Em meio a uma profunda crise , a rede estadual de saúde está em débito com profissionais de 9 unidades e institutos. Após a suspensão de repasses de contratos investigados com sete Organizações Sociais, cerca de 3 mil médicos , enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e outros funcionários estão com até dois meses de salários atrasados . Esses problemas já haviam sido alvo de comentários do ex-secretário Fernando Ferry, que pediu demissão nesta segunda e ao GLOBO afirmou que "uma nova onda de protestos de servidores" vai acontecer.
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Diante dos atrasos de salários, oito sindicatos que representam as classes dos profissionais de saúde afetados deram entrada com um pedido de mediação e conciliação no Tribunal Regional do Trabalho na noite desta segunda. Na ação, as entidades afirmaram que "com objetivo de alcançar solução breve e pacífica " pediram a mediação para "o correto pagamento dos salários e demais verbas trabalhistas vencidas e vincendas; e manutenção dos empregos e condições de trabalhos dos profissionais da saúde".
Os problemas começaram ainda em maio, quando o governador Wilson Witzel determinou a suspensão de "pagamentos de contratos sob suspeita". Profissionais dizem que entendem a necessidade de auditoria das contas, mas não querem ser prejudicados, principalmente durante uma pandemia. Um protesto chegou a ser realizado na porta do Palácio Guanabara, no domingo.
— Muitos contratos estão sendo investigados, mas quem está pagando com isso é a classe trabalhadora, que está com salários atrasados por causa da suspensão de repasses. Temos profissionais até passando fome — disse Líbia Bellusci, diretora do Sindicato de Enfermagem, que critica a forma como o então secretário Fernando Ferry lidou com essa situação. — Sempre que o questionamos, ele não respondia. Não havia uma equipe técnica, tentamos negociar, mas nada caminhou. Nesse mês, nada andou.
Segundo os sindicatos, são 8 unidades de saúde mais o SAMU, com problemas de pagamento: Hospital da Mãe, Hospital de Anchieta, UPA "do presídio" Bangu, Hospital do Cérebro, Hospital de Trauma e Ortopedia de Nilópolis, Hospital Alberto Torres , Hospital da Mulher, Hospital de Carlos Chagas e o SAMU RJ. Os contratos envolvem sete Organizações Sociais, citadas na ação, e afetam cerca de três mil profisisonais.
Paciente não consegue atendimento no Hospital Alberto Torres
Com a falta de pagamentos, parte dos profissionais não estão indo ao trabalho, porque alegam inclusive dificuldade para pagar passagem. No domingo, enfermeiros não estiveram no Hospital Alberto Torres, em São Gonçalo. Depois de não ter conseguido atendimento, o bombeiro Rodrigo Duarte, que é hipertenso e estava com suspeita de coronavírus, gravou um vídeo denunciando a situação na porta da unidade.
"Cheguei no hospital e disseram que não tinha enfermeiro para verificar minha pressão, por causa da falta de salários. Imagina quem chega aqui em estado crítico? Isso é uma pouca vergonha do governo do Rio. Estou indignado", disse Rodrigo Duarte , morador de São Gonçalo, que então foi orientado a procurar atendimento na UPA de Colubandê. "Na UPA, a médica me disse que provavelmente eu estava com Coronavírus e me receitou remédios. Mas ontem resolvi fazer um teste rápido na unidade de Maricá e deu negativo. O médico, então, disse que os sintomas seriam de sinusite"
Risco de "iminente paralisação dos serviços"
No meio das brigas entre o governo estadual e as Organizações Sociais, o Iabas, que foi afastado da gestão dos hospitais de campanha por suspeita de fraude, admitiu, em ofício, que o cenário é de "iminente paralisação dos serviços", e que hoje há "grandes dificuldades para aquisição de medicamentos e insumos, pagamento de serviços terceirizados e para pagamento de salários dos colaboradores. A OS diz, por exemplo, que há remédios com "estoque crítico", e que a continuidade da suspensão pode causar a suspensão de cirurgias, atendimentos e de ambulâncias. Iabas ainda possuía um contrato de gestão do Hospital Adão Pereira Nunes, a maior unidade da Baixada Fluminense.
Segundo o ofício de Iabas, o primeiro contato com a secretaria pedindo os repasses para não ter problemas com salários foi no dia 13 de maio, mas o primeiro pagamento só ocorreu no dia 15 de junho e outra parte no dia 16. Pelos registros da OS, o governo ainda deve R$4 milhões referentes ao repasse de maio, e os R$16 milhões de junho, o que pode gerar novos atrasos de vencimentos, mas que os salários de maio foram regularizados na semana passada.
Na semana passada, Fernando Ferry admitiu que a secretaria estava com uma dívida de R$162 milhões em mais de 40 unidades por causa das suspensões de repasses em função da investigação de contratos. Segundo a SES, "todos os contratos vencidos ou por vencer das organizações sociais que administram hospitais ou unidades de saúde sendo revisados pela SES, em conjunto com a Procuradoria Geral do Estado (PGE) e a Controladoria Geral do Estado (CGE)", além de esclarecimentos a questionamentos feitos pelo Tribunal de Contas do Estado e pelo Ministério Público Estadual. A pasta acrescentou que um grupo de trabalho foi criado pela nova secretaria "com o objetivo de agilizar a análise dos contratos e que a solução para regularização dos pagamentos aos funcionários é prioridade da pasta".
No hospital de campanha do Maracanã, profissionais dizem que os salários estão em dia, mas há problemas pontuais. O grupo de fisioterapeutas, por exemplo, que somam cerca de 120 funcionários, não recebeu os valores referentes a adicional noturno de maio. Segundo uma fisioterapeuta, que pediu para não se identificar, a quantia chega a represntar até 20% de todo o salário.
— Estamos reclamando desde o dia 5, mas nos enrolam. Esse adicional é cerca de R$600, faz falta -- disse a fisioterapeuta.
Procurada, Iabas negou os problemas e disse que regularizou os pagamentos. Já na rede municipal, médicos não citam atraso de salários, mas de falhas em pagamentos específicos, como gratificações e plantões extras. Os problemas acontecem no hospital de campanha do Riocentro. Procurada, a prefeitura não se manifestou.
Servidores fazem carta aberta contra 'desmonte'
No meio da crise, servidores da SES divulgaram uma carta aberta nesta segunda para comentar o "apagão" de gestão comentado pelo próprio ex secretário Ferry. O texto começa com o "repúdio à permanente influência de interesses não republicanos sobre o orçamento desta que é responsável pela condução estadual do Sistema Único de Saúde (SUS)". Segundo os servidores, raramente funcionários técnicos de carreira ocupam posição de decisão dentro da estrutura, ainda mais "quando se trata de gestão orçamentária e financeira". Na opinião dos servidores, muitas decisões estratégicas dos últimos anos na SES vêm sendo tomadas como forma de " driblar os controles da Lei de licitações e contratos", por isso eles afirmaram seu "cansaço e insatisfação com as constantes mudanças da cúpula dirigente, em geral, sem proposta clara de mudanças na condução de políticas públicas de saúde no estado".
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O "apagão de gestão" é resultado, segundo os servidores, de um desmonte do serviço público. Por isso, eles consideram "urgente um choque de gestão na pasta, com designação de corpo diretivo alinhado a esses princípios e diretrizes e que ratifique seus valores institucionais: Humanização, Ética, Transparência, Probidade, Responsabilidade, Compromisso, Inovação, Gestão Democrática e Participativa. Faz-se necessária a revisão de práticas e condutas deletérias, que têm corroído a capacidade de gestão da saúde pública estadual, incluindo o modelo mal sucedido de privatização, expresso pela adoção das organizações sociais como modelo prioritário de gestão".
Curta e conturbada passagem de Ferry é criticada
Nos 36 dias em que ocupou o cargo de secretário de Saúde, o médico Fernando Ferry pouco fez para o combate ao Coronavírus e contribuiu para a "paralisação" da rede estadual, dizem profissionais do meio e parlamentares. Durante sua curta gestão, os episódios mais relevantes foram os conflitos de versões com o governador Wilson Witzel sobre a gestão dos hospitais de campanha. Na semana passada, a Fundação Estadual de Saúde emitiu um relatório técnico defendendo a não abertura das unidades e redirecionamento dos investimentos na reabertura de leitos inutilizados, opção que desagrada o governo, e isso teria sido um dos motivos para a saída do secretário.
Em depoimento à Comissão Especial de Fiscalização de Ações Relacionadas à Covid, da Alerj, na quinta-feira passada, Ferry chamou a atenção de parlamentares por ter falado, reiteradas vezes, que estava preocupado com o seu "CPF", numa alusão ao temor com indícios de corrupção. Antes disso, ele afirmou que o convite para a secretaria veio do vice-governador Claudio Castro. Segundo fontes do governo, Ferry nunca teria se sentido totalmente confortável no cargo, por não ter sido escolha direta do governador Wilson Witzel.
"Claudio castro foi quem falou comigo. Ele disse que eu teria carta branca para fazer a gestão da secretaria, e que o passado ficaria a cargo do Tribunal de Contas e do MP. O que ele me falou foi "queremos que você se preocupe agora em construir o futuro", afirmou Ferry na sabatina.
Agora, mesmo após a sua saída do governo, a comissão aguarda a sua presença em uma nova sessão, que já estava marcada, para esta quinta. Relator da comissão, o deputado estadual Renan Ferreirinha (PSB ) afirmou que Ferry deixa o cargo "sem ter feito nada de útil".
"No depoimento, ele deu respostas evasivas sobre entrega de hospitais de campanha, respiradores e disse que sairia da pasta se houvesse qualquer interferência política", disse Ferreirinha, que criticou as mudanças de versões de Ferry sobre os hospitais de campanha durante sua gestão. "Primeiro ele falou que as unidades foram superdimensionadas, mas aí foi desmentido pelo governador e foi obrigado a mudar de versão, falando, então, que seriam um legado por anos. É balela, esses hospitais não têm como durar muito tempo, eu visitei as unidades e percebi muitas precariedades estruturais."
Na opinião de Ferreirinha, Ferry mostrou nervosismo na sabatina e demonstrou desconforto com os questionamentos dos parlamentares.
"Agora surgem versões sobre sua saída, se foi porque sofria pressão para assinar contratos suspeitos, ou se ele percebeu que a crise do governo era mais profunda. A toda hora ele falava sobre preocupação com seu CPF, mas esse tipo de vitimismo não agrega em nada, ele aceitou o cargo por livre e espontânea vontade", concluiu o deputado.
Para o médico e vereador Paulo Pinheiro (PSOL), integrante da Comissão de Saúde da Câmara Municipal, Ferry deu declarações temerárias, como no episódio dos respiradores comprados por Iabas e cuja funcionalidade foi questionada. Naquela ocasião, ele disse que descobriu sobre a compra pela imprensa e que ouviu "anestesistas amigas" para saber mais sobre a qualidade dos equipamentos.
"Acho que toda sua gestão foi estranha, desde a chegada. É preocupante uma pessoa que ocupa esse cargo técnico dar uma declaração assim, admitindo que consultou apenas alguns amigos para uma questão tão importante. Mas, independente do motivo de sua saída, o fato é que estamos perdendo tempo", afirmou Pinheiro.
Um ponto aventado é que Ferry não teria tido a oportunidade de montar sua equipe e, de fato, tocar a gestão com autonomia. Membro do Comitê Científico do governo, o virologista da UFRJ Amilcar Tanuri concorda que existia a percepção de que Ferry ainda comandava uma equipe transitória, e ainda não havia conseguido montar sua equipe de confiança. Tanuri lamenta o impacto negativo dessa mudança no comando da pasta para o planejamento do estado. Ele dá como exemplo o "projeto sentinela" de monitoramento da prevalência do Coronavírus no Rio através da aplicação de testes em 20 unidades de saúde.
"Esse projeto estava planejado para começar semana que vem. Seriam seis ciclos quinzenais, com duas mil amostras por ciclo, de PCR, sorologia e teste rápido. Esse monitoramento é muito importante para entender o espalhamento do vírus pelo estado, já observamos que em municípios do interior e da baixada, os casos estão em ascensão. E na capital, a curva descendente parou, o que possivelmente foi efeito da flexibilização. Agora, com essa mudança na secretaria, o planejamento fica nebuloso", explicou Tanuri.
Também membro do Comitê Científico do governo, o médico e professor da Uerj Marcelo Dal Poz se surpreendeu com a saída de Ferry. Ele disse que participou de uma reunião convocada pela Secretaria Extraordinária de Acompanhamento de Ações Governamentais Integradas da Covid-19 no sábado e, nada indicava essa mudança no encontro. Ferry não participou, mas havia membros da secretaria.
"Qual instituição séria consegue sobreviver de pé com essas mudanças abruptas de comando. Me preocupo muito, porque hoje temos uma crise política e de liderança sanitária", disse Dal Poz.
Segundo a SES, a continuidade dos projetos será avaliada pela nova gestão.