'Há um novo gabinete do ódio operando para macular a Lava Jato', diz Dallagnol
Coordenador da força-tarefa de Curitiba critica Bolsonaro por ‘arroubos autoritários’ e excesso de militares no governo
Por Agência O Globo |
Há seis anos coordenador da força-tarefa Lava Jato em Curitiba, o procurador da República Deltan Dallagnol atribui à Procuradoria-Geral da República (PGR) a promoção do "desmonte institucional" da forma de combater a corrupção empregada nos últimos anos. Ele nega que o grupo de procuradores por ele liderado tenha montado uma rede clandestina de grampos ou tenha investigado os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado ilegalmente. "Há um novo gabinete do ódio operando para macular a Lava Jato", ele afirma. Em setembro, caberá ao PGR Augusto Aras renovar ou não o funcionamento da força-tarefa em Curitiba, mas Deltan está confiante de que o trabalho continuará.
O vice-procurador-geral da República Humberto Jacques escreveu em documento oficial que forças-tarefas são "desagregadoras" e "incompatíveis" com o trabalho do MPF. O que o sr. pensa sobe este assunto?
As forças tarefas realmente incomodam. Incomodam poderosos que praticaram crimes gravíssimos no nosso país. Contudo, elas são não só compatíveis com o trabalho do MPF, como foram formadas para que o MPF cumpra seu papel. Casos como a Lava Jato são muito grandes e seriam impossíveis de avançar por meio de um único procurador. É preciso formar times para dar conta do trabalho.
Por que a PGR quer acabar com as forças-tarefas?
Uma coisa é mudar o modelo de atuação em grandes casos para um modelo em que exista um órgão unificado, uma unidade nacional anticorrupção. Essa é uma discussão legítima para perenizar o conhecimento e a experiência desse trabalho. Contudo, esse órgão precisa ser independente e ter garantias de independência. Não dá pra colocar todas as investigações de corrupção do país debaixo do controle de uma pessoa, quebrando a independência dos membros do MP. Agora, o que não se admite é que comecem a ser plantadas notícias na imprensa para lançar uma mácula de suposta ilegalidade sobre o trabalho das forças tarefas, que é transparente e revisado por três instâncias. Além disso, não dá para asfixiar o trabalho das forças tarefas sem que exista nada no lugar. A força-tarefa do caso Greenfield na prática foi extinta nesta semana, quando ainda tem muito trabalho a fazer para a sociedade.
O sr. identifica ação do PGR para lançar o que o sr. chama de mácula de suposta ilegalidade sobre o trabalho das forças tarefas?
O que vimos é que, depois que um integrante da PGR fez uma inspeção na força-tarefa na última quinta, procurando por um aparelho de gravação de voz, saiu uma notícia absurda de que haveria três guardiões na Lava Jato e dois teriam desaparecido. Até entendo que em Brasília se alimentem teorias da conspiração, mas veio aqui uma representante da PGR e foi documentalmente esclarecido que o que existe é um aparelho de R$ 15 mil que faz gravação interna dos ramais.
Por que este aparelho foi adquirido?
Porque recebíamos ameaças e ele só faz autogravação a pedido dos próprios procuradores e assessores que recebiam as ameaças, por questão de segurança. O aparelho foi comprado por licitação e o edital prevê expressamente que não faz grampo ou interceptação telefônica. Um guardião custa entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão e faz grampo, o que o nosso não faz. Além disso, não faz nem sentido essa história de ter três guardiões. Alguns estados inteiros têm só um guardião, suficiente para interceptar muitos telefones. E mesmo o guardião sozinho não faz interceptação, precisaria de ordem judicial para que as empresas telefônicas mandem o sinal pro aparelho. Ou seja, nada mais absurdo e descolado da realidade.
Em algum momento da Lava Jato o MPF operacionalizou interceptações telefônicas, ainda que autorizadas pelo Judiciário?
Jamais. Todas as interceptações na Lava Jato foram operacionalizadas pela PF e com ordem judicial.
De acordo com matéria do “Jornal Nacional”, a PGR apura se a Lava-Jato investigou os presidentes das casas do Congresso, omitindo o sobrenome deles de denúncia.
Outro absurdo. A denúncia era contra integrantes do grupo Petrópolis e constavam mais de 300 doações eleitorais para políticos feitas pelas empresas sob o comando da Odebrecht. O foco da denúncia era que enquanto a Petrópolis fazia doações no Brasil, a Odebrecht pagava a Petrópolis no exterior. Para mostrar isso, foram indicadas essas doações com base em informações públicas sobre doações que constam nos tribunais eleitorais. Não foi fruto de investigação sobre os parlamentares. Qualquer cidadão acessa.
A tabela de doações citada na denúncia é pública?
Sim, as informações sobre doações eleitorais são todas públicas.
Maia e Alcolumbre não foram investigados?
Primeiro, não houve qualquer investigação ou acusação contra eles. Segundo, a simples menção a pessoas com foro não determina a remessa do caso para os tribunais superiores. Aliás, não foi feito juízo de valor sobre as doações eleitorais, se eram lícitas ou ilícitas. E, terceiro, esse caso veio desmembrado do próprio Supremo, que enviou pra instância inferior para apurar as condutas. A conduta de quem recebeu está sendo apurada nas instâncias competentes, no próprio Supremo e em Justiças de todo país. O Supremo só está deixando em Curitiba o que tem vinculação direta com a Petrobras.
Por que a denúncia mirou apenas em quem pagou, e deixou de lado quem recebeu? Já que ficou provado que no fim das contas, eram doações ilegais, maquiadas como legais?
Nós não fizemos esse tipo de juízo de mérito porque não está na nossa alçada. Agora a questão é: a quem interessa plantar notícias falsas? Por que isso está acontecendo? O que parece é que se está buscando produzir um clima propício para acabar com as forças-tarefas. Isso é coerente com a afirmação feita no domingo pelo procurador-geral, segundo o qual as forças-tarefas seriam clandestinas. Ora, a formação das forças-tarefas é ato do próprio procurador-geral e temos atuado de modo transparente e público há 6 anos. Aonde se quer chegar?
O sr. tem alguma sugestão de resposta para esta última pergunta?
Eu acredito que chegamos a um momento de desmonte institucional da forma de combater a corrupção empregada nos últimos anos. Houve um desmonte jurisprudencial, com o fim da prisão em segunda instância, um desmonte legislativo, com regras como a lei de abuso de autoridade e outras que dificultaram a colaboração premiada, e agora se busca desmontar os arranjos institucionais usados nos últimos seis anos para avançar contra a corrupção. De novo, esses arranjos podem sim ser alterados, mas para fortalecer e não enfraquecer o combate à corrupção.
Para ficar claro, o sr. está dizendo que o PGR, chefe do órgão supremo do MPF, está plantando fake news contra o trabalho do próprio órgão que ele chefia?
Não estou dizendo isso. O que estou dizendo é que a noticia que surgiu após visita de integrante da PGR a Curitiba, de que haveria guardiões aqui, é falsa, e que outra notícia divulgada ontem, que aponta como fonte a Procuradoria-Geral, é falsa. Não me cabe apurar ou apontar quem está levando essas notícias falsas à imprensa. O que parece é que há algum novo gabinete do ódio, operando para macular a Lava Jato. Entendo ainda que eventuais mudanças no contexto político, como a saída do ex-ministro da Justiça Sergio Moro do governo, não deverão afetar o apoio institucional à Lava Jato, pois o Ministério Público é e deve ser uma instituição independente do poder político.
E quem está por trás desde gabinete do ódio que menciona?
Não me cabe apurar ou apontar responsáveis que se escondem por trás do sigilo da fonte e não tem coragem de assumir as notícias falsas que produzem. O que me cabe é apontar fatos.
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Se Aras não renovar o funcionamento da força-tarefa em Curitiba em setembro, o que acontece? O que ficará pelo caminho?
Se ele não renovar e não houver nada no lugar, o trabalho que hoje é feito por 14 procuradores e, ao todo, cerca de 60 pessoas, passará a ser feito por um procurador e três assessores. Seria o fim da força-tarefa, mas não acredito que isso vá acontecer, especialmente quando a própria Corregedoria, órgão da Procuradoria-Geral, após ampla análise feita sobre a força-tarefa neste ano, disse que é um trabalho muito relevante que precisa continuar.
O sr. vê alguma ameaça à democracia neste momento?
Não vejo risco concreto, porque acredito na força da nossa democracia e de nossas instituições e porque ampla maioria das pessoas apoiam esse regime, mas tenho preocupações.
Quais são?
A primeira é a escalada de manifestações autoritárias e o mau exemplo, que incluem a participação do presidente em atos que pedem regime militar, arroubos autoritários verbais e ataques à imprensa. A segunda são notícias da possível instrumentalização de órgãos de persecução criminal a partir da saída de Moro do governo. Usá-los para proteger amigos e perseguir inimigos é típico de ditaduras. Em terceiro lugar admiro os valores que as Forças Armadas cultivam, mas não compreendo a militarização da Administração Pública com três mil militares. Nove ministérios são chefiados por militares.
O que isso implica?
Certamente são competentes, mas se há civis também competentes, qual o objetivo? O que parece é que se quer dar alguma credibilidade a arroubos verbais autoritários. Contudo, mais uma vez, acredito na democracia e que as Forças Armadas conhecem e desempenharão seu papel de proteger as instituições.
A "simpatia pelo regime militar, arroubos autoritários verbais e ataques à imprensa” citados pelo sr. já eram parte do comportamento do presidente em 2018, quando ele era candidato à presidência. Isso não incomodava já o sr.?
Incomodava sim, mas houve um nítido crescente. Nunca tínhamos visto eventos como os que aconteceram em maio e junho, quando o presidente falou que "chegou ao limite", um ministro invocou "consequências imprevisíveis" contra a emissão de uma ordem judicial, um filho afirma que não é uma questão de "se", mas "quando" haverá uma ruptura. São só alguns exemplos. E a crescente militarização se somou a esses arroubos, assim como a participação em atos que pedem fechamento do Congresso ou Supremo. Ataques à imprensa se intensificaram. Chegou a um ponto em que, no meio dessa confusão, precisamos falar e reafirmar nossos valores comunitários e nosso pacto constitucional.
A ida de Sérgio Moro para o ministério da Justiça foi algo bom ou ruim para a Lava Jato?
A Lava Jato é um passo da luta contra a corrupção. Esse é um esforço de uma geração que exige perseverança ao longo de décadas. Sergio Moro declarou um motivo nobre para ir à pasta da Justiça: mudar as regras que favorecem a corrupção no nosso país, ir além da Lava Jato. Contudo, infelizmente, outras instituições como o Congresso e a Presidência não apoiaram com firmeza as mudanças.
O sr. diz que militares aparentam dar credibilidade a arroubos verbais autoritários do presidente. Sérgio Moro não cumpriu o mesmo papel ao aceitar participar deste governo?
Essa é uma avaliação em que cabem diferentes interpretações. A ida dele aconteceu antes de muita coisa vir à tona e foi uma decisão pessoal. O que observei é que ele saiu do governo quando, segundo afirma, era o único modo de proteger o trabalho da polícia. O que vi, também, é que ele não apoiou certas políticas públicas e buscou fazer um bom trabalho na pasta. Agora, como disse, há nesse assunto uma disputa de narrativas.
O que seria a disputa de narrativas, em sua visão?
Creio que essa é uma análise política que não me cabe aprofundar.
Ao tratar políticos como inimigos a priori, a Lava Jato não insuflou as manifestações de vêm atacando as instituições?
Ao contrário, a Lava Jato sempre defendeu que a atividade política é o único caminho para um país melhor. O problema é a corrupção política. Nesse contexto, tenho críticas a instituições e as críticas são um instrumento de aperfeiçoamento da nossa democracia. Contudo, é descabido o fechamento das instituições ou pregar a intervenção militar. As mudanças devem ser buscadas dentro do nosso pacto comunitário. A liberdade de crítica é essencial. Não se pode criminalizar a liberdade de expressão crítica, embora excessos evidentes devam ser coibidos na forma da lei.
O trabalho da Lava Jato escrutinou o sistema de financiamento da atividade política no país, algo que envolvia praticamente todos os partidos tradicionais. O espaço foi ocupado, então, por um projeto político que o sr. diz agora considerar autoritário e perigoso para as instituições. O que deu errado?
A elite política não favoreceu a renovação e alternativas. Políticos contra quem pesam graves evidências de corrupção não foram expelidos de partidos e do parlamento e se criou um fundão bilionário que engessa a política. Houve um ambiente de polarização entre direita e esquerda que acabou levando a soluções extremistas. Contudo, a Lava Jato jamais apoiou qualquer candidato e sempre defendeu a política, a ordem constitucional, a democracia e a cidadania como caminho para mudanças.
Em 2018, o sr. celebrou o surgimento de novas lideranças políticas, boa parte delas eleitas com discurso de combate à corrupção e apoiadoras do projeto político de Jair Bolsonaro, ainda hoje. O sr. mantém a mesma avaliação sobre essas lideranças?
Não me cabe avaliar lideranças específicas, mas é saudável para a democracia e para a cidadania a renovação de lideranças políticas, independentemente da orientação ideológica. Acemoglu e Robinson deixaram claro no livro "Por que as Nações Fracassam" a importância da permeabilidade das elites política e econômica para o desenvolvimento econômico do país. Isso é especialmente importante quando há um compromisso de lideranças com o combate à corrupção, mas, de novo, não estou avaliando lideranças específicas, até porque esse apoio pode ficar só da boca para fora.
O sr. teme que este movimento contra a Lava Jato se reflita nos processos a que responde no CNMP?
Fora representações em fase inicial de avaliação, hoje eu respondo no CNMP a apenas um processo por ter defendido a campanha para voto aberto na eleição para a presidência do Senado, e por ter feito uma avaliação de cenário em que afirmei que a escolha de Renan Calheiros tendia ser ruim para a causa anticorrupção, uma vez que respondia a investigações e processos. Minhas manifestações aconteceram dentro da esfera de liberdade de expressão e crítica, de cidadania, e foram apartidárias, assim como todas as outras que tenho feito há anos. O CNMP é um órgão importante, que deve atuar de modo independente e por isso acredito que o movimento contra a Lava Jato não deverá influenciar negativamente seu julgamento.