"Se Bolsonaro obstruir a Justiça, é dever do STF agir", diz jurista
"Mudar lei para permitir prisão em segunda instância pede mais cérebro do que coração ou fígado para não criar inconstitucionalidade", afirma Amaral
Professor de Direito, jurista e integrante da Controladoria Geral da Cidade de São Paulo, Luiz Fernando Prudente do Amaral não faz a linha conciliador, apesar do modo quase contido que adota para explicar que boa parte dos eventos recentes que envolveram o Judiciário brasileiro estiveram repletos de erros, trapalhadas e protagonismos desnecessários por parte de juízes, procuradores e ministros do STF — como na Lava Jato e na discussão sobre as prisões em segunda instância.
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Amaral também estuda as possíveis consequências legais das declarações belicosas do presidente Jair Bolsonaro e os riscos apresentados pelas intensas campanhas de fake news difundidas pelas redes sociais: “Todo brasileiro tem uma ‘tia do zap’.” Para ele, o maior problema do governo Bolsonaro está em deixar de estimular as mudanças políticas e jurídicas para apostar no confronto constante, o que ameaça a democracia, ainda mais diante das suspeitas de obstrução da Justiça nas investigações do Caso Marielle.
O STF fez o certo na decisão sobre a segunda instância?
O texto constitucional é muito claro e não admite qualquer interpretação diferente além da prisão após o trânsito em julgado. Falo isso até com base no histórico constitucional. Em 1986, durante a Assembleia Constituinte, a Comissão Afonso Arinos apresentou um anteprojeto que tratava da possibilidade da formação da culpa depois de uma primeira decisão, ou seja, na primeira instância. O artigo não foi aceito. Com o País saindo da ditadura, havia receio de restrição da liberdade. Assim, o que se garantiu foi a presunção de inocência. O grande problema é que não se pode suprir uma deficiência do sistema interpretando a lei de maneira absurda.
As interpretações jurídicas ao pé da letra, conforme exigido pelo ordenamento jurídico brasileiro, não indica uma necessidade de mudança?
Boa parte do que vemos hoje em termos de insegurança jurídica advém da falta de compreensão do texto legal ou da criatividade de alguns magistrados. A prisão a partir da segunda instância foi uma delas, pois estava claramente atrelada ao clamor social. Em muitas operações contra a corrupção, os promotores acreditaram que poderiam usar uma base americana, que vem do Direito Comum, a Common Law, que não se concilia com nosso Direito. Essa conciliação não pode se dar pelo Judiciário e, sim, pelos legisladores, que precisariam criar leis que dessem margem para o magistrado agir.
O que pode mudar a partir disso?
Alguns falam em PEC para alterar trechos do artigo quinto ou para criar um dispositivo prevendo o início da execução após condenação por decisão colegiada. Não me parece viável qualquer uma das hipóteses, por tratar-se de cláusula pétrea. Cogita-se também recuperar a PEC que altera o momento do trânsito em julgado, modificando os recursos aos tribunais superiores. Mudar a lei para permitir prisão em segunda instância pede mais cérebro do que coração ou fígado para não criarmos uma inconstitucionalidade.
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Já se fala em uma reforma constitucional para apaziguar os impasses que atrapalham a Justiça. Ela é mesmo necessária?
Creio que sim, mas não agora. Sinto que a sociedade brasileira hoje não teria a tranquilidade para debater temas tão relevantes.
A Lava Jato está ameaçada?
Há falácias que atrapalham o que está em jogo no Supremo. Não há nulidade nem revisão das decisões da Lava Jato. Caso distinto é a hipótese de nulidade sobre a inversão das alegações finais. O princípio básico da Constituição dita que a defesa sempre deve se manifestar após a acusação. Vale notar que o Ministério Público paulista adota esse procedimento. Me parece indevido o Ministério Público Federal não ter adotado a mesma postura.
Houve atropelos?
Sim, tivemos alguns. Um atropelo clássico, devidamente corrigido pelo STF, foi a condução coercitiva, que não existe enquanto método no Código de Processo Penal. A condução só existe a partir do momento em que a pessoa se nega a comparecer. No caso do Lula, que foi levado para depor no Aeroporto de Congonhas, só haveria razão se ele tivesse se negado a comparecer. Foi curiosa a justificativa de que a Justiça optou por uma condução coercitiva para não decretar uma prisão temporária ou cautelar. Calma lá. Não foi decretada prisão, pois naquele momento não havia elementos para tanto.
Na Itália, a Operação Mãos Limpas entrou em um beco sem saída depois de algum tempo. A Lava Jato está se aproximando desse ponto?
Sempre fui contra a espetacularização do Ministério Público e da magistratura. Mais que o Executivo e o Legislativo, essas são instituições que deveriam se preservar, sob pena de perderem credibilidade. No caso da Lava Jato, jogaram como a população queria, mas não necessariamente de acordo com os procedimentos legais. O aspecto teatral teve seu apogeu no Power Point do [procurador Deltan] Dallagnol, com todas as setas apontando para o Lula. Não digo que ele não tenha sido o organizador de todo o esquema, mas havia ali elementos para uma apresentação daquelas?
O presidente Bolsonaro está obstruindo a Justiça? Seu filho afirmou que pegou a gravação da portaria do condomínio no dia do assassinato de Marielle.
Para saber se houve obstrução seria preciso a devida investigação isenta. De todo o jeito, acho uma conduta absolutamente indevida, pois a partir dela o presidente coloca uma série de dúvidas sobre o sistema de Justiça. Já para aqueles que estão na oposição — ou assistem a tudo de fora —, dá a impressão que ele e seu grupo estão praticando ingerências indevidas em um processo que, pela sua narrativa até agora, o coloca em suspeição. Se Bolsonaro obstruir a Justiça, é dever do STF agir, mas é preciso que haja um processo. Não posso me basear em qualquer afirmação do atual presidente — até por que muitas de suas declarações não se confirmam. É preciso lembrar que a Justiça precisa ser provocada.
A democracia está sob risco?
Vejo com preocupação a maneira como o presidente Jair Bolsonaro se refere aos órgãos de investigação, como a Polícia Federal. Historicamente, os presidentes mostravam algum tipo de pudor em seus atos e opiniões. A forma como o Executivo deveria se relacionar com os demais poderes têm que ser mais institucionais, algo que não tenho visto, principalmente nas publicações em redes sociais. Houve um reducionismo das complexidades da sociedade contemporânea. Todo e qualquer debate entra na linha do “nós contra eles”. O risco está em atiçar a insatisfação popular, que é legítima, contra as instituições, em vez estimular mudanças de rumo no panorama político e no sistema de Justiça. Falta apego à liturgia do cargo. Bolsonaro tem muito de Jânio Quadros, com um comportamento meio tosco e populista, mas sem o mesmo preparo e oratória. Jânio não era do ódio. Ele aplicava a ironia contra os adversários.
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Nesse ambiente político tóxico, até os ministros do STF viraram alvos?
O que há de mais problemático é que a crítica, que eventualmente se tem sobre algum ministro, seja ele quem for, não pode se estender à instituição Supremo Tribunal Federal. Quem está lá irá passar, mas a Corte vai continuar. E é daí que vem parte das nossas garantias democráticas. Porém, creio que o Supremo adotou um protagonismo indevido.
Foi no Mensalão que os ministros do STF viraram personalidades públicas?
Creio que o escândalo só deu visibilidade aos ministros. O que dá esse tom político ao STF são os constantes questionamentos dos parlamentares, que deveriam tratar dessas questões no âmbito do Congresso. Parlamentares que perdem suas votações, consultam o Supremo, que opta por decidir, fazendo o papel de legislador.
Mas o entendimento jurídico prevê que o STF, quando instado, se manifeste para resolver dúvidas. Se isso não ocorrer, como solucionar impasses?
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte adota o sistema de autocontenção, que determina que aquilo que deve ser deliberado pelo Congresso deve ficar por lá. No Brasil, os ministros assumiram um protagonismo inédito, com sessões transmitidas ao vivo e seus rostos em capas de revista. Esse populismo do Judiciário eliminou o dever de se conter diante de questões “interna corporis”, gerando uma anomalia. É claro que a Constituição possui mecanismos para que o Supremo reafirme ou afirme direitos, como o mandado de injunção. O problema é que o STF se manifesta além de suas atribuições.
O Judiciário e os ministérios públicos têm como agir contra as séries de fake news que inundam as redes sociais e os aplicativos?
As fake news interferem nos rumos da democracia não só no Brasil, mas no mundo todo. Só que pensar em uma legislação para a internet é dar uma margem para censura. Portanto, uma alternativa seria as plataformas adotarem uma espécie de autorregulamentação. As mídias sociais ainda são uma novidade e os mecanismos de cidadania ainda não sabem lidar com tudo isso. Na Comissão de Política e Mídias Sociais do Instituto dos Advogados de São Paulo, da qual faço parte, uma das metas é promover a instrução da sociedade. As fake news conferem até um certo conforto, do ponto de vista psicológico, indicando para muitas pessoas que elas estão corretas em “suas novidades”, apesar das evidências contrárias. Daí, quando a fraude cai na “tia do zap”, a coisa sai do controle. E todo brasileiro tem alguém assim na família.
E como tornar as vítimas das fake news menos vulneráveis?
No aspecto legal, existem alternativas no âmbito do Direito Civil, mais do que no Penal. No cível, o autor sentiria muito mais ter que pagar uma fortuna de indenização a quem ofendeu, do que no criminal, onde réus primários acabam punidos com a doação de cestas básicas. A não ser que o caso envolva algum crime, como uma campanha de ódio que termine em agressão ou exposição sexual.