“Profundo é o vale da tua boca!!”… a frase balouçava furiosamente, como uma ressaca no mar. A princípio, Maria Déa controlara seus impulsos, pungindo enorme culpa, lutando contra desautorizadas fantasias, tudo em reverência à inocência do menino. Mas que inocência, que menino? “Estreita é a grota dos teus desejos!!”, repetia para si mesma o verso desaforado…
Bentinho não era mais a criança que evocara um dia seus sentimentos maternais. Era agora um homem, um homem que amava como homem, que desejava como homem e que, por esse desejo, escrevia versos capazes de fazer encarnar a uma mulher.
Despojada de laços sanguíneos e desobrigada dos sentimentos maternais, ela agora o amava não mais pelo menino que fora um dia, mas pelo homem em que se transformara!! Tudo lhe parecia surpreendente, ainda que simplesmente verdadeiro e quase natural.
– Que amor e desejo poderiam ser mais puros que os seus, perguntava-se como que a buscar absolvição de seu recorrente suplício. Ninguém, como ela, a ele se dedicara e com tamanha veneração… A estreita convivência de anos a fio, o espólio de infinitas experiências partilhadas, as infindáveis conversas e as pudentes confidências, a felicidade de duas “crianças” abandonadas a elas mesmas na imensidão das tardes em que a casa era só deles, em que o mundo só a lhes pertencia, em que júbilo existia simplesmente por estarem juntos.
Depois, a aventura intelectual suscitada pelas longas sessões de leitura, ensejando debates acalorados em torno dos clássicos que liam um para o outro na mansuetude da biblioteca. A descoberta de grandes personagens da literatura que partilhavam emocionados. O gozo, ainda, da música, companheira recorrente na reclusão de um paraíso inextricável, só deles, de mais ninguém!
Diante de seus olhos, Maria Déa acompanhara, com inexcedível prazer, as transformações impostas a Bentinho pela chegada da puberdade. A barba rala desvirginando a face rosada, a voz encorpando seus graves no desapressado processo de que ela fora privilegiada testemunha.
Lembrou-se, então, da figura angelical da menina da casa da frente… Sua juventude e frescor, sua casta beleza… A fortuna incomensurável de ter a vida inteira diante de si.
Voltou-se, mais uma vez, para o espelho fendido do toucador: estava entristecida, os cabelos esgrouviados, as vestes descuidadas, o rosto sem cariz. Não mais se reconhecia na imagem refletida.
Enxugou com raiva uma lágrima que insistia em cair.
– “Não tenhas pena de ti! ”, martelavam em sua cabeça as palavras paternais do padre, “não tenhas pena de ti!”
Sentiu uma tristeza profunda, uma enorme orfandade, um medo da solidão que se descortinava em seu caminho. Lembrou-se da mãe, morta há tantos anos no seu Portugal tão distante, tão distante… A mãe em quem sempre encontrara o bálsamo para suas aflições. Que saudade, meu Deus!! Que vontade desesperada de poder falar-lhe, abrir-lhe o coração! Que falta faziam os seus conselhos, o seu semblante sereno sob a neve dos cabelos, a dignidade estampada na doçura de sua face.
Comparou, à da mãe, sua própria imagem refletida no espelho, sem poder mais conter o choro. Tudo parecia desmoronar-se à sua volta, como que, subitamente, despertasse para a sensaboria de sua vida, apartada de qualquer emoção, exilada de todos os sonhos, encarcerada na ante-sala da velhice. Uma vida onde a juventude, o amor, a esperança, a relação com os filhos, o sexo… enfim, tudo! já se havia transfigurado em passado. Nada mais lhe restava, na resignada submissão aos caprichos do destino, que o tricotear vazio e doloroso na bruma de suas memórias.
Lembrou-se das amigas da adolescência, perdidas definitivamente pela imposição da distância e do tempo. Onde andariam? Seriam elas felizes? Teriam realizado seus sonhos de juventude?
Lembrou-se, mais uma vez, dos filhos… tão ausentes, quase que indiferentes… aos quais amava acima de todas as coisas. Distraiu o rosto com um sorriso ao recordar a saudosa algazarra deles, a sinfonia de suas vozes sepultada pelo silêncio da grande casa, vazia após a sua partida.
Pensou em Álvaro, o homem a quem unira, definitivamente, seu destino, ainda na pequenina Cascais… O namoro, ainda menina, quando fora a mais bela de todas as raparigas da cidade… A comunhão de sonhos, a cumplicidade, a determinação com que haviam enfrentado os obstáculos sem jamais fraquejar…Lembrou-se de como fora belo o seu comendador, alto, com seu andar decidido e um sorriso que cativava a todos. Recuperou em sua memória a imagem, indelevelmente impressa, da primeira braçada de flores que ele lhe trouxera, há quase quarenta anos atrás…
Olhou-se, novamente, na imagem refletida no espelho. Nada, nada mais lhe restara. Nada a não ser a inconsequência deste amor por um menino, pelo seu menino ! Amor sem esperança, amor que talvez fosse somente a desesperada tentativa de resgatar para si a própria vida que lhe escorria, célere, entre os dedos das mãos.
Bentinho, com sua juventude, seu frescor, sua pureza e vigor dos dezessete anos, talvez fosse somente, para ela a negação da inexorabilidade do tempo, a esperança de burlar a sorte que o destino lhe impusera, o renascimento, o desenfastiar, o libertar-se dos grilhões do tempo.
Olhou-se mais uma vez refletida nos pedaços do espelho partido. Então, entregou-se a um choro baixinho, de lágrimas copiosas, choro doído e desventurado como chora o náufrago ao descobrir-se exilado de toda esperança.
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