O lado oculto da Guerra da Ucrânia

Estados Unidos queriam o conflito, enquanto Europa se movimentava para segurar Putin e sua tropa nas fronteiras ucranianas

Foto: U.S. Embassy Kyiv Ukraine
Destruição na Ucrânia após bombardeios

"Países não têm amigos, têm interesses". Para entender a guerra da Ucrânia, é preciso guardar essa frase. O conflito, que completa um ano nesta sexta-feira (24), tem protagonismo russo, mas com coadjuvantes importantes no cenário internacional.

Enquanto muitos acreditam que a Rússia pretendia apenas tomar as terras ucranianas, não imagina que acordos comerciais e promessas de campanha colaboraram com o início do conflito, que, na realidade, não começou em 2022.

Se perguntarmos para os brasileiros quando a guerra da Ucrânia começou, teremos a resposta como 24 de fevereiro de 2022. Já os ucranianos acreditam que a disputa começou em 2014, com a anexação da Crimeia na Rússia.

Mas para entender o conflito, precisamos voltar muito antes, mais precisamente no dia 9 de novembro de 1989. A data é tradicionalmente marcada pela queda do Muro de Berlim, que separava a Alemanha Oriental e Ocidental. Porém, o dia é visto como o início da derrocada do império soviético.

Enquanto os russos tentavam encontrar alternativas para se desenvolver, Estados Unidos e União Europeia preparavam uma série de condições para os soviéticos. Entre elas, estava a independência de vários países que compunham o bloco, inclusive a Ucrânia.

O então presidente soviético, Mikhail Gorbatchov, que morreu no ano passado, até cedeu às pressões do Ocidente, mas condicionou os espaços à não entrada de nenhum país que fazia parte da União Soviética na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Para ter o pedido atendido, a Rússia seria responsável pela segurança dos ucranianos e de outros países que compunham a antiga União Soviética, ou seja, deveria zelar pelo território vizinho e se comprometeu a não realizar ataques contra o país.

"Esse documento dizia que a Alemanha Oriental passava a ser Alemanha Ocidental e que nenhuma das então repúblicas socialistas entrariam na OTAN, especialmente a Geórgia, a Moldávia e principalmente a Ucrânia. Essas regiões foram usadas por tropas nazistas e napoleônicas para invadir a Rússia", explica Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM.

"A Ucrânia nunca entraria na OTAN para proteger a fronteira russa", completa.
Mas os interesses do Ocidente se tornaram cada vez maiores. Os Estados Unidos se aproximaram da Polônia, um dos países mais afetados pela Segunda Guerra Mundial. A partir daí, o Memorando de Budapeste - documento assinado em 1994 que garantia a independência de Belarus, Cazaquistão e Ucrânia, obriga a entrega de armas nucleares desses países à Rússia e impede a entrada de países que faziam parte da União Soviética na Otan - foi descumprido, com a entrada dos poloneses na Otan.

Fato é que a Rússia não se importou muito com o caso. Como a Polônia não faz fronteira com os russos, não havia motivos para se preocupar com uma criação de base militar norte-americana em solo polonês.

Aproximação da Ucrânia com o Ocidente

O presidente russo, Vladimir Putin, estava satisfeito quando em 2010 seu candidato venceu a disputa eleitoral na Ucrânia. Putin via em Viktor Yanukovych a chance de conquistar o controle das ações dos ucranianos e evitar uma aproximação do país com os Estados Unidos.

Quatro anos mais tarde, Yanukovych assinou diversas medidas pró-Rússia, o que causou revolta em moradores de Kiev pró-Ocidente. A ajuda russa não impediu o parlamento ucraniano de destituir Viktor Yanukovych, que fugiu para outro país quando ainda estava na presidência, e convocar novas eleições.

Dias após a derrubada do governo ucraniano, o exército russo agiu e colocou soldados na Crimeia, uma região militar importante para os soviéticos. Na visão de Putin, a possível aproximação do novo governo com os EUA poderiam causar uma invasão à Rússia.

"A Ucrânia não tinha Exército. Eles tinham Forças Armadas apenas no papel. Eles não precisavam, pois o Memorando de Budapeste garantia a segurança do país pelos russos", conta Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM.

Foto: Reproducao / CNN
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky tenta apoio do Ocidente para confrontar Rússia

"A partir de 2014, a Ucrânia passou a se movimentar para criar um Exército, mas havia pouco dinheiro para construir algo consolidado", completa.

O vencedor, Petro Poroshenko, era alinhado aos anseios do Ocidente, o que impôs uma forte derrota para Putin. Com a aproximação entre Poroshenko e o então presidente norte-americano Barack Obama, Putin passou a se sentir acuado e viu na relação uma ameça de tornar a Ucrânia membro da Otan.

O Kremlin passou a agir nos bastidores e começou a fazer ameaças veladas de invasão, mas sem tomar uma ação efetiva. Era mais um elo da corrente que desencadeou os conflitos.

Acordos comerciais e China no "bolo"

A saída de Proshenko e a chegada de Volodymyr Zelensky ao comando da Ucrânia incomodaram muito Putin. O presidente russo nunca aceitou a independência ucraniana e não poderia acatar qualquer ligação do país com os Estados Unidos. Zelensky era uma ameaça.

"Os russos nunca aceitaram a independência da Ucrânia com o fim da União Soviética. Nunca. Aquilo foi o que eles tiveram que engolir. A Rússia precisava de empréstimos do FMI (Fundo Monetário Internacional) com o fim da União Soviética e a condição para obter o dinheiro é aceitar a independência dos países, principalmente da Ucrânia", explica Gunther.

Negociações, reuniões e acordos começaram a ser estudados. A União Europeia queria ter maior liberdade nas negociações e encontrou na China a possibilidade de importar tecnologia mais barata. Já os Estados Unidos viam nos interesses da Ucrânia uma oportunidade de atingir a Europa.

Nos últimos anos, o bloco europeu fechou acordos comerciais com os chineses, o que gerou uma forte manifestação dos Estados Unidos, que perderiam suas vendas e, consequentemente, seus empregos. O protesto dos norte-americanos provocou um recuo do Parlamento Europeu, mas 26 países optaram por assinar acordos individuais com o governo chinês.

"Em 2020, a União Europeia começou a realizar acordos tecnológicos com a China e se aproximou muito mais dos chineses do que dos norte-americanos. Os Estados Unidos não gostaram nem um pouco dessa história. A Europa continuava crescendo ao comprar óleo e gás mais barato dos russos, enquanto os EUA perdiam dinheiro com os acordos", explica Leonardo Trevisan.

De olho nas consequências, os Estados Unidos passaram a intermediar a entrada da Ucrânia na Otan. Esse foi o estopim para uma série de ameaças de Vladimir Putin, que começara a movimentar suas tropas para a fronteira do leste ucraniano e no norte do país, via Bielorrússia.

"Os americanos manipularam bastante e pressionaram o parlamento europeu para negar esse acordo. Mas alguns países fizeram contratos individuais com os chineses, o que acendeu o alerta na Casa Branca. A partir daí, os americanos fizeram uma provocação via Ucrânia para que o país entrasse na OTAN. Para a Rússia, fazer isso é o mesmo que colocar armamento russo em Cuba", afirma Trevisan.

Foto: Montagem iG / Imagens: Kiara Worth e Kremlin
Especialistas alertam que Biden tinha interesses com o início da guerra na Ucrânia

Dias antes do começo da guerra da Ucrânia, o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, foi até Moscou para convencer Putin a segurar seu exército. O russo até aceitou o recuo das tropas, mas queria uma sinalização dos Estados Unidos de que não haveria possibilidade da incorporação da Otan na aliança militar do Ocidente.

Trevisan conta Scholz fez questão de ligar para Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, que disse claramente que era para o conflito acontecer.

"Quando o Scholz telefonou pro Biden e disse que tinha chegado em um acordo com os russos, o alemão ouviu um sonoro 'não'. Biden não queria isso, ele queria de fato um problema porque a Europa tinha se aproximado dos chineses", afirma.

A fala de Biden tem um motivo. Com a União Europeia apoiando a Ucrânia, a Rússia aplicaria sanções aos ocidentais e, de quebra, cumpria uma promessa de campanha: recuperar os empregos no setor de petróleo e gás do país.

"Uma das promessas do Biden em campanha eleitoral é de que ele iria salvar os empregos na região petrolífera dos Estados Undos. Ele falou várias vezes que a classe trabalhadora da Pensilvânia poderia ficar tranquila porque os empregos seriam recuperados. O estouro da guerra fez cumprir a promessa", completa.

Erros, erros e mais erros

Se há um protagonista na Guerra da Ucrânia, esse papel é do "erro". Não, você não leu errado.

As análises feitas por todos os países foram erradas, o que provocou derrotas da Rússia, da União Europeia, da Ucrânia e dos Estados Unidos.

Os norte-americanos achavam que a Europa cederia aos seus encantos, mas sofreu com fortes pressões e precisou disponibilizar dinheiro e armamento aos ucranianos. A União Europeia, por sua vez, esperava que Putin desistisse da ideia e mantivesse o acordo para a distribuição de gás natural.

A Ucrânia errou que teria apoio do Exército de outros países, embora tivesse apoio de armamentos e tanques. Já a Rússia errou em achar que os ucranianos não resistiriam e que o conflito, assim como na Geórgia em 2008, duraria apenas três dias.

"O primeiro dos erros da Rússia foi imaginar que os interesses dos Estados Unidos na Ucrânia eram só interesses na Ucrânia. A Europa, por sua vez, errou porque imaginou que os acordos comerciais para a compra de gás com o Putin seriam cumpridos".

"A China errou também na análise dos acontecimentos. Ela olhou só para os seus interesses comerciais e não deu importância para a Ucrânia. Já os Estados Unidos por pensarem que as ações da Rússia seriam controladas e por achar que as sanções contra o Kremlin seriam suficientes", analisa Leonardo Trevisan.

O futuro da guerra

O jornalista Thomas Friedman, do The New York Times, já avisou. O segundo ano deve ser o mais sangrento de todos.

Os sinais de Vladimir Putin ganharam novos patamares nesta semana. O presidente russo quebrou o acordo de controle de armas nucleares e ameaçou usar ogivas caso os Estados Unidos iniciassem estudos de armas de grande potencial destrutivo.

A soma do histórico de Putin com as reações internacionais só deve intensificar o conflito, acreditam especialistas. Entretanto, é possível observar que as colaborações do Ocidente estão surtindo efeito.

"Não é possível afirmar quando a guerra vai acabar, mas um ponto estou achando interessante. Pelo que nos chega através da imprensa, é que a Rússia enfraqueceu e o exército ucraniano tem avançado contra os ataques de Putin", ressalta Gunther.

"Mas esse conflito não pode tomar proporções nucleares. A Rússia tem uma grande quantidade de ogivas e pode causar estragos ainda maiores se o conflito tomar esse rumo. Ainda é impossível prever o que se passa na cabeça do Putin", completa.