Primeira indígena a testar positivo para o novo coronavírus, a agente de saúde Suzane da Silva Pereira, de 20 anos, diz não ver a hora de voltar ao trabalho para ajudar a sua comunidade,localizada no município de Santo Antônio do Içá, no sudoeste do Amazonas. Ela cumpre a segunda semana de isolamento junto à família composta por pai, mãe, marido e sua filha Yara, de 1 ano e 10 meses, todos da etnia Kokama, moradores da Aldeia São José. Ela contou ao jornal O Globo , por telefone, como tem sido a sua rotina desde que descobriu a doença, do medo de infectar seus familiares e lamenta o preconceito de algumas pessoa.
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"Como é uma doença que marcou o Brasil e o mundo, por ser altamente contagiosa, a gente percebe que algumas pessoas ficam com medo até de olhar. Tem gente que não conversa nem que seja à distância. Senti preconceito de algumas delas que não mandaram mensagem, outras que passaram perto de casa e olharam com aquela cara assim de como se eu fosse alguma coisa ruim", afirma.
Suzane, no entanto, relata que recebeu muito mais mensagens de consolo e de apoio de amigos e colegas de trabalho, principalmente de sua família. "Minha família inteira está me ajudando, principalmente do lado psicológico, já que a notícia nao é nada boa e isso poderia afetar meu sistema imunológico, do qual dependo para melhorar mais. Mas sempre tem aquela pessoa que está para derrubar a gente, né? Falando besteira a respeito das pessoas", conta.
A agente de saúde recorda que passou a sentir fortes dores de cabeça durante seu trabalho, em contato com médico Matheus Feitosa, um dos quatro contaminados até o momento em Santo Antônio do Icá, munícipio com cerca de 25 mil habitantes. Há ainda outros 54 casos suspeitos aguardando resultando. Outros 50 já foram descartados.
Após o médico ter dado positivo para a Covid-19 , todos os 1.658 moradores da Aldeia São José e outros 800 da aldeia Lago Grande, da etnia Tikuna , entraram em quarentena.
"Achei que as dores de cabeça eram de caminhar sob o sol forte. Não esperava isso, esperava o resultado negativo nos primeiros dias de quarentena. Mas depois fui tendo sintomas que me deixaram muito nervosa e comecei a pensar que poderia dar positivo".
Ela afirma ter perdido o olfato, o apetite e apresentado tosse seca, sintomas caracterítiscos do novo coronavírus. "Mas pensava que era porque meu esposo já estava gripado, de gripe normal, minha filha também, então achei que poderia pegar só essa, mas não esperava dar positivo para coronavírus. Ainda estou sem olfato e paladar, mas aos poucos sinto que melhoro", explica acrescentando que já consegue realizar alguns leves exercícios físicos.
Em seu trabalho de campo, Suzane atende três etnias: Kokama,Tikuna e Kaixana. Questionada se está preocupada com seu contato com algum paciente durante o período que que estava assintomática, ela se diz segura. "Antes de eu saber o resultado do meu exame, antes de entrar em quarentena, com o resultado do Matheus (médico), eu fui para a minha área , mas usando os meus EPIs (equipamentos de proteção individual), máscara e luva, fazer as visitas, teve vacinação para os idosos, sempre mantendo distância, conforme a orientação", diz.
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"Gripezinha não é mesmo"
A kokama elogiou o trabalho da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) na região. Nesses dias sem poder sair de casa, a prefeitura e os agentes do Dsei têm dado assistência à família de Suzane.
"Tem gente falando que é uma "gripezinha" , mas não é mesmo. É sim altamente contagiosa e atinge direto as pessoas que são mais vulneráveis. Uma doença que mata jovens também. Por isso estamos sempre discutindo como proteger as nossas aldeias e os moradores da comunidade. A boca de ferro (alto falantes) está sempre passando informações, acredito que todos estão orientados de como se prevenir".
De acordo com Suzane, a solidariedade dos colegas e a ajuda da prefeitura têm feito a diferença. "Aqui perto de casa tem uma escola, os técnicos e enfermeiros estão morando nela por enquanto para monitorar a comunidade e sempre perguntam se está faltando alguma coisa, alguma comida, não saímos para nada".
Perguntada se tinha assistido ao pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro que chamou de "gripezinha" a pandemia de coronavírus , Suzane diz ter achado de mau gosto. "Ele (Bolsonaro) tem que ver que milhares de pessoas no mundo estão morrendo por causa deste vírus.Achei uma completa falta de responsabilidade falar algo que está deixando várias pessoas em pânico devido à pandemia. Não estamos lidando com uma gripezinha, isso não existe".
Fim do pesadelo
Suzane admite não saber quando poderá voltar ao trabalho, pois o resultado dos testes de seus familiares só ficam prontos nesta segunda-feira. Ela diz que, antes de ter a confirmação de que estava infectadas, sua mãe se queixou de perda de olfato e dores de cabeça.
"Minha família está bem hoje. Além deles, só tive contato com pacientes e meus colegas da unidade de saúde. Mas todos deram negativo", afirma aliviada. Ela acredita que se der negativo os resultados de seus familiares poderá voltar a campo em uma semana.
"Eu me identifiquei muito com a área da saúde e só o que importa é se alguém vai ficar falando alguma coisa, pois me apeguei ao meu trabalho e não quero me afastar por muito tempo dele. Não fiquei em isolamento individual antes porque eu já tinha tido contato com minha família, conversava, abraçava, não dava tempo".
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Caso o contrário, Suzane afirma vai continuar a respeitar as orientações do médicos, sem dar bola para qualquer preconceito. "Estou de cabeça erguida e tenho a consciência limpa de que eu nao cometi nada por querer. Os profissionais de saúde sabem que eu tive responsabilidade antes de receber o resultado. Vou lutar e me recuperar bem. Só espero que a comunidade também entenda, me aceite e eu continue a trabalhar normalmente , sem sofrer nenhum preconceito. Eu não quis ficar dessa maneira e quero voltar logo para poder ajudar a minha equipe e ver esse pesadelo terminar logo".