Sábado é dia de visita. Há pouco mais de um ano, Aline* vai todo fim de semana até a unidade Nogueira da Fundação Casa, na rodovia Raposo Tavares, para visitar o filho. Depois de ir por três sábados consecutivos, resolveu dar uma pausa, mas ficou sabendo pelo Conselho Tutelar que Lucas* havia sido agredido. Já é a segunda vez desde que começou a cumprir a medida socioeducativa.
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No dia 23 de setembro, o chamado “Choquinho”, espécie de Tropa de Choque que atua dentro da Fundação Casa , teria entrado nas celas enquanto os internos dormiam, acordando-os com tapas e socos. “Entraram de 4 em 4, quebrando todo mundo. Meu filho levou muito tapa na cara, soco. Ano passado também teve isso e ele ficou muito machucado, cheio de hematoma”, contou Aline.
A mãe acredita que o diretor da unidade estava ciente de que o Choque iria entrar nas celas. De acordo com seu filho, os meninos estariam passando a tarde trancados durante toda aquela semana.
É fora do normal. Parece que a gente fica mais revoltado”
Antes Febem , a instituição de detenção de menores infratores ganhou repercussão mundial no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 em função de inúmeros casos de agressões e rebeliões. Foram 80 apenas em 2003. Três anos depois, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou a mudança de nome para Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), com uma proposta de reformulação social na política da instituição.
Mais de dez anos depois da mudança para Fundação Casa, as violações ainda fazem parte da rotina. Casos de tortura, agressão e violência psicológica são comuns. Ainda que a situação geral tenha melhorado, o quadro atual ainda compromete o objetivo maior da medida socioeducativa: a ressocialização. Para o defensor público Daniel Palotti, “é importante reconhecer que o sistema melhorou muito, mas ainda não estamos em um ponto em que dê para considerar que a situação está boa”.
Educação e ressocialização são obrigação
Diferente do sistema penitenciário, na Fundação Casa a educação precisa estar presente. Por obrigação da lei, de segunda a sexta os jovens têm aulas regulares da escola e de cursos profissionalizantes, além de atividades de arte e cultura. Eles se levantam por volta das 6h e só voltam para a cama após as 21h. Além disso, há um trabalho multidisciplinar com acompanhamento psicológico para garantir a ressocialização do adolescente.
A lógica pedagógica, no entanto, é muitas vezes sobreposta pela punitivista. Com inúmeros casos de condições estruturais inadequadas e agressões, é quase impossível garantir o aprendizado. “Não é um ambiente pedagógico, é totalmente punitivo”, afirma uma funcionária ligada à Fundação, que preferiu não se identificar por medo de represálias.
“Os moleques de lá são suave. Mas pensei que a educação e as coisas lá dentro eram melhores. É fora do normal. Parece que a gente fica mais revoltado”, conta Victor*, de 19 anos, ex-interno da unidade Nogueira, na Raposo Tavares. O adolescente relata que já foi agredido pela Tropa de Choque e também presenciou violência em outras ocasiões, além de já ter sido xingado e ofendido por funcionários, diretora e coordenadora do centro.
Estado de olhos fechados para as agressões
Gledson Deziatto, conselheiro tutelar que fiscaliza as unidades da Fundação em São Paulo, afirma que, durante as visitas, é comum encontrar internos com hematomas pelo corpo. Denúncias de agressão por parte dos agentes de segurança contra os internos são frequentes, normalmente realizadas por outros funcionários.
“O Estado não toma providências em relação à isso. É sempre uma desculpa”, conta. Deziatto relata que, questionados sobre os ocorridos, a Fundação e a Justiça costumam dizer que os internos se machucam por conta própria, que caíram da cama ou bateram a cabeça em algum lugar.
Ao iG , a Fundação Casa afirmou em nota que "todo comportamento violento é repudiado, apurado e combatido por meio da Corregedoria Geral da Fundação CASA". A instituição afirma também que "mantém o Comitê Institucional de Direitos Humanos e Enfrentamento à Violência, com foco na formação dos funcionários e discussão dos direitos humanos entre os adolescentes, assim como enfrentar situações de violência que não são admitidas no atendimento socioeducativo".
O conselheiro tutelar foi acionado no caso relatado por Aline. A administração alegou que o Choque entrou porque os meninos estavam portando lâminas e outros objetos proibidos no local. “Mas como entra isso lá? A revista dos pais é vexatória, todos tem que ficar nus. Então por eles não entra. Quem leva?”, questiona. “Eles estão pagando pelo que fizeram, mas se você quer ressocializar, não é batendo, não é agredindo o menino”, opina.
De acordo com o relatório “E aí eu voltei para o corre”, feito pelo Instituto Sou da Paz em 2018, 25% dos adolescentes entrevistados reportaram que foram agredidos dentro da Fundação Casa ou em centros de internação provisória. “É a herança da antiga Febem, por mais que esforços tenham sido feitos para proteger a integridade física dos adolescentes, a violência ainda continua presente”, diz Stephanie Morin, gerente de pesquisas da entidade.
Funcionários vinculados à instituição também contam já terem presenciado cenas de violência dentro das unidades, vindas principalmente dos agentes de segurança. “A Fundação é muito pautada por pessoas que trabalhavam no sistema penal. Muitas vezes, o agente socioeducativo acha que é carcereiro ou policial e até segue uma cartilha da Polícia Militar”, conta uma fonte que preferiu não se identificar.
“Acontecem coisas como, por exemplo, o agente passar e dar um tapa na nuca do adolescente durante a aula. Praticamente todos os centros têm violências de todas as ordens. A violência física continua acontecendo”, relata.
Na unidade Jacareí , região metropolitana do Vale do Paraíba (SP), internos fizeram um abaixo-assinado denunciando as más condições e violações de direitos na instituição. O documento – ao qual o iG teve acesso – protocolado no Ministério Público no dia 6 de junho, tem a assinatura de 29 adolescentes e pede que as regras previstas pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) sejam respeitadas.
No abaixo-assinado, os internos afirmam que o artigo 17 do estatuto – respeito à integridade física, moral e psíquica – está sendo violado. Além disso, relatam que a diretora da unidade, Roberta Henrique, saberia e inclusive já teria presenciado agressões físicas contra os meninos.
“Os adolescentes aprenderam sobre o ECA, antes achavam que era normal apanhar. O menino vai para a aula em um ambiente hostilizado, porque ele apanhou a noite. Não tem como ele aprender assim”, diz um funcionário da unidade Jacareí, que também preferiu não se identificar. “O funcionário é obrigado a seguir esse modelo, patrocinado pela gestão. Ele aprende errado e é incentivado todos os dias”, completa.
Ele conta ainda que, várias vezes, fez denúncias sobre violações de direitos na Fundação, mas a administração da unidade as coloca para baixo do tapete. “Os coordenadores são defensores das podridões para não perderem os cargos e manipulam os agentes de apoio e adolescentes”, relata. “A diretora é autoritária e ameaça funcionários para não denunciarem a Casa Jacareí, os supervisores e toda a divisão regional sabem das atrocidades e encobrem a diretora”.
Após o abaixo-assinado ser protocolado, a diretora Roberta Henrique suspendeu a oficina que ensinava os adolescentes sobre o ECA, cidadania e direitos humanos. “Ela reprimiu, puniu e perseguiu funcionários. Eles gerenciam essa fundação como se fosse uma cadeia”, relata.
Procurada, Roberta Henrique encaminhou a reportagem para a assessoria geral da Fundação Casa, que não se pronunciou sobre o caso específico da diretora. A Presidência da Fundação Casa disse em nota que "quando constatados abusos cometidos pelos servidores, a Corregedoria Geral da Instituição investiga, em sindicância, e pune, por meio de processo administrativo, podendo chegar à demissão por justa causa".
As denúncias, porém, não param em Jacareí. Em junho, funcionários da unidade Brás denunciaram que os meninos estavam sendo medicados quando apresentavam resistência às regras da instituição. Pelo menos 35 adolescentes teriam sido dopados para facilitar o controle. De acordo com o documento, os medicamentos estavam sendo entregues aos internos pelos agentes de apoio ou coordenadores, e não pela enfermagem.
Segundo a Fundação Casa, todos os casos citados estão sendo investigados pela Corregedoria Geral.
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Roupa todo dia e comida dentro do prazo de validade são raridades
Para o defensor Daniel Palotti, a estrutura física da Fundação Casa não é ruim, principalmente em comparação com o que se costuma ver no sistema prisional e no resto do País. Rachaduras, vazamentos e salas muito quentes, porém, são comuns. “E não são quartos, são celas. As condições têm melhorado, mas o espaço ainda não é o ideal”, diz o conselheiro tutelar Gledson Deziatto.
Uma fonte que preferiu não se identificar conta que, em várias unidades, os adolescentes trocam de roupa uma vez por mês, muitas vezes não tem papel higiênico ou absorvente e são obrigados a comer alimentos estragados. Além disso, por conta da superlotação, às vezes até três internos têm que dormir no mesmo colchão. “As roupas vem manchadas, rasgadas, falta desodorante e às vezes comida”, confirma o ex-detento Victor*.
Outro funcionário afirma que, especificamente na unidade Jacareí, os adolescentes já chegaram a ficar dois ou três meses sem desodorante, com camisetas e toalhas sujas. Ele afirma que os dormitórios são insalubres e alguns alagam quando chove.
A reportagem visitou as unidades do Brás e da Vila Maria, centro e zona norte de São Paulo, respectivamente. Diferente da maioria das Casas, a primeira tem uma estrutura vertical. Os quartos, apesar de abrigarem cerca de 20 adolescentes cada, são limpos e bem conservados. Algumas salas de aula, no entanto, são muito apertadas.
Já na unidade da Vila Maria, as condições são diferentes. As salas de aula não têm ventilação, têm cadeiras de plástico improvisadas, muitas delas quebradas e alguns banheiros não tinham papel higiênico ou chuveiro, apenas um cano saindo da parede. Além disso, a biblioteca tem uma quantidade ínfima de livros. “Acontecem barbaridades lá, a estrutura está caindo aos pedaços”, afirma uma fonte ouvida pelo iG.
“O Brás tem instalações minimamente conservadas. Além disso, tem uma segurança forte. Ali fica uma parte da equipe de segurança fixa, é difícil ouvir falar de rebelião, por exemplo. Outras unidades também têm, mas são poucas como o Brás”, afirma uma funcionária ligada a instituição.
A nota da instituição diz que "o atendimento socioeducativo na Fundação Casa pressupõe a manutenção da vida e do bem-estar dos jovens, em todos os aspectos, com fornecimento de insumos necessários (alimentação de qualidade, roupas, materiais de higiene, entre outros) e troca periódica e lavagem de todas as roupas".
A Fundação afirma ainda que "as carteiras utilizadas são de material padronizado e em conformidade às normas técnicas vigentes, que atende às necessidades pedagógicas e de multiuso. Na existência de carteiras danificadas, são paulatinamente repostas." "O CASA São Paulo possui ambiente salubre e arejado para a realização das atividades pedagógicas", completa o posicionamento da instituição.
Represálias aos ‘dedo-duros’
Depois de receber as denúncias, o Conselho Tutelar tem a função de encaminhá-las para os órgãos responsáveis, como Ministério Público, defensoria ou Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana). No entanto, muitas vezes, os relatos não chegam nem a sair de dentro da Fundação.
De acordo com Gledson Deziatto, é comum que os agentes façam ameaças aos internos ‘dedo-duros’ com o CAD (Comissão de Avaliação Disciplinar), uma espécie de advertência que pode aumentar o tempo de permanência do adolescente dentro da Fundação.
“Quando mudou de Febem para Fundação CASA, os funcionários não passaram por uma capacitação, então eles continuam com essa cultura. Partem pra cima, provocam, e ameaçam: ‘Se você falar que eu te bati, eu faço você assinar o CAD’ - o que não deixa de ser uma violência psicológica”, relata Gledson.
Na Fundação Casa de São José dos Campos, um interno foi agredido por dois funcionários no dia 16 de agosto e chegou a perder o baço e parte do pâncreas. De acordo com o presidente do Condepe, Dimitri Sales, que acompanha o caso, os agentes acertaram o adolescente com socos e chutes. Nenhuma ajuda foi oferecida e a vítima só foi encaminhada ao hospital dias depois.
O garoto foi operado às pressas para a retirada do baço e parte do pâncreas e, atualmente, está em regime domiciliar para recuperação. A família só ficou sabendo sobre o ocorrido no dia seguinte à cirurgia. Outros internos foram agredidos em represália às demissões dos servidores envolvidos e da diretora do centro, contou Salles.
Neste caso a Presidência da Fundação Casa afastou cautelarmente seis servidores acusados. A Corregedoria Geral da Instituição abriu uma sindicância para investigar o ocorrido e, em seguida, foi instaurado processo administrativo disciplinar (PAD).
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais." – Artigo 17 do ECA
Em uma das denúncias anônimas ao Disque Direitos Humanos em abril sobre a Casa Raposo Tavares, relatou-se que as agressões começaram a acontecer com mais frequência desde dezembro de 2018. “Os agentes ameaçam agredir, ficam provocando para que os adolescentes revidem e seja aplicada a medida do CAD. Quando ocorrem as ameaças, alguns são colocados de castigo em salas isoladas, ficam dormindo no chão de três a cinco dias. Os adolescentes ficam em formação, que seria ficar de joelho no chão até o funcionário determinar que podem sair”.
Em outra, apresentada no Ministério Público de Jacareí, um funcionário relata que, em dezembro de 2018, um interno agrediu um funcionário identificado como Luciano e foi contido por agentes. Depois disso, “o adolescente chegou no hall dos dormitórios segurado e, após algum tempo, agentes entraram junto com o encarregado técnico, que deferiu um soco no rosto do adolescente e repetiu os chutes até o mesmo cair e, na sequência, o encarregado pisou em seu rosto com requinte de crueldade”.
Agentes de apoio também sofrem com ameaças, perseguição e agressões
Tumultos e rebeliões organizadas pelos internos também continuam acontecendo, apesar de em menor quantidade e de não repercutirem como na época da Febem. Na unidade Vila Maria, diversos agentes saíram machucados de um tumulto no dia 26 de setembro.
“Os meninos atearam fogo, tomaram a chave de um servidor, deram um mata-leão nele e invadiram o outro módulo, onde pegaram todos os servidores. Eles estão machucados e foram encaminhados para a Santa Casa”, relatou um agente socioeducativo do local, que também preferiu não se identificar.
A Fundação Casa, porém, nega que haja registro de ocorrência na data que tenha resultado em servidores feridos.
Um agente da unidade Diadema, no ABC Paulista, afirma que diversas vezes os funcionários são alvos de perseguição por denunciarem o não cumprimento do ECA, Sinase e regimento interno da instituição. Segundo ele, caso cobrem a diretoria, são alvo do P.A, espécie de advertência que, quando acumulada, pode levar à demissão.
Índice de reincidência volta a crescer
“Hoje a gente sabe que a Fundação Casa é uma cadeia. Tudo não passa de máscara. Onde deveria ressocializar e ajudar os adolescentes, ter todo um cuidado, infelizmente faz com que eles voltem, o nível de reincidência é muito grande”, diz Pedro*, de 20 anos, ex-interno da unidade Jacareí. “Como alguém estuda em um lugar desse? Como alguém aprende em um lugar desse?”, resume uma das fontes.
Para o defensor público Daniel Palotti, o primeiro passo para que se inicie uma melhora do sistema é a redução do excesso de medidas socioeducativas de internação. Segundo ele, a lei prevê que a internação deve acontecer apenas em casos excepcionais e pelo menor tempo possível. Ele acredita que a privação de liberdade em si “já vai ser extremamente limitada em termos de integração social, porque nós estamos retirando um adolescente do convívio em sociedade e esperando que isso de alguma forma traga integração social”.
Nesse caso, a responsabilidade do problema recai sobre todos os atores envolvidos e, em especial, no sistema de Justiça. “Eu acredito que todos os envolvidos precisam aprimorar a sua atuação no sentido de combater a violência e a violação de direitos dos adolescentes, que infelizmente ainda ocorrem”, opina.
Em 2006, o último ano da Febem, o índice de reincidência dos internos era de 29% no estado de São Paulo. Com a mudança para Fundação Casa, a taxa de adolescentes que voltava a cometer crimes caiu para 16% no final de 2008, e 13% no final de 2011. Em 2019, no entanto, o índice já é de 22%, de acordo com dados fornecidos pela própria Fundação.
“Quando o adolescente sai, não tem emprego, não tem encaminhamento para o mercado de trabalho, falta acompanhamento”, opina o conselheiro tutelar Gledson. Segundo os coordenadores pedagógicos da unidade do Brás, no entanto, os adolescentes saem da Fundação com uma garantia de matrícula em um colégio da rede pública.
“Quando um adolescente é internado na Fundação Casa, na verdade se sequencia uma responsabilidade do Estado, aplicando as medidas necessárias para reintegrar esse adolescente a sociedade de forma plena e para que ele não volte a praticar o ato infracional” afirma o presidente do Condepe. “Então não é um ato de punição, é antes de tudo um ato de responsabilização do Estado”.
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Aline, indignada com ao atual cenário interno da instituição, se preocupa com a situação do filho quando chegar a hora da liberdade. “Como esse menino vai sair lá de dentro? É muito triste ver seu filho em uma situação dessa. Está certo que ele fez o que ele fez, mas é ridículo ele ser tratado dessa forma. E eu me encontro de mãos atadas, sem poder fazer absolutamente nada pelo meu próprio filho. É muito triste”.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das fontes