A escalada de violência entre Estados Unidos e Irã causou tensão em todos os cantos do mundo, especialmente pelo temor de que o conflito atinja proporções maiores. No Brasil, quando correu a notícia da morte do general Qassem Soleimani durante um ataque norte-americano no Iraque, usuários das redes sociais não demoraram a especular sobre uma Terceira Guerra Mundial , ainda que, no caso de muitos, em tom de brincadeira.
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Os sinais de apoio aos Estados Unidos emitidos pelo presidente Jair Bolsonaro estão entre as causas dessa apreensão, misturada a doses de humor, que atingiu muitos brasileiros, principalmente os homens. Isso porque o serviço militar é obrigatório no país e grande parte deles, na condição de reservista, está à disposição para engrossar o contingente em momentos de urgência.
E se, de fato, Bolsonaro decidisse declarar guerra ao lado dos norte-americanos? Um cidadão comum teria que largar todas as suas obrigações para imediatamente atender ao chamado da pátria ou existe algum jeito de escapar da farda?
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Todo reservista pode ser convocado
Segundo a Lei do Serviço Militar , desenvolvida durante a administração de Getúlio Vargas e em vigor desde 1939, todo brasileiro maior de 18 anos – com idade limite que seria determinada pelo governo de acordo com as circunstâncias – pode ser convocado para o combate, assim que declarado o chamado “ estado de guerra ”. Não é certo, entretanto, que os reservistas sejam chamados de imediato. O mais provável, aliás, é que eles sequer sejam acionados, ainda mais levando em conta as dinâmicas das batalhas do mundo moderno.
Como é o processo para o Brasil entrar em estado de guerra?
O estado de guerra modifica todo o funcionamento de um país e pressupõe regras diferentes das vigentes em tempos de paz. Antes de tudo, o presidente da República precisa declarar a guerra, sob a aprovação do Congresso Nacional, conforme o determinado pelo artigo 84 da Constituição. A partir daí, entra em funcionamento o Sistema de Mobilização Nacional , uma espécie de gabinete de crise, formado por ministérios, para determinar medidas emergenciais em todos os campos da sociedade.
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“O Sistema de Mobilização Nacional está regrado por uma lei de 2007 e um decreto de 2008, ambos do governo Lula. É basicamente uma união de vários ministérios capitaneados pela Presidência da República: Agricultura, Fazenda, Defesa, etc. Isso afeta não só a convocação do eventual contingente para se lutar, como também muda a lógica econômica do país, porque ela passa a funcionar em economia de guerra, com toda a indústria mobilizada”, explica Fernando Fabiani Capano, presidente da Comissão de Direito Militar da OAB-SP.
Em que situação o reservista pode ser convocado?
Diante do hipotético cenário de guerra, os critérios para convocação de reservistas seriam definidos pelos integrantes do Sistema de Mobilização Nacional, com a Lei do Serviço Militar como referência. O próprio texto de 1939 deixa essa questão em aberto, determinando apenas uma escala de ordem de convocação:
1. Primeiro serão chamados os profissionais que fazem parte do sistema militar, sejam eles integrantes das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) ou das forças auxiliares, como a Polícia Militar, por exemplo.
2. Depois, se necessário, o governo convocará também reservistas com formação militar, aqueles que participaram do Tiro de Guerra e tiveram treinamento básico por pelo menos seis meses.
3. Em último caso, seria feita a convocação de reservistas sem treinamento militar. Esses são os civis que receberam a carteira de reservista e foram dispensados. Cidadãos de municípios não tributários, por exemplo, costumam ser liberados, assim como homens residentes em cidades com excesso de contingente.
Já a faixa etária, em todos os casos citados, seria de algo entre 21 e 45 anos.
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Em tempos de guerra, quem decide sobre você é a nação
Em tempos de paz, um cidadão pode apelar para a objeção de consciência, direito constitucional que garante que toda pessoa não seja obrigada a agir contra a própria consciência e contra princípios religiosos. Nesses casos, os objetores costumar ser redirecionados a serviços não relacionados ao combate, como ações humanitárias.
Normalmente, também é possível conseguir a dispensa alegando ser o único responsável pelo sustento da família. Com o país em guerra, no entanto, essas regras mudariam, também de acordo com as decisões que seriam tomadas pelo Sistema de Mobilização Nacional.
“A lógica se inverte. Em tempos de paz você leva em consideração o desejo do indivíduo versus o desejo do poder público. Em tempos de guerra, a preponderância passa a ser da nação e não do indivíduo. Nunca tivemos uma possibilidade dessas nas últimas seis sete décadas. Eu não sei se nós teríamos possibilidade de alegar objeção de consciência em tempos de guerra”, pondera Capano.
“Muito provavelmente, haveria um regramento, partindo desse gabinete de gestão da guerra, em que eles colocariam quais os critérios para convocação e eventual dispensa. Esse critério parte do gabinete da guerra e não do indivíduo.”, completa.
Mulher também pode ser convocada
Na época do desenvolvimento da Lei do Serviço Militar, em 1939, mulheres sequer podiam servir as Forças Armadas voluntariamente, o que é permitido hoje em dia. Já o serviço obrigatório jamais valeu para pessoas do sexo feminino. Ainda assim, em caso de guerra, mulheres civis poderiam ser chamadas para cumprir outros tipos de função.
“Haveria um regramento novo que substituiria esse regramento de 39. Pelo regramento de 39 elas seriam convocadas pelo serviço militar impróprio, que são atividades de apoio dentro da indústria ou do sistema médico. Áreas do profissional de saúde, aliás, teriam com todo certeza um regramento distinto”, explica Capano.
Reservista convocado vai à guerra ou à prisão
Dentro do estado de guerra, o Código Penal Militar passa a valer para civis. Alguns crimes cometidos neste contexto, inclusive, podem ser punidos com pena de morte por fuzilamento, segundo o próprio código e o inciso 47 da constituição. A punição seria avaliada em casos de traição, covardia, incitar a desobediência contra a hierarquia militar, desertar o posto na frente do inimigo, entre outros.
Recusar-se a atender à convocação para participar da guerra não entra na lista da pena de morte. O castigo, nesse caso, seria passar um período na prisão, conforme o explicado por Capano.
“Não seria uma insubordinação, seria não atender a convocação. Todos esses crimes, essas condutas, são capitanias do código penal militar. Ele vigoraria em detrimento do próprio código penal, em que não existe essa figura de crime militar. Nesse contexto, os convocados que resistirem podem ser punidos com o cárcere”, explicou o advogado.
Qual chance de reservistas serem convocados para uma guerra?
Apesar da Lei do Serviço Militar deixar claro que os reservistas estão sujeitos ao chamado para defender o país em tempos de guerra , a possibilidade de que isso seja necessário é baixa. Segundo Capano, o modus operandi das batalhas dos tempos modernos não exige tantos homens quanto exigia antigamente, de maneira que o mais sensato é apostar que, no caso de uma guerra, o contingente do sistema militar bastaria.
“Em termos de Segunda Guerra Mundial, por incrível que pareça, meio milhões de pessoas não era nada. Só na Alemanha, tivemos divisões que tinha mais de um milhão. Hoje em dia, não se parte de pressuposto de guerra se baseando em número de pessoas à disposição. Você não precisa de pessoas em campo aberto para conquistar território, basta você contratar hackers, sabotar todo o sistema do inimigo. Então, você manda uma tropa de elite para tomar pontos centrais e o resto você joga com drones, como aconteceu agora na história do Irã com os Estados Unidos. Não tiveram que disponibilizar sequer um piloto de avião”, avalia Capano.
“Hoje em dia, eu não acredito, sinceramente, que exista menor possibilidade de que a gente tenha uma convocação gigantesca que ultrapassasse o número de pessoas que já estão no sistema militar. Não é porque não há essa possibilidade, porque até há. A questão é que não se lutam mais guerras desse tipo”, completa.
Um levantamento feito pelo site especializado Global Fire Power coloca o Brasil como a 13ª maior força militar do mundo, até porque a pesquisa leva em conta o material humano disponível, inclusive os reservistas. Esse total de pessoas que podem ser utilizadas em uma guerra é de 1.674.500. Entre eles, 1.340.000 são reservistas e 334.500 são militares na ativa.