Uma em cada cinco mulheres até os 40 anos terá abortado ao menos uma vez na vida. Esta foi a constatação feita na última edição da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2016 pelo Anis Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB). De acordo com os dados, em 2015, 417 mil mulheres nas áreas urbanas do Brasil interromperam a gravidez, número que sobe para 503 mil se for incluída a zona rural.
Leia também: STF terá mulher como relatora de ação sobre a descriminalização do aborto
A legalização do aborto no Brasil é assunto que divide opiniões: de um lado, alguns apontam a defesa da vida desde a sua concepção, do outro, requerem a autonomia feminina, o direito à saúde e à decisão sobre o próprio corpo.
Neste contexto, desde o último dia 6 de março, quando o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e o Instituto Anis protocolaram uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, entidades têm se movimentado para participar do processo – tanto de um quanto de outro lado.
Tanto que, em menos de um mês, a ação que ficou sob a relatoria da ministra do Supremo Rosa Weber recebeu três pedidos de ingresso como amicus curiae (o chamado "amigo da Corte"). O primeiro a se candidatar foi o Partido Socialista Cristão (PSC) – por iniciativa do deputado federal Marco Feliciano, que em entrevista ao iG afirma não acreditar nas estatísticas sobre o aborto no Brasil. “Usam números mirabolantes para criar uma comoção nacional, isso é tática de esquerda, isso é leninismo, isso é marxismo cultural”, acusa o deputado.
“Se existem 503 mil processos de abortos em clínicas clandestinas, isso mostra exatamente que nosso País está precisando de uma melhora na sua educação moral”, diz Feliciano. Para o parlamentar, a legalização do aborto até a décima segunda semana de gestação é “um assassinato em massa. Aliás, é mais que assassinato é genocídio”.
No pedido para ser “amigo da Corte”, o PSC afirma que é preciso “buscar formas de melhorar a vida das mulheres e de suas crianças, não impedir que os fetos nasçam”. Segundo Feliciano, o caminho ideal seria investir na educação de forma a conscientizar as pessoas das consequências de uma possível gravidez.
“Quando você mexe na consciência da pessoa, as coisas mudam. É muito mais fácil a gente educar do que assassinar, mas me parece que no nosso País as pessoas querem mais é ter sangue nas mãos do que batalhar contra o que chamam de politicamente correto."
Estratégia de esquerda
Para o deputado, o Psol foi “leviano” ao entrar com essa ação no STF, uma vez que o aborto já é um assunto na pauta da Câmara dos Deputados. Porém, Feliciano reconhece que a Casa não chega a um consenso por se tratar de um tema polêmico e a Câmara ser “extremamente conservadora”.
Leia também: 'Não podemos virar Amsterdã', diz deputado autor de PL que limita vídeos pornô
“Então, o que faz o Psol, PT e puxadinhos? Toda vez que na Câmara não há consenso sobre um assunto, eles encontram na Suprema Corte uma forma de burlar a lei, dando superpoderes para a Corte criar uma legislação paralela”, explica o parlamentar que disse ter ficado “apavorado” ao ver o assunto tramitando no Supremo.
“Eu fiquei totalmente consternado, apreensivo. Fiquei extremamente chocado porque a CNBB [Confederação Nacional dos Bispos do Brasil] não se pronunciou sobre isso, não pediu para ser amicus curiae nessa situação, e o PSC foi o único partido conservador que fez isso”, declara o deputado.
Atuando no processo
O advogado constitucionalista Saul Tourinho Leal, da Pinheiro Neto Advogados, explica que o amicus curiae leva ao Supremo uma participação mais popular. É a forma que o STF tem de ouvir setores da sociedade que serão impactados por uma decisão, mas que não são partes no processo.
“Uma vez autorizado pelo relator do processo, ele passa a poder legitimamente interagir com os ministros do Supremo como se fosse parte. Ou seja, ele vai poder marcar audiências, entregar estudos ou memoriais, razões jurídicas que entenda serem adequadas para defender teses e, mais do que isso, no dia do julgamento, o advogado do amigo da Corte pode fazer a chamada sustentação oral, pode usar a tribuna e levar sua mensagem ao tribunal”, explica o advogado.
Leal esclarece ainda que não há um número limite de amicus curiae em um processo, e ressaltou que o critério do relator para aceitar um pedido é se o “amigo da Corte” trará argumentos jurídicos para o debate. “Teve um caso, relacionado ao aborto de fetos anencéfalos, que o ministro [do STF] Marco Aurélio negou a partição como amigo da Corte da CNBB, porque achou que eventual contribuição que a CNBB trouxesse, não seria uma contribuição jurídica”, lembra.
Além do PSC, a União dos Juristas Católicos de São Paulo e o Instituto de Defesa da Vida e da Família já encaminharam ao Supremo Tribunal Federal pedidos para ingressar como amicus curiae no processo sobre a legalização do aborto.
Representação feminina
Segundo Feliciano, caso a ministra Rosa Weber aceite o pedido do PSC, o partido vai indicar um advogado que “seja gabaritado, pró-vida e que tenha argumentos jurídicos”. Questionado sobre a participação feminina em um processo sobre aborto, problema que concerne às mulheres, ele disse: “se encontrarmos uma advogada capaz (...) já pensou uma advogada pró-vida, uma mulher falando em nome das mulheres que não querem matar os seus bebês, seria muito legal”.
Tendência mundial e chegada tardia
Para Saul Tourinho Leal, há uma tendência mundial de se superar o debate em relação a "vedação quase que absoluta" ao aborto. "Seja pela legislação, seja pelos tribunais, há uma discussão onde se permite o aborto, ou seja, a mulher tem o direito de optar e, na sequência, a discussão será sobre o limite para se abortar, se haverá restrições acerca da quantidade de abortos, se existe algum tipo de iniciativa educativa para que o pai participe da formação dessa decisão", explica.
Leia também: STF dá prazo para Temer se posicionar sobre a descriminalização do aborto
De acordo com o advogado, o aborto é um tema que chega "tardiamente" no País, pois o que tem se discutido em outras democracias é um refinamento, são novas questões sobre a implementação do aborto nesses países.
"O mero fato de o Supremo ter que arbitrar isso, como teve que arbitrar, por exemplo, a questão da união homoafetiva já é uma demonstração de que o Brasil é reticente em relação a algumas agendas. Porque esse assunto está indo para o tribunal? Porque ele não avança na esfera política, quando você vê esses temas se retraindo quando você tenta discuti-los na esfera política, de certa forma, é um termômetro dos representantes que temos e da sociedade que temos", conclui Leal.