A pandemia de Covid-19 que já está instalada no Brasil, desenha um cenário de crise generalizada no sistema de saúde público , com consquências graves na economia. A administração pública é cobrada a tomar atitudes à altura de forma eficaz e rápida. Mas como mudar um sistema pesado e lento em um curto espaço de tempo?
Para a Doutora em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora de direito administrativo na mesma instituição e vice-presidente da Instituição Brasileira de Direito Administrativo, Cristiana Fortini, isso é possível revendo princípios . "Não tem razão para impor limites de responsabilidade fiscal (neste momento), porque responsabilidade fiscal não tem mais valor do que a vida das pessoas", avalia a professora.
Para Cristiana, a necessária reformulação dos moldes da burocrácia estatal é fundamental para combater o novo coronavírus e ainda pode deixar um legado de modernização da estrutura do Estado, como ela defende em entrevista ao Portal iG .
Vale lembrar que o Brasil está oficialmente há mais de um mês em quarentena - com variações regionais entre estados e municípios que adotaram as medidas em momentos diferentes -, desde que a Portaria nº 356 de 11 março 2020 do Ministério da Saúde, publicada no Diário Oficial da União, que definiu as regras de isolamento social para conter os avanços da Covid-19 e reconheceu a emergência na saúde pública.
Desde então, as regras da gestão pública estão sendo alteradas para lidar com as peculiaridades que o novo coronavírus impõe sobre o Brasil, incluindo a aprovação do decreto que reconhece o estado de calamidade pública no país e garante o afrouxamento das regras fiscais.
Porém, as medidas orçamentárias não são as únicas que sofreram mudanças. Cristiana Fortini aponta o impacto da Covid-19 na gestão pública, o legado e os aprendizados que a crise pode gerar neste âmbito, além de discutir como a “pandemia nos convida a uma reflexão sobre o excesso de formalismo da administração”.
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O estado de calamidade pública permitiu afrouxar as regras do orçamento para realizar as medidas emergenciais. Quais os impactos que isso pode gerar pós-pandemia? Qual o legado que isso gera na administração pública, uma vez que as regras são reavaliadas?
Até poderia ser uma oportunidade pra isso, discutir que algumas regras da administração pública deveriam ser repensadas para fora do período da pandemia.
Ninguém está repensando regra de orçamento, o que acontece é que a situação é tão caótica, tão inesperada e tão peculiar que não faz sentido observar regras que são para o dia a dia. Você tem uma ideia básica que é de que cada despesa da administração pública precisa de uma fonte de custeio, essa é uma ideia central. O estado não pode sair se endividando porque ele precisa dizer de onde vem a receita para fazer frente àquilo. Essa é a ideia faz sentido nos dias normais (e neles) assim deve permanecer.
Hoje não faria mais sentido, porque agora é a hora do estado se endividar. Não tem razão para você impor limites de responsabilidade fiscal [neste momento], porque responsabilidade fiscal não tem mais valor do que a vida das pessoas .
Especificamente sobre a temática orçamentária, a decisão do STF é não uma decisão que critica a lei de responsabilidade fiscal, a ideia de responsabilidade fiscal é crucial. Se você não tem responsabilidade fiscal você incha a folha de pagamento com o funcionalismo, você não consegue deixar verba para investimento, você não tem parâmetro de atuação, o estado se endivida e, em última análise, isso pode ter uma perspectiva inflacionária.
A decisão dos tribunais foi de que essas regras que funcionam no dia a dia da administração não funcionam em uma situação apocalíptica. Aí sim essa questão de afrouxar regra. Agora, outras tantas regras, que não são orçamentárias, talvez faça sentido repensá-las, (inclusive) para o dia a dia da administração.
Quais regras especificamente poderiam ser repensadas para o pós-pandemia?
Regras de licitação. O que é a licitação? A licitação é uma disputa formal por meio da qual a administração pública tem diretrizes para observar: oportuniza aos interessados a participar daquela disputa e confronta propostas na tentativa de encontrar uma contraproposta ideal.
Uma noção que existe no mundo ocidental, de forma cada vez mais latente, é de que a busca da proposta ideal não é necessariamente a busca pelo menor preço. Essa questão de buscar a proposta mais vantajosa - não a mais barata, mas a que melhor atende à administração pública - é extremamente importante.
A gente anda caminhando nesse sentido no Brasil, mas não totalmente. Na Europa, por exemplo, não se licita pelo menor preço se lícita para alcançar a proposta mais vantajosa: o produto é ambientalmente melhor ajustado, pode até ser mais caro, mas agride menos o meio ambiente; preferência por pequenas empresas, elas não vão fornecer pelo mesmo preço da grande, vão ofertar mais caro, mas você fomenta a micro e pequena empresa. Aqui no Brasil, ainda há uma resistência a essa ideia de que preço não é tudo.
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A gente tem uma Medida Provisória que muda a leia para falar que uma contratação emergencial pode durar mais de 180, porque ninguém sabe precisar quanto tempo vai durar essa pandemia.
Também é possível abrir mão de determinadas documentações porque o fornecedor não vai necessariamente ter que te dar alguns documentos. A gente teve que criar uma lei para falar disso quando, na verdade, nós todos já sabemos que a lei brasileira sobrecarrega demais na parte documental e tem travas em excesso.
Hoje só se contrata por 180 dias e você exige um monte de documentação e se a emergência ultrapassar 180 dias? ‘Ah, não pode’; Se a empresa não tiver a documentação? ‘Ah não pode’. Precisou da pandemia para a gente entender que: se não tiver a documentação vai sem a documentação; se durar mais de 180, continue contratado; se cobrar mais caro, que pague mais caro.
O que importa agora é contratar gente e contratar serviços. Esse chacoalhar no formalismo que a pandemia provoca nos faz pensar se a gente não continua mais formal do que precisaria no cotidiano da administração.
Você viu?
Eu acho que a pandemia nos convida a uma reflexão sobre o excesso de formalismo da administração . A gente já melhorou muito, mas ainda hoje a licitação é como se fosse uma gincana: quem tem mais documentos? Quando na verdade você sacrifica a própria necessidade da administração pública em prol de formalidades.
A pandemia precisou vir para mostrar que pode até não ter o documento. Eu vou precisar explicar para a família da vítima que está morrendo no hospital que não tem equipamento porque não tem documento embora a empresa tenha o equipamento, que é o que interessa? Há uma série de lições que podem ser extraídas da pandemia, mas talvez a principal seja essa: o excesso de burocracia .
Outra coisa importante é que as empresas reagem à essas burocracias, reagem aos riscos que estão embutidos na contratação com a administração pública. O estado tem por lei um prazo de 180 dias de atraso parado, por lei a administração pública pode atrasar até 90 dias e a empresa precisa continuar a fornecer.
O que o empresariado faz sabendo disso? Vai vender normal? Não, ele inflaciona o valor do produto, serviço ou obra acrescido do risco de não receber no dia. Agora você vê o empresário dizendo “você precisa demais do respirador? Só de dou se você pagar antes ”, por lei isso é vedado, mas qual a lógica de vedar isso quando você está diante de uma situação como está?
Às vezes a administração pública usa da força dessa primazia e das regras legais para se proteger, mas não está se protegendo, está encarecendo o serviço.
A releitura dessas coisas todas é importante. Faz sentido essas regras? Em que medida elas protegem o interesse público e em que medida, na verdade, elas só encarecem a licitação? Em que medida não é o caso de admitir isso em situações excepcionais? Realmente devemos insistir em não aceitar pagamento antecipado?
Tudo bem o fluxo normal na lei tem uma série de etapas legais até receber sabe se lá quando. Mas se o particular disser que se pagar antes dá um desconto de 40%? Não pode? É só nesse momento de pandemia que vale o pagamento antecipado? São coisas que já eram questionadas, mas a pandemia lança luz sobre isso, reacende essa discussão .
Qual é o limite da flexibilização do formalismo? (A Medida Provisória nº 926 dispõe sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da crise do coronavírus. A MP garante que, até mesmo, empresas inidôneas seja contratadas e não exige mais a elaboração de estudos preliminares para a contrtação de produtos básicos)
Se a empresa é considerada inidônea, você precisa presumir que houve um processo administrativo, em que se apurou um comportamento muito grave, e que ela deve ter o direito de se defender, se foi declarada culpada.
A punição para a empresa é que ela não vai ser contratada, ela não pode nem participar da contratação, flexibilizar isso é mais complicado.
Nos EUA, mesmo que uma empresa seja declarada inidônea é possível que a Agência olhe para a empresa, reconheça que ela fez algo grave, mas conceda um voto de confiança . A declaração de inidoneidade pode ser afastada diante de uma confiança e de um novo olhar para a empresa, no Brasil não.
Aqui você tem a declaração de inidoneidade que uma vez aplicada vai durar até o momento em que a administração pública reabilita. A gente tem um jeito de olhar para essas coisas de forma mais árida.
A nossa legislação é mais intolerante com a falha da empresa do que nos EUA e a nossa ideia é de um dever de punir a empresa, já nos Estados Unidos eles avaliam se punir a empresa vai prejudicar o estado.
Flexibilizar esse ponto mexe com conceitos muito enraizados nossos e talvez o mais enraizado seja o dever de punir. O acordo de leniência aplicado pela (operação) Lava Jato é um exemplo de mudança de perspectiva a respeito desse dever punir, porque a empresa apesar do crime, é útil para uma melhoria.
Eu não diria que a gente pode deixar como regra contratar uma empresa inidônea, não pode ser assim. A regra tem que ser preservada, mas em situações excepcionais tem que (ser possível) levar a uma atenuação.
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O pregão, agora, na lei vai ser feito em menos tempo, chamamos até de pregão express, então deve ser possível fazer pregão em menos tempo [em um cenário normal].
Por que fazer no mesmo tempo? Pregão é licitação, se a lei está dizendo que é possível fazer um pregão em metade do tempo por que continuamos com um prazo maior? Porque não aplicar isso?
Olhando para essas regras criadas para a pandemia talvez tenham serventia fora da pandemia, porque esse limão tem que ser uma limonada. Senão, da próxima vez que tivermos um problema como esse, vamos ter que reestruturar a ordem jurídica novamente.
É isso que está acontecendo. Todos os dias têm milhares de normas. A pandemia vai demandar adequação , mas algumas dessas normas estão para demonstrar que a gente fazia errado.
Boa parte do que discutimos está regido pela MP 926, é possível considerá-la um divisor de águas?
MP 926 é uma provocação sobre o que a gente poderia mudar na administração pública, quais regras não fazem mais sentido hoje, e o que a gente poderia incorporar
no nosso dia a dia.
Qual o legado da Covid-19 na administração pública?
De repensar
a forma de agir, de pensar se ainda faz sentido uma excessividade burocrática, se faz sentido esse caráter, e algumas regras que supostamente protegeriam o interesse público, mas que na verdade, só prejudicam.