Txana Siã havia acabado de almoçar quando percebeu que parte da comunidade indígena em que vive estava pegando fogo, por volta de 12h30 do último dia 22. Ele e outras pessoas do Centro de Cultura Indígena Huwã Karu Yuxibu tentaram controlar o fogo, mas ele já havia se alastrado. Recorreram então aos bombeiros, mas o socorro demorou três horas para chegar. Neste tempo, cinco dos dez hectares de terra foram queimados.
A comunidade indígena Huni Kuin foi vítima de um dos mais de dois mil focos de incêndio que atingiram o Acre em agosto deste ano. Quem vive na comunidade tem apenas uma palavra para descrever o que tamanha tragédia representa para eles: dor. “A floresta é uma parte da nossa casa, é uma parte de nós. Vendo a floresta sendo queimada, a gente estava vendo uma parte da gente sendo queimada”, conta Txana Siã.
Siã é pai de um menino de 18 dias. Ver a destruição em sua terra o faz questionar qual será o futuro do pequeno. Ele também relata a dificuldade de olhar para o que costumava ser uma rica área de floresta nativa, hoje transformada em cinzas. Cada vez que olha a destruição, revive em sua mente o momento do incêndio.
Na terra, toda a área onde estavam as plantas medicinais, chamadas por eles de “medicina”, foi destruída. Parte da plantação de mandioca e banana, base da alimentação, também foi atingida. O principal problema, no entanto, é a água. Com o estrago da mangueira do açude, eles não têm mais como consegui-la e são obrigados a usar doações para comprar o necessário para a sobrevivência.
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Mais de uma semana depois, ainda há muita fuligem na região. Segundo a produtora cultural Mirna Rosário, que não é indígena, mas trabalha com a comunidade desde 2014 e é casada com o cacique Mapu Huni Kuin, as crianças estão sofrendo com doenças respiratórias. Ela mesma está rouca há dias por causa das cinzas.
Mirna vive em Rio Branco, mas visitou o centro algumas vezes logo após as queimadas. “Quando eu cheguei no dia seguinte, parecia que eu sentia a dor daquela terra”, relata.
Longe de casa, o cacique Mapu também sente a dor da tragédia. “Saber que toda a luta que nós estamos fazendo estava sendo destruída em questão de segundos, isso pra mim foi muito chocante. Pra mim foi muito forte, até hoje eu estou me sentindo assim”, disse.
No dia 5 de agosto, o cacique viajou para a Europa para realizar uma série de rituais xamânicos em diferentes países. A renda que obtém com a prática é revertida em investimentos para a comunidade. “A maioria da responsabilidade está no cacique. Quando acontece isso e a gente não está lá, a vontade da gente é comprar a passagem de volta para chegar lá urgente, para estar lá acompanhando, sentindo, vivendo e resolvendo essa situação”, explica.
Na Áustria, ele se movimenta como pode. Ele participou de uma manifestação e de uma coletiva de imprensa sobre as queimadas na semana posterior ao incêndio . Voltar mais cedo, porém, não é uma opção. Agora, mais do que nunca, a renda do seu trabalho se faz necessária.
A comunidade Huni Kuin acredita que a queimada foi criminosa. A hipótese é a mesma de muitos outros focos de incêndio, como os que foram iniciados no que ficou conhecido como “ Dia do Fogo ”. Eles registraram boletim de ocorrência, mas até agora não obtiveram respostas das autoridades e esperam os próximos passos.
O ataque do qual foram vítimas, no entanto, não é para eles um atentado individual. Mapu, Siã e Mirna destacam que a luta dos povos indígenas é uma luta pela Amazônia. “A destruição que está acontecendo em algumas regiões está atingindo ao mundo. Estão destruindo a nossa própria vida, nosso próprio corpo, e também tirando a esperança da próxima geração. Vai ser tarde se a gente não unificar nossas forças e lutar pelo bem da humanidade”, apela Mapu.
“A Amazônia está dando um recado: se não parar esse consumo desenfreado, esse sistema capitalista que está posto, a gente vai ficar sem aquilo que está sustentando o mundo hoje”, diz Mirna.
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A comunidade Huni Kuin
O Centro de Cultura Indígena Huwã Karu Yuxibu não é uma terra indígena demarcada. O cacique Mapu promove rituais xamânicos em diversos lugares do Brasil e do mundo e usa o dinheiro que arrecada para comprar terrenos para sua comunidade.
Ao comprar terras, o objetivo do cacique é unir o povo Huni Kuin e promover um reencontro com suas origens. Ele explica que muitos indígenas foram para as cidades em busca de estudo e acabaram perdendo contato com a cultura. Muitos deles também começaram a viver em situação de vulnerabilidade social.
O próprio Mapu foi para a cidade para estudar, mas acabou largando os estudos para lutar pelo seu povo quando se deparou com esta realidade. “Nós, caciques, temos a responsabilidade de pegar esse parente que está nessa situação, tirar ele de lá e dar uma qualidade de vida melhor”, explica. “Aquele parente que está na cidade mendigando, as pessoas discriminam, e é o nosso nome que está sendo manchado. Não é só aquela pessoa, é o povo indígena”.
O projeto de Mapu começou em 2015 no município de Plácido de Castro. Lá, ele conta que, em cerca de dois anos, conseguiram juntar 37 indígenas que já não praticavam mais a cultura e, como define o próprio cacique, “estavam perdidos”.
O sonho, porém, foi interrompido. Mapu começou a ser alvo de ameaças e, frente à inação do poder público, tiveram que abrir mão da terra e decidiram, em 2018, que seria melhor sair da região. Começaram então mais uma vez a construir um centro de referência para os indígenas Huni Kuin, desta vez nas proximidades de Rio Branco, a capital do estado. Até agora, já conseguiram adquirir 10 hectares de terra. Os cinco hectares destruídos pelo fogo custaram R$ 160 mil e fazia apenas dois meses que tinham terminado de pagar.
Recomeço
No momento, é urgente a construção de um poço e a implantação do sistema de abastecimento de água. Assim que começar a chover, os Huni Kuin também pretendem começar o trabalho de reflorestamento da área queimada, apesar de saberem que não será mais possível ter uma floresta nativa como era antes.
Para ajudar a reconstrução do centro, foi criada uma vaquinha virtual . Mirna conta que o responsável pelo projeto de financiamento coletivo é um homem que já participou de rituais promovidos pelo cacique Mapu e, ao saber do que estava acontecendo com os Huni Kuin, decidiu que precisava ajudar de alguma forma.
Em uma semana, a vaquinha já atingiu 75% da meta de R$ 35 mil. Frente ao sucesso, Mirna conta que eles estão estudando a possibilidade de recorrer a essa estratégia para conseguir fundos para investir ainda mais na comunidade. Até hoje, todo o dinheiro conquistado foi usado na compra de terras, mas a comunidade tem o sonho de construir uma escola Huni Kuin, para que as crianças estudem dentro da própria cultura.
Mesmo diante de tamanha tragédia, o discurso da comunidade é de resiliência. Para Mirna, eles não podem deixar que a situação os abale a ponto de se tornar paralisante. Ela ressalta a importância de deixar uma herança para os filhos. “Se nesse momento a gente se esmorece, o que a gente vai mostrar para eles? É lutar e agradecer porque no meio de tudo isso tem muitos irmãos e muitas irmãs que tem mostrado seu apoio”.
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“Essa tragédia vem para fortalecer”, define Txana Siã. O baque, garante o cacique, dificulta, mas não desarticula seu trabalho. “Nós vamos mostrar que somos capazes de reflorestar de novo. Nós não vamos desistir”, disse Mapu Huni Kuin .