Agentes da ditadura incineraram corpo de Fernando Santa Cruz em usina, diz MPF

Ex-delegado do Dops admitiu ter recolhido corpos na "Casa da Morte" e no DOI-CODI para levá-los a forno de usina em Campos dos Goytacazes (RJ); ele próprio disse ter reconhecido o corpo do pai do presidente da OAB

Foto: CEPE / Divulgação
Militante Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, desapareceu em 1974

O Ministério Público Federal denunciou o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Cláudio Antônio Guerra, 79 anos, por ter incinerado 12 cadáveres em fornos da Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Dentre os corpos que teriam sido ocultados dessa forma, entre 1973 e 1975, estaria o de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz.

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A denúncia do MPF se baseia em depoimento do próprio ex-delegado para o livro "Memórias de uma Guerra Suja". Cláudio Antônio disse ter recolhido os cadáveres, alocados em sacos pretos, na chamada "Casa da Morte", em Petrópolis (RJ) e na sede do Destacamento de Operação de Informação e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), levando-os em seguida à Usina Cambahyba.

O ex-delegado, que atualmente atua como pastor evangélico, disse em depoimento aos procuradores que ele próprio sugeriu, durante o período de ditadura militar , o forno da usina de Campos como "forma de eliminação sem deixar rastros". O ex-agente da ditadura disse que o local já era usado para a desova de criminosos comuns e que era amigo do dono da usina (já falecido), que se dizia "um homem de direita contrário ao comunismo".

Peritos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) visitaram a usina, acompanhados do próprio ex-delegado em 2014, e concluíram que, de fato, "tanto o tamanho da portas dos fornos como a temperatura alcançada seriam adequados à sua utilização para incinerar corpos".

Cláudio confirmou que, por curiosidade, ele abria os sacos que recebia na "Casa da Morte" e no DOI-CODI para ver os corpos, que não estavam em estado avançado de decomposição pois não havia cheiro forte. Ele reconheceu que um dos cadáveres era de o de Fernando Santa Cruz, que era integrante do grupo político Ação Popular e desapareceu em 1974, no Rio de Janeiro, aos 27 anos de idade.

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De acordo com o MPF, Cláudio Antônio Guerra agiu por motivo torpe (uso do aparato estatal para preservação do poder contra opositores ideológicos), visando assegurar a execução e sua impunidade, com abuso do poder inerente ao cargo público que ocupava.

“Assim, com o objetivo de assegurar a impunidade de crimes de tortura e homicídio praticados por terceiros, com abuso de poder e violação do dever inerente do cargo de delegado de polícia que exercia no Estado do Espírito Santo, foi o autor intelectual e participante direto na ocultação e destruição de cadáveres de pelo menos 12 pessoas, nos anos de 1974 e 1975”, argumenta o procurador da República Guilherme Garcia Virgílio, autor da denúncia.

Além da condenação pelos crimes praticados, o MPF pede o cancelamento de eventual aposentadoria ou qualquer provento de que disponha o denunciado em razão de sua atuação como agente público, dado que seu comportamento se desviou da legalidade, afastando princípios que devem nortear o exercício da função pública.

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O desaparecimento do corpo de Fernando Santa Cruz  voltou ao noticiário nesta semana após o presidente Jair Bolsonaro (PSL) provocar o presidente da OAB e filho do militante, Felipe Santa Cruz, sugerindo que poderia contar o que aconteceu com Fernando. Horas mais tarde, quando as declarações já haviam ganhado grande repercussão na sociedade civil, Bolsonaro disse ter recebido informações de que militantes de esquerda haviam executado Fernando.

A versão contraria o que diz a Comissão Nacional da Verdade, que atribui ao Estado brasileiro a culpa pela morte e desaparecimento do militante. O presidente da OAB recorreu, nessa quarta-feira (31), ao Supremo Tribunal Federal (STF) para cobrar explicações de Bolsonaro sobre suas afirmações . A interpelação será relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Nesta quinta-feira (1ª), o presidente e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, promoveram a substituição de integrantes da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que reconheceu, em 1995, a responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura militar. Bolsonaro, que já  havia contestado ao longo da semana as informações colhidas pela comissão, justificou pela manhã que a medida foi tomada porque ele é um presidente "de direita".