O Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul investiga possível omissão sistemática de socorro por parte da polícia a indígenas do estado, que formam a segunda maior população do gênero em todo o país, com 80 mil indivíduos. O órgão teve a atenção chamada graças aos altos índices de homicídios nas proximidades do município de Dourados, a 225 km da capital.
A taxa de assassinatos de indígenas sul-mato-grossenses chega a 55,9 para cada 100 mil habitantes, duas vezes superior à média estadual e superior a países como El Salvador - cujo índice de mortes provocadas é a mais alta entre os países reconhecidos pela ONU, segundo dados da Organização dos Estados Americanos (OEA).
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Para os procuradores do MPF, a violência é sintoma de descaso do Estado. Em nota, o órgão descreve o problema, atribuído a questões estruturais nem sempre verificadas. “Hoje, se um crime é cometido dentro dos limites de uma aldeia ou reserva indígena, seja roubo, furto, violência doméstica ou assassinato, os moradores não encontram respaldo junto às autoridades policiais que, na maioria das vezes, ignoram o chamado alegando falta de combustível, de viatura, de efetivo ou até mesmo falta de segurança.”
A reserva (indígena) “é colada à cidade de Dourados. A alegação de ‘falta de combustível’ não faz sentido”, afirma o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida. Segundo ele, a instituição estuda a possibilidade de responsabilizar o Estado pelas mortes na região. “A política pública para os indígenas é, desde as demarcações durante a ditadura, de total omissão”, completa.
“É uma contaminação do sistema judiciário desde sua base, a investigação. Rivalidades étnicas, interesses pessoais; tudo se mistura quando a polícia terceiriza seu devido trabalho” | Marco Antônio de Almeida
De acordo com a investigação, a maior parte das investigações e policiamento dentro das terras indígenas é feita pelos próprios moradores. “Eles (indígenas) ligam para reportar uma ocorrência e os policiais respondem pedindo para que eles mesmos façam a prisão e investigação. Isso é muito comum”, denuncia Marco Antônio.
Flávio Vicente Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), reforça as afirmações do MPF: “Eles colocam na conta dos indígenas essa atribuição, que é da polícia. A situação nas reservas é de crise humanitária e abandono absoluto”. Ele reforça que a realidade atual, em que oito reservas e terras indígenas da região de Dourados estão superlotadas, funciona como uma bomba-relógio.
Para o Cimi, o policiamento ostensivo deveria ser realizado por um destacamento especial, que entendesse a soberania indígena sobre seu território, como rege o artigo 231 da Constituição Federal .
Ajuda que não vem
“A gestante estava ensanguentada no chão , mas os bombeiros não vinham”, recorda uma moradora da Reserva de Dourados, que preferiu não se identificar. “Eu e mais uma corremos no escuro, no mato, para socorrê-la. Achamos ela desacordada com a cabeça e a barriga machucadas. Chamamos a polícia, mas eles não vieram; chamamos os bombeiros, mas eles disseram que não entrariam na Reserva sem a polícia ", completa.
O MPF instaurou Procedimento Investigatório Criminal para verificar se cenas de desespero como essa não seriam caso isolado. Entre elas, está também a morte de uma adolescente indígena de 17 anos, também na região, registrada em abril deste ano. Segundo nota oficial do Ministério Público Federal, “tanto o Corpo de Bombeiros Militar quanto o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) de Dourados foram acionados, porém, alegaram não poder adentrar na Reserva Indígena para prestar o atendimento, sem explicar os motivos.” Em ambos os casos, como consta nos autos, os próprios indígenas foram solicitados a providenciar, com meios próprios, o socorro da jovem, que acabou morrendo em decorrência de um parada cardiorrespiratória.
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Para o antropólogo Spensy Kmitta Pimentel, autor de diversas pesquisas sobre os povos da região, a falta de regulação do comércio dentro das terras indígenas próximas a Dourados é uma reclamação antiga dos indígenas. “A rota do tráfico atravessa a fronteira paraguaia e passa direto pela cidade”, afirma. “Essa criminalidade contribuiu para os problemas graves que os indígenas sofrem por lá”.
Omissão
“A polícia só aparece quando o cacique deixa tudo pronto: suspeito, provas etc. Para eles, aquilo (as terras indígenas) é um zoológico”, denuncia Flávio Machado. Para o procurador Marco Antônio de Almeida, a ação do poder público “é um racismo descarado por parte do Estado”.
No fim de junho, foi convocada uma reunião entre representantes da Segurança Pública do Mato Grosso do Sul, Ministério Público Federal e Secretaria de Estado de Cultura para apurar as circunstâncias da morte da adolescente de 17 anos, morta após não ser socorrida pelo Samu. O inquérito segue em andamento. Em nota, o MPF ressalta que “[...] a população (indígena) é tratada com ' indiferença hostil' , fundada, na maioria das vezes, em motivos discriminatórios. Tal descaso estatal reflete nos índices de violência”.
Avanço?
No dia 27 de junho, uma delegação Kaiowá e Guarani foi a Genebra, na Suíça, expor o confinamento e deslocamento forçado dos povos índígenas, em evento paralelo à 41ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
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Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul — que responde pelas ações das polícias estaduais e força de bombeiros —, até o fechamento desta matéria, ainda não respondeu aos questionamentos enviados.
Em nota divulgada à imprensa na última segunda-feira (8), a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul afirma que novas “ações preventivas da PM nas aldeias começam a surtir efeitos positivos” e que o centro de operações (190) “funcionou normalmente, com a média de 300 ligações por dia.” durante a primeira semana após a reunião com o MPF.