Na última quinta-feira (11), o governo divulgou decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) que implanta uma nova Política Nacional sobre Drogas no Brasil . O documento exclui a reabilitação baseada na redução de danos, como vinha sendo feito, e prevê o tratamento baseado na abstinência, além de outras medidas.
Um dos sete pontos da nova política sobre drogas é o tratamento de dependentes químicos. Atualmente, a maior parte dos tratamentos adota a estratégia da redução de danos, que garante que o paciente melhore aos poucos, pensando nos danos que a droga poderia causar para si, e diminui o seu consumo até chegar à abstinência. Isso é realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em serviços públicos especializados, como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Com o decreto, a redução de danos é excluída e o tratamento passa a priorizar a abstinência. A proposta é investir em comunidades terapêuticas que, em grande maioria, são apoiadas por organizações religiosas e misturam o atendimento aos usuários com a religião. De acordo com o doutor e especialista em saúde pública Marco Antônio Manfredini, países como Portugal e Espanha, que são referência no tratamento de dependentes químicos, baseiam-se no método da redução de danos .
"Na medida em que a nova Política Nacional de combate às drogas privilegia a questão da descriminalização, ela vai contra todo o debate que está sendo feito no mundo inteiro sobre o enfrentamento desse problema", avaliou. O especialista afirma ainda que as comunidades terapêuticas normalmente não são submetidas a um acompanhamento do SUS e, muitas vezes, funcionam em condições inadequadas de vigilância sanitária. Para ele, essas instituições devem estar inseridas em uma política estadual ou municipal de saúde mental.
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O histórico em São Paulo
Manfredini afirma que a falta da continuidade das políticas públicas é o principal problema de gestão no tocante ao assunto. Como exemplo, o especialista citou o programa De Braços Abertos , lançado em São Paulo pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT), em 2014. Focado na política de redução de danos, o projeto previa atendimentos médicos e odontológicos, hospedagem em hotéis para moradores de rua , três refeições por dia e uma bolsa para aqueles que trabalhassem nos serviços de limpeza da prefeitura.
Um ano após a implantação do programa, Haddad divulgou que o fluxo de moradores de rua na região conhecida como cracolândia havia caído de 1.500 para 500 pessoas. A prefeitura também fez uma pesquisa com os beneficiados e apontou que, entre eles, 88% afirmaram ter reduzido o uso de crack e 53% voltaram a ter contato com suas famílias.
Por outro lado, apesar de os resultados terem sido significativos, uma pesquisa da Agência Pública concluiu que, entre abril e maio de 2017, houve aumento de 160% dos frequentadores da cracolândia novamente, quando o programa já estava sob a gestão seguinte na capital paulista, de João Doria (PSDB).
O projeto do petista foi interrompido naquele mesmo mês de maio, quando Doria o substituiu pelo programa Redenção , que também se baseava na redução de danos, mas priorizava a abstinência por meio da internação, inclusive a compulsória, que foi negada pela Justiça na época.
A iniciativa do tucano começou de uma forma que causou polêmica à época, por meio de uma ação policial que reprimiu os usuários com balas de borracha , bombas de gás lacrimogêneo e destruiu barracas que eram ponto de venda de crack. Naquele momento, o então prefeito chegou a informar que a cracolândia tinha acabado, mas a medida não funcionou. Os moradores da região apenas migraram para outros locais da cidade e, hoje, voltaram ao mesmo endereço de antes.
De acordo com a prefeitura, mais de 300 mil pessoas foram beneficiadas pelos Atendes, contêineres de atendimento do projeto, onde os usuários podiam comer, tomar banho e dormir. Dessas, 3.210 foram encaminhadas para atendimento médico ou internação no sistema público de saúde, mas, ainda assim, os efeitos não foram duradouros: cerca de 70% dos dependentes químicos desistiram do tratamento e abriram mão da internação.
Na época, o Ministério Público de São Paulo, a Defensoria Pública e conselhos de classe disseram que o programa era ineficaz e apontaram falhas, como a falta de alternativas diferentes da internação, a de profissionais na área da saúde e no acompanhamento após o fim da internação.
"No município de São Paulo, nós temos hoje não apenas uma única cracolândia, mas várias cracolândias, e elas são reflexo justamente do quê? Da falta de políticas públicas perenes. Nós tínhamos, por exemplo, o programa De Braços Abertos, que preconizava a redução de danos, e esse programa foi interrompido e colocou no lugar um programa de reabilitação apenas com tratamento medicamentoso, que já comprovou que não está dando resultado", afirma Manfredini.
Paralelamente à nova política nacional, tramita na Câmara Municipal de São Paulo o Projeto de Lei 271/18, do prefeito Bruno Covas (PSDB), que cria a política municipal de álcool e outras drogas. O PL, ao contrário do decreto de Bolsonaro, também prevê o tratamento de usuários por meio da redução de danos.
Repressão e prevenção também são pontos do decreto
O histórico de São Paulo no tratamento de dependentes químicos baseado na abstinência falhou. A redução de danos, embora não tenha sido 100% eficaz, teve melhores resultados. Isso ocorre porque, de acordo com Manfredini, em casos em que o vício já está muito avançado, o usuário não tem condições de entrar em total abstinência em um primeiro momento, por isso o tratamento baseado na redução de danos é priorizado.
Para ele, uma política de internação e abstinência, como a do projeto Redenção, tem um alto índice de desistências nos tratamentos por falta de filtros. "A política de internação é aplicada só em casos muito graves, quando aquela pessoa pode ser um risco para si mesma ou para a sociedade. Então, as políticas de internação só funcionam mesmo quando indicadas. A internação compulsória não tem esse filtro", concluiu.
O decreto de Bolsonaro volta a seguir a mesma linha do programa Redenção, priorizando a abstinência a redução de danos. Para a prevenção, se propõe desenvolver a espiritualidade, o acesso aos bens culturais, o vínculo familiar e a prática de esportes. Além de regular o horário e os locais de venda de drogas lícitas, como álcool e cigarro, e restringir a publicidade.
A nova Política sobre Drogas ainda traz novas orientações relacionadas à repressão e prevê que, para diferenciar um usuário de um traficante, os policiais considerem não só a quantidade de droga apreendida, mas também “o local e as condições em que se desenvolveu a ação de apreensão, as circunstâncias sociais e pessoais e a conduta e os antecedentes do agente".