fundamental para investigações imparciais: “Para que a perícia funcione dentro dos moldes de uma política pública que fortaleça suas atribuições técnico-científicas, é fundamental que esta deixe de ser um órgão policial e passe a ser um serviço público complementar às forças policiais na realização de perícias em casos de morte, permitindo a elaboração de laudos independentes”, escreveu Medeiros no relatório “Políticas públicas de Perícia Criminal na garantia dos direitos humanos”, que será lançado pelo Instituto Vladimir Herzog na próxima terça-feira.

Detalhes do caso

Os defensores públicos que representam os parentes do adolescente defendem que, como policiais civis são investigados pelo crime, o inquérito deve ser conduzido por um órgão independente. Por isso, os amigos de João Pedro que testemunharam o crime foram apresentados ao Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) do MP do Rio, que abriu um procedimento paralelo à investigação da DH.

A Defensoria também pediu ao MP que a Polícia Federal faça um novo confronto balístico entre o projétil encontrado no corpo de João Pedro e as armas dos policiais. O primeiro exame, feito, pela Polícia Civil, teve resultado inconclusivo.

Questionada sobre as falhas observadas, a Polícia Civil alegou que “laudos de necropsia e de local foram anexados ao inquérito”, e informou que a DH “aguarda data para realizar a reprodução simulada”.

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