Ao menos 45% da população não possui tratamento de esgoto adequado no Brasil, de acordo com o Atlas Esgotos de 2017. Além disso, segundo o Instituto Trata Brasil, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. Ambos os dados envolvem o saneamento básico, que é um direito assegurado pela Constituição Federal. O que muitos não sabem, no entanto, é que atualmente tramita em regime de urgência no Congresso a Medida Provisória (MP) 868, que altera o modo como é feito o saneamento no País.
A MP do Saneamento foi uma das últimas ações de Michel Temer (MDB) e hoje é apoiada pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL). A proposta foi aprovada pela Comissão Mista do Congresso no último dia 8, após alterações do relator, o senador Tasso Jereissati (PSDB). O novo texto recebeu 15 votos favoráveis contra 10 contrários e, agora, o texto segue para a Câmara dos Deputados . Se aprovada, a medida vai para o plenário do Senado.
Atualmente, o Marco Legal do Saneamento Básico , regulamentado em 2007, prevê que a gestão do serviço pode ser feita de três formas: por meio de administração pública direta - que é quando o próprio município se encarrega do fornecimento de água e esgoto - ou por meio de licitação para a contratação de empresas privadas. Também é comum a prática da utilização de contratos de programa, ou seja, deixar que empresas estatais, como a Sabesp, se encarreguem do serviço.
Caso a MP entre em vigor, a última opção deixa de existir. A regulamentação de águas e esgotos, que hoje é feita por cada município, passaria a ser responsabilidade do governo federal, por meio da Agência Nacional de Águas (ANA), que ficaria encarregada por regular as tarifas cobradas da população. Entre as alterações no texto, Jereissati também determinou que o poder público invista na regionalização da prestação dos serviços, na melhoria da cobertura e qualidade, redução do desperdício e aproveitamento de água da chuva.
Os riscos da privatização: a MP seria uma proposta ruim?
A exclusão do sistema de gestão por contratos de programa foi um dos pontos da medida que mais causaram polêmica entre a oposição e entidades. Com a aprovação da proposta, só sobram duas opções: a licitação ou a administração pública direta, o que facilitaria a entrada de empresas privadas. Atualmente, 94% do setor é controlado pelo Estado, de acordo com Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Para a Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), transformar contratos de programa em contratos de concessão a empresas privadas de forma automática, apenas com o aval do titular do serviço, fere a premissa de “Direitos e Garantias Fundamentais” prevista na Constituição. A entidade também demonstra preocupação com o artigo 13 do projeto, que permite que empresas estatais, como a Sabesp, sejam privatizadas . Caso isso ocorra, os contratos de programa com os municípios podem ser renegociados, mas, se a prefeitura não aceitar as novas regras, terá que pagar indenizações às empresas pelos serviços prestados.
“Trata-se de uma faca no pescoço para os prefeitos, pois determina que, caso o prefeito não aceite os termos que transformam contratos programa em contratos de concessão de forma automática, terá que operar os serviços pagando previamente os ativos não amortizados, ou seja, o gestor público não terá outra alternativa a não ser submeter-se à proposta como ela se apresenta”, disse a Abes, em nota.
O deputado federal Bohn Gass (PT-RS) disse entender que a MP impede que os municípios desenvolvam programas de saneamento com empresas estaduais. Sendo assim, as prefeituras terão que contratar empresas privadas por meio de licitação. “Isso acaba permitindo que os lugares que a gente chama de ‘filé mignon’ fiquem para as empresas privadas e a ‘carne do pescoço’, ou seja, os pequenos municípios, fiquem para as empresas públicas”, disse.
O parlamentar diz acreditar que, caso a proposta seja aprovada, as empresas privadas só terão interesse em investir nas grandes cidades, onde há garantia de lucro. “As tarifas vão aumentar, as empresas privadas não vão ter interesse nos municípios pequenos. Nós não concordamos com esse relatório e vamos destacar esses pontos. Vamos trabalhar para derrubar isto no Plenário”, argumentou.
Bohn Gass ainda defende que haja apoio da iniciativa público-privada no serviço, mas reitera que a gestão do saneamento tem que ser de responsabilidade do Estado. “É importante que todos debatam isso, porque nós estamos tratando de água , que é um bem público. Nós sabemos que os órgãos públicos têm que coordenar as áreas de saneamento, com a participação da iniciativa privada, mas não entregar para ela a gestão. Essa é a grande diferença que nós temos que levar em consideração”, justificou.
Um estudo da Abes comparou o sistema de saneamento de Goiás, feito com atendimento regional total, com o do Tocantins, onde há um modelo similar ao proposto pela MP, sem atendimento regional total. No Tocantins, as empresas privadas escolheram os municípios com média de 23 mil habitantes, enquanto o setor público atua nos menores, com cerca de 4 mil habitantes. A pesquisa concluiu que os 91 municípios pequenos do estado pioraram nos indicadores de saneamento nos últimos 18 anos. Além disso, Goiânia ocupa o 2º lugar no ranking do serviço, enquanto Palmas está em 17º.
“O discurso que vem sendo utilizado pelos defensores desta premissa prega pela universalização do saneamento e a preocupação com a população. Nada mais ilusório. O fato é que não se está discutindo uma proposta para melhorar a prestação de serviços de saneamento aos cidadãos, levar mais água tratada, coletar e tratar mais esgoto; o objetivo é pura e simplesmente o equacionamento fiscal dos estados. E as empresas estaduais passaram a ser apenas uma ‘moeda de troca’”, diz a Abes.
No último dia 13, o PT entrou com um pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6128, para tentar barrar a medida provisória. O partido alega que a proposta é inconstitucional, pois reestrutura a ANA com novas responsabilidades, além de centralizar o serviço de saneamento, tirando a autonomia dos municípios.
A legenda afirma ainda que a iniciativa não poderia estar tramitando em regime de urgência, pois a área do saneamento necessita de “forte planejamento, financiamento e prazos longos para implantação de projetos”. “[A medida] destrói, a partir da decisão isolada, monocrática e contrária ao processo legislativo democrático, toda a estrutura do sistema de saneamento básico brasileiro, que vem conseguindo progressivamente vencer a batalha do acesso universal e da modicidade tarifária”, argumenta a sigla.
Gestão colaborativa: a MP seria uma boa proposta?
Por conta das críticas da oposição ao fim dos contratos de programa, Jereissati colocou como solução os chamados “blocos de municípios”. Cada governador terá o prazo de dois anos para definir “microrregiões”, ou seja, conjuntos de cidades, que podem ser definidos com base em alguns critérios (mesma bacia ou vizinhança hidrográfica, por exemplo).
Apesar de o Marco Legal apresentar índices estáveis no que se refere ao abastecimento de água (93,01% dos municípios são atendidos, segundo levantamento do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), o tratamento do esgoto ainda enfrenta problemas mais extensos: o saneamento não é universal e distribuído em todos os municípios e, em média, 38,1% da água oferecida é perdida, segundo o Trata Brasil.
De acordo com o presidente executivo do instituto, Édison Carlos, é por essas falhas que a MP seria necessária. “Alguma coisa precisa ser feita. Se a gente chegou a esse tamanho de deficit de saneamento é porque o modelo atual não funciona mais. A gente precisa fazer alguma coisa diferente”, afirmou.
Segundo Édison, a MP teria a função de preencher os vácuos que foram deixados quando a lei do saneamento básico foi escrita em 2007, além de propor a regulamentação das cerca de 50 empresas que prestam o serviço no País inteiro. A grande quantidade de instituições dificultaria o processo de estabelecer diretrizes e padronizar o serviço. Para o presidente do Trata Brasil, esse seria o papel da ANA: o de regulamentar as empresas, sejam elas privadas ou públicas.
“Não é questão de ser uma ou outra. A gente olha para o cidadão. Ele está bem atendido? Ótimo, a gente deixa a empresa assim, fica tudo como está. A empresa não funciona, seja pública ou privada? Então, tem que sair. O que importa é o cidadão. Ele paga uma tarifa, ele tem que ter o serviço, ou seja, tem que ter água 24 horas na torneira e o esgoto dele tratado e coletado. Simples assim. Que empresa vai fazer isso? Tanto faz."
Sobre o alegado risco de se privatizar o serviço, Édison Carlos diz que a proposta da MP é de que iniciativa privada seja apenas auxiliadora do serviço público, a fim de fornecer subsídios para o investimento em tecnologia e na melhora da qualidade do serviço. De acordo com Carlos, o deficit calculado para o saneamento é de R$ 400 bilhões, dinheiro que nem o setor público, nem o estado possuem e, por isso, o investimento privado seria necessário para fornecer esse capital.
“A gente torce para que haja uma maior parceira. A gente acha que o fundamental é o setor público. As empresas públicas conhecem o território, conhecem as dificuldades, o que a gente torce é para que as públicas e as privadas trabalhem em conjunto, não uma substituindo a outra. A gente vê o setor privado como um grande parceiro do setor público e não inimigo, essa é a grande diferença, a gente acha que há muito espaço. O setor privado sozinho não consegue resolver o problema do Brasil, a gente precisa dos dois. É muito triste essa polarização.”
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Outro ponto positivo da MP apontado pelo presidente do Trata Brasil é a preocupação com a significativa quantidade de perda de água durante o processo de distribuição. A ANA passaria, assim, a ter a função de pressionar tal controle, tornando o tratamento de água mais eficiente e, ao mesmo tempo, evitando o desperdício.
Mas e os aumentos das tarifas a serem pagas pela população? O presidente rebate tal argumento afirmando que não cabe à empresa aumentar as tarifas, já que essa questão é função somente da agência reguladora. “Ela é quem vai ver os custos da empresa, quais são os investimentos que estão sendo feitos, qual é o poder econômico da população, se tem tarifa social para classe mais pobre ou não. Então, assim, a empresa não tem poder sobre isso, ela pode até reivindicar, mas quem determina é a agência reguladora”, explicou.
Apesar dos argumentos apontados, Carlos diz não acreditar que a MP seja a “salvação nacional”, mas sim uma forma de “tampar” alguns buracos deixados pela lei original.
MP do Saneamento pode cair
A Medida Provisória ainda precisa ser votada e aprovada até o dia 3 de junho. Caso isso não aconteça, a proposta pode caducar. De acordo com Bohn Gass, uma carta assinada por 24 governadores foi entregue a Jereissati com todos os argumentos contrários ao projeto, tendo como objetivo fazer com que a MP caia e um novo debate comece.
De acordo com o presidente do Trata Brasil, o Congresso nunca esteve tão envolvido com a pauta como agora, o que já seria um grande passo dado dentro do Poder Legislativo, mesmo se a MP não for aprovada. “Agora, a gente está debatendo pela segunda vez com governadores e deputados o que precisa ser feito para que se resolva essa vergonha nacional. Isso é muito positivo. No final dessa história, já temos um grande avanço, que é ter dado visibilidade para o saneamento.”
Caso a MP seja derrubada, Carlos ainda aponta como solução a criação de um projeto de lei que possa levar todos a um consenso, já que, segundo os cálculos do Trata Brasil, com a melhoria na qualidade do serviço de saneamento, o País ganharia R$ 1 trilhão nos próximos 20 anos e, por isso, esse deveria ser o ponto primordial do debate. “A gente não pode deixar a discussão esfriar. O brasileiro não pode mais. Quando a gente recebe alguém de um país desenvolvido, eles não entendem nem o que a gente está falando. Nós estamos entre as maiores economias do mundo. Como é que a gente não consegue coletar esgoto?”
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Apesar dos apelos, o governo não deve dar prioridade à votação da MP do Saneamento nas próximas semanas, o que dificultará sua aprovação até o dia 3 de junho. O Planalto informou que quer colocar em primeiro plano a Medida Provisória 863/2018, que caduca no dia 23 de maio e libera o capital estrangeiro em empresas aéreas, e a Medida Provisória 866/2018, que autoriza a criação da estatal NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A, e perde o prazo no dia 30 deste mês.
Além disso, o líder do governo na Câmara, Major Victor Hugo (PSL-GO), informou que tem outras três medidas como prioridade e reconhece que não será fácil aprovar a MP do Saneamento , apesar de se dizer a favor do texto.