Numa medida utilizada como bandeira de campanha , o presidente Jair Bolsonaro (PL) intensificou a distribuição de títulos de propriedades rurais neste ano, quando disputa a reeleição, e entregou 122 mil documentos do gênero até 14 de setembro, o equivalente a 14,2 mil por mês, quase duas vezes mais que a média da atual gestão.
Aliados do candidato à reeleição enxergam as entregas como trunfo para conquistar eleitores nas regiões Norte e Nordeste, além de enfraquecer o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), grupo ligado ao PT que historicamente capitaneou a luta pela reforma agrária no país.
Na tentativa de transformar a estratégia em votos, Bolsonaro tem alardeado as concessões durante a campanha. O tema já foi tratado durante seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, nesta terça-feira, assim como em inserções de TV e postagens na internet.
"A violência no campo também caiu ao mesmo tempo em que aumentamos a regularização da propriedade da terra para os assentados. No meu governo, entregamos 400 mil títulos rurais, 80% deles para as mulheres", afirmou o presidente em Nova York.
A distribuição de títulos também tem sido propagandeada por ministros como um instrumento para a conquista de apoio em seus estados, como fez o titular da Casa Civil, Ciro Nogueira, no último fim de semana. Ele participou de eventos de entrega de papéis fundiários nas cidades de Barras e José de Freitas, ambas no Piauí, seu estado, ao lado do presidente do Incra, Geraldo de Mello Filho, no sábado.
O ministro postou em seu perfil nas redes sociais imagens dos beneficiários erguendo os documentos como troféus e recebendo flores em meio a um cenário decorado com bandeiras do Brasil. "São famílias que sonhavam em ter consolidadas as suas moradias e agora passam a ser contempladas graças a ação do Governo Federal", escreveu o ministro.
Até agosto deste ano, de acordo com dados oficiais do Incra, os brasileiros que mais receberam títulos de propriedade rural foram os moradores do Pará (92 mil), Maranhão (54 mil) e da Bahia (25 mil).
São as três unidades da federação que mais possuem assentamentos, o que torna natural que elas estejam entre as mais beneficiadas. A iniciativa, contudo, também é estratégica para Bolsonaro. Ele foi derrotado por Fernando Haddad (PT) no segundo turno de 2018 nos três estados, que concentram 14,2% do eleitorado.
Documentos provisórios
Apesar de o presidente afirmar que tem batido recordes na distribuição de títulos, a grande maioria das entregas feita pelo governo (82%) é dos chamados Contratos de Concessão de Uso (CCU), que não são documentos de propriedade definitiva. Os CCUs são um instrumento por meio do qual o Executivo autoriza o cidadão a usar regularmente um terreno da União. O Executivo, porém, pode requerê-los de volta a qualquer momento, diferentemente do documento que atesta a propriedade.
A quantidade de concessões provisórias vem aumentando desde o início da atual gestão e atingiu o maior patamar no ano eleitoral. O governo Bolsonaro liberou em média 2,1 mil CCUs por mês em 2019 e 12,2 mil até o meio de setembro de 2022, também em média — um salto de 480% na comparação entre os dois anos.
Os títulos definitivos (nos termos técnicos, TDs ou CDRUs), que costumam demorar dez anos para serem concedidos, representam 11% dos dados alardeados pelo presidente. As entregas vêm sendo capitaneadas pelo presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, e pelo secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia.
"Estamos correndo com isso, já chegamos a 410 mil títulos. A meta era 600 mil, vamos continuar tentando batê-la", disse Nabhan ao GLOBO, referindo-se à soma de documentos de posse provisória e definitiva.
Títulos para mulheres
Além de tentar diminuir a influência do MST sobre o eleitor que vive nas áreas rurais, a campanha de Bolsonaro passou a propagar que a maioria dos “títulos” é entregue diretamente a mulheres, segmento da população entre o qual ele sofre maior rejeição. A opção por distribuir prioritariamente às brasileiras, porém, já é adotada desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Além disso, especialistas questionam os critérios da atual gestão nas políticas de democratização de propriedades rurais. Historicamente, a reforma agrária no país era medida com base na quantidade de desapropriação de terras e de famílias assentadas. Bolsonaro tem priorizado a regularização de assentamentos criados nas gestões passadas e foi o presidente que, em média, menos inscreveu novas famílias e agregou hectares de terra ao programa.
"O governo está fazendo uma contabilidade criativa que nenhuma outra gestão fez. Assim, para o público leigo parece que o governo está assentando e titulando como nunca. Só que, na verdade, ele reduziu os assentamentos e teve uma performance pior que governos anteriores", diz Raoni Rajão, professor de Gestão Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Procurado, o Incra reconheceu que os CCUs não têm valor de escritura, mas afirmou que ele garante posse e acesso ao crédito rural, além de ser necessário para que se conceda o Título de Domínio (TD), documento de posse definitiva, numa etapa posterior. E frisou que emitiu mais títulos definitivos do que as gestões passadas.
“Embora o assentamento de novos beneficiários tenha permeado a atuação da autarquia em décadas passadas, o Incra priorizou nos últimos anos ações de regularização dos assentamentos, como a supervisão ocupacional de lotes, a regularização de beneficiários cadastrados (...) a concessão de crédito, a construção de habitações e a emissão de documentos de titulação”, afirmou o Incra. O órgão diz ainda que a execução da reforma agrária “não parou” no atual governo: “O foco é a regularização das famílias e a titulação para acesso às políticas da agricultura familiar”.
Procurados, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, não retornaram aos contatos feitos pela reportagem.
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