Pecaminosos esquemas de corrupção estão em curso nas dioceses católicas de Limeira e Piracicaba, porção mais próspera do interior de São Paulo. Além de religiosos que deveriam empenhar suas vidas à caridade e à salvação das almas, estão envolvidos empresários, contraventores e figuras públicas, entre os quais, Alexandre Romano, o Chambinho, ex-vereador petista de Americana, que teria injetado dinheiro de propina na diocese antes de ser preso e delatar a senadora Gleisi Hoffmann. Todos protegidos por uma rede de favorecimentos instalada na Igreja Católica e beneficiados, direta ou indiretamente, por recursos doados ou arrecadados entre fiéis dizimistas, além de repasses do poder público para a caridade.
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A julgar por áudios e documentos aos quais a ISTOÉ teve acesso com exclusividade, há fortes indícios de simonia, o crime — segundo o Direito Canônico — de enriquecimento pelo uso da fé alheia e da compra e venda de favores — sem contar casos de luxúria patrocinados pelo dinheiro sujo. Os valores envolvidos chegam a R$ 12,5 milhões.
Ainda que não atuem necessariamente como um grupo organizado e hierarquizado, há conexões entre os líderes das dioceses e similaridades no modo de operação.
No epicentro da trama estão o bispo de Piracicaba, dom Ferdinando Mason, o bispo-emérito de Limeira, dom Vilson Dias de Oliveira — que renunciou —, e seu substituto provisório, o vigário-geral de Limeira, Júlio Barbado. Perto de completar 75 anos, quando poderá apresentar sua renúncia, dom Ferdinando foi denunciado sucessivas vezes ao papa Francisco por suspeitas de evasão de divisas, desvio de recursos doados, favorecimentos e acobertamentos, inclusive em casos sexuais envolvendo padres e seminaristas. Já Barbado, além de manter os protegidos de dom Vilson no esquema, teria comprado sua nomeação para se tornar o administrador da diocese. “O vigário-geral deu R$ 30 mil para ele [dom Vilson]”, afirma o padre Reynaldo Ferreira de Melo, pároco na cidade de Engenheiro Coelho, em áudio enviado à Polícia Civil. Junto com colegas, o padre também denunciou o hoje bispo-emérito de Limeira à Santa Sé. A ISTOÉ examinou a gravação e outros documentos há seis semanas, confirmando as queixas contra os religiosos. Procurados, nenhum dos bispos quis se pronunciar.
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Inabalável
Os escândalos parecem não abalar suas rotinas. Dom Ferdinando estaria de férias na Itália e d. Vilson pregaria no interior do Paraná. Barbado afirmou que os problemas não envolvem a cúria e aponta como culpados os colegas de batina, que só o acusariam por terem dado dinheiro ao bispo em troca de cargos sem terem levado nada. Ele alega que nada de errado pode ser encontrado em sua movimentação bancária de 2017. “Foi desconfiança e ciúmes”, afirma.
Ainda que não atuem necessariamente como um grupo organizado, há conexões entre as dioceses e similaridades no modo de operação. Quando bispo de Caraguatatuba, no litoral paulista, em 1999, dom Ferdinando teve dom Vilson como seu vigário-geral. Depois, em 2007, dom Vilson acabou em Limeira por influência de seu antigo superior e aliado. As dioceses são vizinhas e nelas não faltam queixas muito terrenas, principalmente sobre uso indevido do dinheiro. Abdo Omar Najar Neto, empresário e filho do prefeito de Americana, Omar Najar (MDB), revelou à ISTOÉ que o esquema de lavagem de dinheiro contava com o beneplácito de religiosos católicos. Neto afirmou que na Basílica de Santo Antônio de Pádua, em Americana, a mais suntuosa da diocese de Limeira, bingos chegaram a ser organizados por contraventores locais. A operação serviria para lavar dinheiro proveniente de cassinos clandestinos e outras jogadas. “Lá no porão da igreja teve até jogo de azar”, afirmou. O ex-reitor da basílica é o padre Pedro Leandro Ricardo, afastado e investigado por corrupção e estupro contra fiéis. Ele pode ser cassado ainda neste ano e acabar condenado pela Justiça.
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Em Roma, o papa Francisco teve que afirmar o óbvio: “Um corrupto não pode se tornar santo”. Em Araras (SP), católicos querem um basta: “Somos leigos, mas não bobos”.
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Alexandre Romano, o Chambinho, ex-vereador de Americana (PT) preso na Lava Jato, aparece no enredo nada pudico pelas ligações com o padre Leandro. Entre 2014 e 2015, em plena crise do segundo mandato de Dilma Rousseff, o petista teria injetado dinheiro de corrupção da Petrobras e de outras negociatas na lavanderia de dinheiro operada na basílica. Um de seus assessores, Carlos Martins, o Carlinhos do PT, foi dono da livraria que funcionou no subsolo do prédio. Chambinho ficou tão prestigiado junto aos clérigos que, mesmo sem ser membro da comunidade, em 2014 participou das leituras na missa de elevação da Igreja de Santo Antônio ao grau de basílica. Foi a cerimônia católica mais importante na cidade em quatro décadas. Preso um ano depois, ele teve que devolver R$ 6 milhões aos cofres públicos.
Dinheiro não declarado
O apreço pelo vil metal também se deu em episódios menores, mas que só fazem aumentar a desconfiança de católicos praticantes. Em 2010, dom Ferdinando não conseguiu embarcar para Roma a partir do aeroporto de Guarulhos. Ele portaria dinheiro não declarado na bagagem e só conseguiu partir no dia seguinte. O caso foi abafado, mas teria chegado às autoridades eclesiásticas. Também pesa contra ele a construção da suntuosa residência episcopal de Piracicaba, erguida no condomínio Residencial São Luiz. A edificação compreende duas casas, estrategicamente vizinhas, interligadas por uma capela. O terreno e a casa, avaliados em R$ 3 milhões, foram bancados com o aumento das doações das paróquias, o que provocou indignação entre leigos e padres. Com o novo endereço, dom Ferdinando não se manteria afastado de seu centro de poder, já que viveria ao lado de seu substituto. Ainda da diocese, a antiga residência oficial, uma casa murada de 350 metros quadrados de área construída segue vazia, a deteriorar-se em um bairro nobre. “Não dá para falar em humildade e solidariedade, em pregar contra a violência nas ruas, e viver encastelado, longe de quem precisa de ajuda”, reclama um professor que se afastou da igreja. Por causa desse comportamento, dom Ferdinando foi apelidado de Bórgia Caipira, em referência ao papa Alexandre VI (1492-1503). O exagero na comparação com a vida de luxos e dissoluções retratadas na literatura e na série de TV “Os Bórgias” serve como medida do descontentamento de parte de seu rebanho.
Em Araras, diocese de Limeira, agora a cargo do vigário-geral Júlio Barbado, os problemas persistem há uma década. São pequenos diante de tudo que foi relatado, mas afetam diretamente os fiéis. É o caso do Instituto de Promoção Social São Francisco de Assis, ligado à paróquia homônima, no bairro popular Jardim Morumbi. A entidade não atende ninguém, mas recebeu recursos públicos destinados, anteriormente, às aulas de capoeira e de música para mais de 100 crianças. Como o prédio da instituição teve suas salas alugadas pela prefeitura para sediar uma escola, um terreno foi doado para abrigar o trabalho social. Um deputado conseguiu verba para a nova sede, mas o que foi erguido mal dá para 20 pessoas. Os aluguéis da antiga sede rendem cerca R$ 20 mil mensais, mas não são aplicados na comunidade. Enquanto isso, em todas as festas e quermesses, o instituto anuncia que os recursos arrecadados irão para um projeto que na prática não existe. Não é de se estranhar que as missas estejam esvaziadas.
O caso foi investigado e arquivado este mês pelo Ministério Público de São Paulo, após a apresentação de documentos por parte da prefeitura e da entidade. Mas uma simples olhada nas planilhas levanta suspeitas. Em um único mês o consumo de gás e água foi de R$ 6,5 mil. Um furgão VW Kombi da paróquia foi vendido, mas constou das planilhas de abastecimento de combustível por mais de um ano. Um Fiat Bravo de uso particular também era abastecido. O veículo era usado pelo padre Leandro Ricardo, aquele que foi afastado por acusações de corrupção e estupro. “Somos leigos, mas não somos bobos”, afirma uma das católicas que se desligou do trabalho voluntário.
Os episódios ganham evidência em um momento crucial. Maior país católico do mundo, com 123 milhões de fiéis (65% da população), o Brasil assiste ao crescimento irrefreável das denominações pentecostais e neopentecostais, que somam 43 milhões de adeptos (22% da população), muitos dos quais atuantes na vida política. Só neste século, mais de 2 milhões de brasileiros abandonaram de vez o catolicismo, sem contar os que deixaram de ser praticantes. O papa Francisco lida com fortes resistências no interior da hierarquia do Vaticano, adotando um estilo despojado e que busca uma aproximação com as causas universais, como o enfrentamento das desigualdades, o combate à corrupção e a denúncia de crimes sexuais. Ou seja, o sumo pontífice tenta uma agenda progressista e inclusiva, enquanto parte de seus pregadores trilham o caminho contrário. Em uma homilia histórica, em 2018, Francisco fez um alerta: “Um corrupto não pode se tornar santo. E à corrupção se chega por aquele caminho do enfraquecimento do coração”. Foi aplaudido, mas nem precisaria. Não roubar, não levantar falso testemunho e não cobiçar coisas alheias são, respectivamente, o sétimo, o oitavo e o décimo Mandamentos e partes dos imperativos morais que fundamentam os grandes credos monoteístas — judaísmo, cristianismo e islamismo — e todos os sistemas éticos e jurídicos contemporâneos. Não importa se na Praça de São Pedro, no interior do Brasil ou no meio do deserto do Sinai: respeitá-los deveria ser uma missão tanto de fé como de cidadania.
Crimes e luxúrias com dinheiro dos fiéis
Além da roubalheira, há denúncias sobre o comportamento sexual de alguns dos sacerdotes das regiões paulistas de Campinas, Americana, Araras e Piracicaba. Em tese, ninguém deveria dar muita atenção para o celibato católico, uma norma que não fere a sociedade civil quando transgredida. Só que, quando as práticas envolvem casos de assédio e encontros sexuais financiados com doações, tudo vira caso de polícia.
Em maio, moradores do pequeno município de São Pedro, integrante da diocese de Piracicaba, denunciaram ao bispo Mason que meia dúzia de padres da região manteriam encontros sexuais com seminaristas na cidade. Religiosos de diferentes idades também foram vistos nas saunas 3 Chic, em Campinas, e 269 Chilli Pepper, no centro de São Paulo, na companhia de jovens. E piora.
Em março de 2016, uma carta foi enviada ao papa Francisco denunciando um relacionamento entre um padre de Piracicaba e um jovem menor de idade. Tudo encoberto por dom Ferdinando Mason. Por temor de que o documento não chegasse ao conhecimento do sumo pontífice, cópias foram despachadas ao núncio apostólico — o embaixador do Vaticano em Brasília —, dom Giovanni D’Aniello, ao então presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Sérgio da Rocha, e para os arcebispos do Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e Aparecida. A carta contém quatorze assinaturas. Além do afastamento dos padres Pedro Leandro Ricardo e Felipe Negro, da renúncia do bispo dom Vilson Dias e da expulsão de alguns seminaristas por envolvimento sexual, nenhuma outra punição ocorreu. Os padres Felipe Negro e Leandro Ricardo são investigados por corrupção e pedofilia.